Sobre Mozart’s e Salieri’s

“Eu temo que esteja escrevendo esse Réquiem para mim mesmo”.

(Aquele que Ama a Deus)

Talvez sejamos todos Mozart e Salieri, por vezes até mesmo simultaneamente (em uma extenuante conduta contraditória que se confirma instantaneamente), mas quase sempre antagonicamente, na eterna procura pela luz que dá vazão a um ou a outro. Uma categórica simbiose caótica. Contudo não somos somente Mozart e Salieri de nós mesmos, alterando entre a autoconsciente mediocridade e a genialidade inerente aos dias cruéis, vida cruel, exilada na misericordiosa ignorância. Não, somos Mozart’s e Salieri’s uns dos outros.

Mas quem dentre os dois é Amadeus? Cain ou Abel? Dionísio ou Apolo? Aquele que pelo esforço desmedido (ainda que errático) e ao rigor da técnica executa com perfeição algo infinitamente ordinário, ou aquele que em sua inimaginável virtude não faz qualquer esforço e não possui a menor pretensão em ama-lo? E o faz mesmo assim, inconsciente.

Com a sombra do abutre chamado tempo acima de sua cabeça, Wolfgang duelou incansável contra o moto-perpétuo do universo, a força que lhe concedia força, e que tão egoistamente a tomou, apresentando-nos assim uma parábola: O lugar comum, o “Easy Listening” sempre perdura e perdurará muito além do vale da ousadia; e por muito mais tempo. Eis o evangelho, o corpo e o sangue do gênio.

São de Mozart os oito primeiros compassos do movimento Lacrymosa, contido em seu Réquiem em ré menor (K. 626), e toda obra até ali (morreu antes de poder completa-la), mas não é por Mozart que o choro flui nesses tais “dias de lágrimas”. É pelo dom em si, a arte oculta de ser um autor, de agir como tal. Chorem então, ó, anjos do céu, pela parcimônia, pelo conformismo em ser tão certamente comum. E comum na terra do nunca, na terra do menos, é sinônimo de detestável.

Quisera os Salieri’s de hoje serem como os Salieri’s do século XVIII; mas creiam quando digo que o obscurantismo os abençoa. Permite que mirem os olhos no espelho somente de relance, e que assim não diferenciem seu próprio rosto de uma máscara de cera razoavelmente fidedigna; que tratem tudo o que concebem tão somente como um produto, uma nota promissória, seja de valor monetário ou de valor social.

Existem hoje poucas canções de amor, mas existem muitas canções “sobre” amor, assim como existem muitos livros sobre dragões, mas nenhum fóssil exposto em qualquer museu. Qualquer um pode ler um livro alquímico, mas poucos sabem como transmutar ferro em ouro.

Como bem disse Clarisse Lispector “Os ignorantes são mais felizes”, Mas não são felizes os Mozart’s e os Salieri’s; não é feliz aquele que sabe quem é.

Até agora tratamos somente sobre as flores da primavera, sobre as terras desbravadas do senso comum. Persistem assuntos mais arredios passiveis de abordagem. Uma casta ainda mais prejudicial de propagadores de ideias, os autorreferentes “autores”, entremeados não só naquilo que chamamos de cultura, mas também naquilo que chamamos de conhecimento. Aqueles que por algum motivo tiveram seus documentos extraviados e não tem conhecimento do nome de batismo, que lhes foi imputado por circunstancias pertencentes ao “acaso”. A eles designo o vocativo de “Salieri’s com ascendência em Dory”

O dito “acaso” que os conduz a essa condição raramente pode ser explicado, mas o que não faltam são teorias. A primeira e talvez mais vultosa delas seja a de que, acostumado com os anos de reconhecimento por parte das mais variadas instituições, portadoras do manual de conduta e temática do bom artista, ele efetivamente achou que se encaixava nesse perfil; assim como Chuang Tzu sonhou em 300 a. C. que era uma borboleta. Quando despertou, não sabia ao certo se Chuang Tzu sonhara que era borboleta, ou se era a borboleta que agora sonhava que era Chuang Tzu.

Vale lembrar que Salieri era compositor da Corte do Imperador José II de Viena, Maestro da Orquestra Imperial (Imperiales Königliches Kapellmeister) e presidente do "Tonkünstler-Societät" (sociedade dos artistas musicais). Coincidências são as muletas dos detetives preguiçosos.

Outra possível explicação é a de que a autopecha de “sabichão” advém da irrefreável necessidade de se provar superior, não por talento, mas única e exclusivamente por meio da sútil arte da carteirada. Afinal o compositor oficial da Corte do Imperador é obrigatoriamente possuidor de um intelecto muito superior ao do pobre autor de óperas que não lotam. Ou não?

Engana-se quem pensa que Salieri inveja Mozart. Não, ele o odeia e arregimentou uma corte marcial contra ele, um paredão de fuzilamento a fim de destruir sua personalidade dionisíaca, devassa e promiscua. Ele não consegue coexistir com uma criatura dotada de tanta magnificência, mas compreende completamente o que faz ela ser tão grandiosa: a arte deriva tão somente da devassidão de Dionísio e, Apolo como sempre foi, à Salieri essa tal arte foi negada.

Aconteceram dois assassinatos. Um matou ao outro, mais alternaram o papel conforme se alternou o cenário, e permanecem e permanecerão assim para todo sempre.

Onde jaz o corpo já há muito tempo descarnado do austríaco? Seus restos mortais residem (visto a inadimplência) na terra virgem, dividindo o holofote do post mortem com tantos indigentes, com os vermes seculares da empáfia rejubilando-se em sua montanha russa de cálcio amarelado. Anônimo, e mesmo assim imortal. Não se encontra visível aos olhos do mundo uma caveira pela qual chorar. Amadeus foi enterrado em vala comum, cuspido e escarrado por uma caterva secreta, mal intencionada e insensível.

Aos que queiram visitar o sepulcro ornado de Antônio Salieri vão ao Cemitério Central de Viena na Áustria. Não encontrarão lá, porém, seu legado; nesse tocante as tumbas (espirituais) se invertem.

É ululante que, o Salieri ao qual me refiro é hipotético, ilustrativo e possuidor de um caráter fabulesco, muito diferente da verdadeira figura histórica. Salieri produziu sim obras de uma seminal grandeza, de um esforço notável e recompensador. Seu Réquiem em dó menor é tocante, soturno e incrivelmente resoluto. Suas óperas Tarare (1787) e Axur, re d'Ormus (1788) representam fielmente toda a opulência característica do período clássico. Infelizmente, não há figura melhor para demonstrar uma narrativa tão dolorosamente perpetuada.

Não desenvolvi esse texto com a ânsia de ofender ninguém, portanto espero que nenhuma carapuça sirva. Formulei-o com o puro e simples objetivo da reflexão. Afinal, sou humano e sou espelho do humano. E para que servem os espelhos senão para refletir?

Antônio Spiassi Mendes
Enviado por Antônio Spiassi Mendes em 01/07/2020
Reeditado em 02/07/2020
Código do texto: T6992805
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