Um dos temas que mais interessa aos maçons é prática de Justiça. Nesse sentido, pareceu-nos útil elaborar um ensaio com a intenção de colocar a nossa visão de como a Maçonaria tem trabalhado esse tema ao longo da sua história e qual o tratamento que foi dado a ele em nossos rituais. 
A tentativa de estabelecer a diferença entre Justiça e Direito tem sido uma preocupação de muitos doutrinadores, e essa tarefa nunca se revelou ser muito fácil. É uma empresa que vem sendo tentada desde os tempos mais antigos, quando os primeiros rudimentos de civilização começaram a ser desenvolvidos e o estabelecimento de uma regra de convivência entre os indivíduos que habitavam em um mesmo núcleo político-cultural foi necessária.
Direito é uma regra de convivência social. Pertence ao mundo das entidades positivas e como tal deve ser tratado. É uma criação humana e depende de certas condições para existir. E por consequência só existe quando um grupo se organiza politicamente. E por assim ser, ele sempre reflete a consciência do povo a quem ele serve. A forma como ele é posto varia conforme as relações de poder e hierarquia que se estabelecem no seio da sociedade assim organizada, mas, de uma maneira geral, elas sempre refletem a estrutura da matriz de onde ele veio, ou seja, a forma pela qual os indivíduos ganham a vida e as nuances segundo as quais eles se relacionam entre si. Essas relações de produção, distribuição e consumo, que estão na base da economia desses grupos, constituem o que Karl Marx chamou de infra estrutura; já a forma pela qual os indivíduos entendem, valoram e incorporam em seus comportamentos esses valores, é o que ele considera como superestrutura.
    Já a Justiça é um arquétipo que habita o mundo das entidades ideais, ou no dizer de Platão, o mundo dos seres universais, conceituais. Por assim ser, ela não pertence ao mundo das entidades positivas, e sua existência é uma variável que existe na  consciência das pessoas, como um ideal a ser atingido, mas que, justamente pelo fato de não poder ser corporizada numa forma positiva, ela assume uma infinidade delas.
Justiça é como uma nuvem no céu. Muda ao sabor dos ventos e da consciência das pessoas. Assim como duas pessoas dificilmente verão na mesma nuvem o mesmo desenho, também em relação ao conceito de Justiça, ocorrerá uma similitude de visão.
Ao longo da história, homens de intelecto privilegiado e altos níveis de espiritualidade têm procurado encaixar em regras positivas o conceito de Justiça. E essa sempre foi, no fundo de todas as experiências legislativas, o motivo dessas empreitadas. Nenhuma sociedade sobrevive sem que uma noção de Justiça seja positivada em leis. Mesmo que essa noção corporificada não seja do agrado de todos, há que aceitá-la como um padrão a unificar o comportamento dos indivíduos, pois que sem essa conformidade seria o caos, e nenhuma sociedade pode existir sem uma determinada ordem. É dessa forma que nasce o Direito.
Direito é pois, uma tentativa que os homens fazem para dar à Justiça, um ente de caráter ideal, uma forma positiva que possibilite à sociedade tratá-la como um ente real.  É, mais ou menos, como os entes matemáticos, que são abstratos, mas quando postos numa equação, em forma de símbolos que podem ser manipulados, se tornam realidades concretas.
O problema é que, diferente da matemática, pura e simples, a Justiça não pode ser representada na forma de símbolos e a sua manipulação dificilmente resulta em respostas certas e incontestáveis. Porque, na verdade, Justiça é uma forma de Gestalt. Cada um vê o que quer ver e a  sua soma nunca é igual às suas partes. Até porque ela não tem forma, nem tamanho, nem medida.
Justiça é como o conceito de Deus, na metafísica das religiões reveladas. Deus não tem nome porque não tem uma identidade que possa ser recenseada; não tem uma imagem porque ele é todas as formas e não se cristaliza em nenhuma; não pode ser medido porque cabe no ínfimo e preenche todo o imenso.
Por isso, quando falamos em Justiça, somos obrigatoriamente levados a pensar em Deus. Não podemos nos afastar disso. E quando falamos em Direito somos imediatamente levados a pensar no homem e suas relações sociais.       
E isso nos leva, obrigatoriamente, á Maçonaria. O conceito maçônico de Justiça, dada sua estrutura simbólica-iniciática, está estreitamente vinculado à arquitetura arquetípica que lhe deram os mais conhecidos mestres da filosofia e da religião. Uma prova disso é a colocação, em dos seus graus filosóficos de uma “galeria dos grandes mestres universais”. Essa disposição sugere, já de pleno, que os ensinamentos desses mestres são indispensáveis à cultura do maçom.[1]   
A par isso, o maçom que galgar todos os graus da chamada Loja Filosófica, encontrará, nos diversos graus superiores um intenso debate sobre o tema da Justiça e o seu sucedâneo, o Direito. Numa forma discursiva, permeada de misticismo e simbolismo, muito a gosto dos apreciadores dos temas esotéricos, o catecismo maçônico passeia pela história do Direito e da aplicação da Justiça de uma forma sutil e às vezes, até subliminar, de forma que muitos Irmãos, às vezes, nem conseguem identificar que é disso que o ritual está falando. E disso só tomam consciência quando se diz que o maçom deve ser “justo e perfeito” em seus pensamentos e ações.
 
O presente ensaio tem a finalidade de identificar, dentro do ensinamento maçônico, as lições que se referem ao tema ora considerado. Trata-se pois, de um passeio pela história das civilizações e de como elas trataram esse conceito (a Justiça) e a sua formulação em regras de Direito. E como e porque tais formulações foram absorvidas pela Maçonaria e onde se hospedam no seu corpo doutrinário. Temos percebido que muitos Irmãos chegam ao final da Escada de Jacó sem perceber o conteúdo dos ensinamentos que receberam. Isso, face às atribulações da nossa vida diária é compreensível, já que a nossa mente está sempre focada na realidade da vida e pouco propensa à abstrações.  E também porque, sendo a Maçonaria uma sociedade teosófica, que veicula seus ensinamentos através do chamado método psicológico (no dizer de Ouspensky), esses ensinamentos são dirigidos mais ao inconsciente do iniciado do que à sua consciência. Daí a razão de muitos passarem pelos referidos graus sem perceberem o que, de fato, lhes foi ensinado.[2]
Veremos como os conceitos de Justiça e a sua transformação em regras de Direito foram tratados ao longo da História. Desde as mais antigas especulações sobre o tema, entre os povos do Oriente Extremo e Oriente Médio (China, India,Egito, Mesopotâmea) passando pelas civilizações da época clássica(Grécia e Roma), depois pela cristianização do tema e sua repercussão na sociedade medieval. Depois veremos como ele foi tratado na Renascença e o seu reflexo no Iluminismo. E por fim como repercutiu nas sociedades modernas com os adventos das teses marxistas, e suas reações na moderna Maçonaria que resultou da adesão ao positivismo comtista. [3]
Com isso esperamos oferecer aos Irmãos um glossário útil, que despido das vestes esotéricas com que os autores dos rituais o vestiram, possa esclarecer, de uma forma menos sutil, o que a Maçonaria pretende veicular a respeito desse tema tão caro às nossas vidas, que é o Direito e a Justiça.
(continua)
 
[1] A cripta dos grandes filósofos e as oito colunas da sabedoria, tema constante dos ensinamentos do grau 32 do REAA. Para mais detalhes sobre esse tema ver a nossa obra “Mestres do Universo”, publicada pela Biblioteca 24X7.
[2] OUSPENSKY, Piotr Demianovitch. Um Novo Modelo do Universo, São Paulo, Ed. Pensamento, 1928
[3] Referência ao chamado Positivismo doutrina ensinada pelo filósofo Augusto Comte (1798-1858), corrente filosófica que busca explicar as leis do mundo social por meio das ciências exatas e biológicas. Essa corrente só admite como verdades absolutas as que são comprovadas pela ciência.