Controle de Preços no Mercado de Trabalho 2
LIVRE MERCADO
Como mostrei no ensaio anterior o livre mercado favorece o surgimento de empresas, da mesma maneira favorece a mais pessoas o acesso a trabalho. O que mostro neste ensaio é que a necessidade extrema obriga às pessoas a se sujeitarem a situações cada vez piores - chegando a casos de irem contra seus valores ou mesmo arriscarem sua saúde. Contra os abusos do livre mercado os trabalhadores conquistaram uma série de direitos, cada direito com sua própria lei. Mecanismo de reivindicação de direitos é complicada e, como vimos no ensaio anterior, a complicação deve ser evitada. O desafio que se põe é: como se valer dos benefícios do livre mercado garantindo às pessoas uma vida digna? Seria lutando para que outras categorias tenham os direitos já conquistados por quem tem carteira assinada?
IATROGENIA
Iatrogenia é a descrição de algo comum em tratamentos médicos, é quando os efeitos colaterais são superiores aos benefícios do tratamento. Digamos que um médico percebe que você está com a pressão e o colesterol levemente altos, condição que aumenta ligeiramente a chance de você ter um infarto. O médico, prudente, receita um remédio que diminui a chance de infarto, mas que aumenta em muito a chance de desenvolver uma doença degenerativa. O caso de prescrições médicas fazendo mal foi frequente no passado, Nassim N. Taleb supõe que são comuns também no presente, mas só o perceberemos à luz do conhecimento futuro. Tenho uma tia avó (Alda Hora) que tirou a amígdala preventivamente. Atualmente sabemos que as amídalas ajudam ao sistema imunológico, à época, entretanto, os médicos julgavam que era um órgão inútil. Os médicos a operaram com a boa intenção de prevenir dor de garganta, mas o fizeram ao custo de diminuir o sistema imunológico dela para sempre - este é um caso de iatrogenia.
APLICATIVOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO FAZEM MAL?
Este conceito, originalmente específico à saúde, é de grande serventia para o debate público - onde reinam ideias iatrogênicas. Um exemplo é a uberização da economia. O Brasil sempre teve altos níveis de trabalho informal - trabalhos sem vínculo empregatício e sem os direitos que tal vínculo garante, entretanto a chegada dos aplicativos que intermediam serviços chamou a atenção do público. Atualmente a relação entre os prestadores e a empresa tem um reconhecimento jurídico, ambos pagam impostos e a pessoa que presta o serviço tem algum amparo do INSS (caso sofra um acidente, por exemplo, receberá um valor de licença saúde). Entretanto, no que diz respeito aos deveres do empregador em relação ao empregado os prestadores de serviço estão em situação semelhante ao de quem está no trabalho informal (não recebem férias, por exemplo). Tal situação se dá pois a empresa que intermedia o serviço não tem uma relação empregatícia, não pode, por exemplo, mandar alguém prestar serviço em algum lugar ou em um horário em que haja maior demanda por motoristas.
PROBLEMA EVIDENTE
A prestação de serviço através de aplicativo é um problema bem semelhante ao do trabalho informal: uma relação de trabalho em que a pessoa não tem garantido o que a classe média considera um mínimo para uma vida digna. É um problema constante da sociedade brasileira, mas foi evidenciado pelos aplicativos de prestação de serviço, pois quem trabalha através destes aplicativos presta um serviço muito semelhante a categorias que trabalham na formalização. Taxistas - especialmente antes da concorrência com aplicativos - são da classe média, motoboys têm todos os seus direitos garantidos e muitos ganham bem mais do que o salário mínimo. Imagino que a uberização da economia ofenda alguns que se sensibilizam com a diminuição dos direitos das outras categorias, mas também imagino que muitos se aterrorizem imaginando quando sua própria categoria vá ser ameaçada pelo surgimento de novas tecnologias - imagine, por exemplo, um aplicativo que faça todo o trabalho de um contador, um que faça todo trabalho que você faria em um banco, um através do qual se possa estudar qualquer tipo de conteúdo (observação, tudo isto já existe).
IATROGENIA ECONOMICA E SOCIAL
A iatrogenia econômica e social, neste caso, é a de pessoas bem intencionadas, pessoas que se importam com a sociedade e com o mundo e passam a direcionar seus palpites e seus esforços de maneira que mais prejudica do que traz benefícios. Lutar contra as novas tecnologias e contra a revolução que elas trazem é um caso de iatrogenia. Imaginam que ao lutar contra o aplicativo de transporte estarão lutando em favor da classe das pessoas que prestam tais serviços. Agora uma observação se faz necessária, farei minha análise à luz do simplismo, uma ideologia que prega que todas as ideias devem ser tão simples, transparentes e criticáveis quanto possível.
SIMPLISMO
Quanto mais específico o debate mais complicado ele se torna. Imagine se fizéssemos um debate (e uma regulamentação) para uber, uma para seu concorrente (o 99) uma regulamentação para cada categoria de trabalhadores, uma para cada plataforma tecnológica… Assim, vou generalizar o debate para casos extremos acreditando que o mesmo raciocínio vale para os prestadores de serviço através de aplicativos, mas também para todos os tipos de trabalho informal, bem como para todos os trabalhadores formais.
CASO EXTREMO - PROSTITUÇÃO
É claro que existem pessoas que gostam e são boas em sua profissão como prostitutas, ficariam nelas mesmo tendo a alternativa de um trabalho formal com salário similar. Entretanto esta profissão têm um custo muito alto para quem as pratica: o julgamento pela sociedade e o risco físico pelo que passam, escrevo pensando na pessoa que exerce contra seus valores e por falta de alternativa.
O QUE OBRIGA A UM TRABALHO
Atualmente o Estado brasileiro garante uma assistência de saúde universal (o SUS). Não garante, entretanto, nem moradia nem alimentação. Muitas pessoas chegam a temer a fome ou a falta de abrigo. Esta é uma ameaça extrema, é como ter um criminoso com uma navalha afiada em seu pescoço dizendo: trabalhe, caso contrário você vai comer restos na rua e dormir ao relento!
MELHOR COM O TRABALHO DEGRADANTE DO QUE NA RUA E COM FOME
Ao reconhecer que muita gente está nas ruas transando desprotegida por preços irrisórios e sujeita a todo tipo de violência imaginável logo se pensa em proibir a prostituição! Neste caso estão cometendo iatrogenia social com a intenção de preservar a pessoa de uma determinada vulnerabilidade! Terceiros (as pessoas que proibiram) estão tirando a escolha de alguém - ela nem sequer terá a alternativa da prostituição! O mesmo se dá com os aplicativos de transporte, se os proibíssemos (motivados pela exploração que eles cometem) estaríamos tirando a escolha das pessoas e elas ficariam em situação ainda pior. O mesmo se aplica a qualquer trabalho: a ameaça à uma vida decente (por falta de comida, por exemplo) leva pessoas a trabalhos que elas não fariam por livre e espontânea vontade.
RIQUEZA MATERIAL
Sou extremamente sensível ao debate da responsabilidade fiscal, na conclusão destes ensaios mostrarei que o déficit fiscal é o tipo de solução contra o qual o simplismo luta: é complicado, opaco e é elaborado de uma maneira a respeito do qual é difícil criticar. Também estou ciente e horrorizado com a dívida pública (que passa dos 80% do PIB). Ainda assim o Brasil, como virtualmente qualquer país hoje, tem condições materiais para tirar toda sua população da miséria. Não há desculpa: a indolência, a incompetência e mesmo a falta de caráter não são desculpas (tema que terá seu próprio ensaio). Todas as pessoas terem condições de uma vida digna é um princípio - mesmo que fosse provado (não foi provado) que isto é o pior para a economia eu ainda sustentaria que a vida digna é uma prioridade!
A GENTE NÃO QUER SÓ COMIDA
O exemplo da falta da comida é de miséria extrema. Uma pessoa precisa mais do que isto, precisa passar um tempo com seus avós (que precisam de companhia e podem precisar de cuidados médicos), precisa ter tempo livre para procurar o amor da vida e para cuidar dos filhos, precisa de tempo para perseguir seus sonhos (nem todo mundo tem seus sonhos na carreira profissional). É por conta destas necessidades que as pessoas lutaram por direitos como máxima carga horária, fim de semana, férias… E, tal como apontei em ensaio anterior, todas estes direitos se tornam imposições do Estado, impõem custos. Minha sugestão é substituir todos estes custos por apenas um. O objetivo não é diminuir a qualidade de vida de quem trabalha, o objetivo é a simplicidade, transparência, criticabilidade (almejados pelo simplismo) e, neste caso, a universailização da qualidade de vida. Como fazer isto?
UNIVERSALIDADE
Novamente gostaria de lembrar que quanto mais específica uma solução mais propensa ela é à complicação, opacidade e à falta de criticabilidade. De maneira que a solução que proponho é a mais universal possível, contemplando a dignidade humana da maneira mais ampla que pude imaginar.
CONTRA A ESPECIFICIDADE
Sessenta dias de férias é um benefício apenas a magistrados, só eles desfrutam, abono de cinco dias por ano é um direito de bancários é justo só estas classes terem estes direitos? Salário desemprego é um direito de quem estava em carteira assinada e foi demitido. Não será que quem nem sequer conseguiu o trabalho em primeiro lugar não precisa mais desta renda do que quem foi demitido? Quanto mais específico o direito mais complexo se torna o sistema (tema do ensaio anterior), mas também quanto mais específico o direito menos pessoas são contempladas.
RENDA BÁSICA DE CIDADANIA
Minha sugestão é prover todas as pessoas de uma renda básica de cidadania, assim a própria pessoa escolhe onde morar, como pagar por sua moradia, o que comer… Além desta renda básica o SUS (Sistema Único de Saúde) se faz necessário a quem tem o azar de ser sorteado pelo destino com uma doença muito grave (como alzheimer avançado). Tais pessoas tem necessidade que não são contempladas pela renda cidadã.
LINHA DE CORTE
Repare que as pessoas que trabalham atualmente em uma situação de vulnerabilidade em transportes de aplicativos, a partir do momento em que tiverem a renda cidadã, estarão livres para trabalhar quanto quiserem - se quiserem trabalhar dez horas por dia todos os dias terão esta opção. Entretanto elas não serão obrigadas a tanto, pois o dinheiro da renda cidadã lhes permitirá uma vida digna mesmo que não trabalhem. O mesmo se dará com a prostituição. Ninguém mais terá que se submeter a uma condição indigna - pois o Estado já garantirá uma renda básica suficiente para uma vida digna. Se uma pessoa for trabalhar dez horas por dia ela o fará por opção, por gosto pelo trabalho, por ambição material, não por ameaça à sua dignidade.
DIREITOS TRABALHISTAS
Uma vez que a ameaça à vida digna deixa de existir a pessoa e a empresa ficam em condições iguais de negociação. Assim as condições de trabalho e todos os direitos serão decididos em contrato entre as partes. Observação: não há que se falar em diminuição de direitos enquanto a renda cidadã ainda não estiver vigente, pois a pessoa está em desvantagem em relação às empresas. Uma falência não é tão grave quanto viver na miséria e, em última instância, morrer de fome.
ENCARECIMENTO
Tal renda mínima irá encarecer e retirar diversas pessoas do mercado de trabalho. Para as pessoas que se valem destes serviços isto acarretará em encarecimento. Entretanto, longe de ser uma consequência colateral este é o objetivo da renda cidadã segundo a proposta que aqui apresento. É justamente contra o trabalho por um prato de comida, contra a prostituição por dez reais nas ruas da rodoviária, contra jornadas de trabalho de mais de dez horas de motoristas de aplicativos, contra exploração de pessoas que mesmo em trabalho formal aceitam ficar sem hora de almoço devido às demandas que o empregador exige, é justamente contra o mercado completamente livre que a renda cidadã se coloca.
CONCLUSÃO
Quanto mais específica a solução de problemas mais complicado o sistema se torna e menos pessoas são contempladas pelo direito. A busca por regulamentar aplicativos de prestação de serviços certamente beneficiará as pessoas que prestam o serviço hoje. Mas isto se dá à custa, inclusive, de quem ainda não está no mercado de trabalho. Quem prescreve a solução pode incorrer em mais prejuízo do que benefício aos pobres (iatrogenia social). A solução simples e efetiva é garantir uma vida digna a todas as pessoas através de uma renda cidadã, uma renda que garante alimentação e teto, mas também dignidade. Tal renda oferece um piso para a vida das pessoas a partir do qual elas podem decidir livremente como trabalhar e em que condições. Isto encarecerá serviços básicos, mas este é exatamete o objetivo: retirar a ameaça de miséria da vida das pessoas como ameaça pelo seu trabalho. Com a renda cidadã se torna desnecessário uma lei para cada direito trabalhistas. A partir da renda cidadã os direitos podem ser negociados livremente entre trabalhador e empregador, pois estarão em igualdade de condições.