A Teoria da Dependência Aplicada à Guerra do Paraguai

A Teoria da Dependência Aplicada à Guerra do Paraguai

LUCIANO SILVA DE MEDEIROS

PROFESSOR DE SOCIOLOGIA NO IFBA

A Guerra do Paraguai foi o maior acontecimento bélico da América Latina, numa fase militar que as armas de fogo, ainda básicas (revólveres, rifles e canhões), começaram a criar a estratégia de trincheira, muito comum, depois, na 1° Guerra Mundial (1914-1918). As marinhas com barcos à vapor, cobertos de aço (encouraçados), também marcam este momento, por meio da artilharia de média distância a destroçar exércitos em terra ou fortificações medievais (marinha essa que foi inaugurada pela esquadra britânica vitoriana, a “dona dos mares” no século XIX).

A Guerra do Paraguai foi travada no meridional da América do Sul, entre dezembro de 1864 até março de 1870, na área da Bacia do rio da Prata (uma região comparável ao rio Nilo egípcio com seu Modo de Produção Hidráulico, caracterizada por clima subtropical).

Antes da chegada dos europeus, no século XVI, os povos indígenas guaranis ali viviam numa economia natural de subsistência, portanto, sem propriedade privada da terra, mas num regime comunal – regulado pelas estações das chuvas e das cheias dos rios do Estuário do Prata. Havia um sistema guarani de estratificação social com base em castas totêmicas e uma divisão social do trabalho por sexo e idade, de acordo com Claude Levi-Strauss no livro Tristes Trópicos.

Esta “maldita guerra”, como bem caracteriza o historiador brasileiro Francisco Doratioto, envolveu Estados nacionais com menos de 1 (um) século de formação, como o caso do Brasil, a Argentina e o Uruguai contra o Paraguai. O marco foi o Tratado da Tríplice Aliança, com ampla assessoria financeira e diplomática dos ricos ingleses vitorianos. Meio milhão de seres humanos morreram neste período, sendo que o Paraguai teve mais da metade das mortes decorrentes das batalhas. Na sua maioria, índios guaranis (campesinos das missões jesuíticas espanholas) e de negros escravos (das senzalas do Brasil). Em muitas regiões argentinas, como bem salienta o historiador Leon Pomer, morreram mais pessoas se recusando a irem para guerra do que necessariamente no teatro de operações de guerra. A ideologia nacionalista é um dos meios que a burguesia utiliza para fazer com que as classes subalternas vão a guerra para defender seus interesses comerciais de elite social.

A Guerra da Tríplice Aliança, um de seus nomes, foi travada na segunda metade do século XIX. Isso quando acontecia a segunda fase da Revolução Industrial, na qual os países que não faziam parte da primeira fase europeia insular, como EUA e Japão, conseguiam criar novas tecnologias. Eram novas forças produtivas como os motores elétricos e à explosão – que ampliavam demandas por petróleo, cobre, aço, alumínio (existentes em ex-colônias do Velho Mundo).

Fora isso, alguns países europeus continentais também conseguiam inovar, como a Alemanha e a França. Com as patentes de máquinas, alemães e franceses entram na corrida pelo controle de fontes de matérias-primas nas ex-colônias, inaugurando o neocolonialismo e o imperialismo como política diplomática.

Um traço fundamental nas economias industriais nascentes neste momento é a pressão para inovarem, aumentando a produtividade do processo de trabalho, por meio da extração da mais-valia relativa, estudada por Karl Marx no capítulo XIII de O Capital (“Maquinaria e Grande Indústria”). Com a criação de uma base técnica industrial de produção em grandes quantidades (em escala massificada com custo reduzido), há um aumento da demanda de matérias-primas. Isso passa a dar ensejo à inclusão de antigas colônias da fase mercantilista do capitalismo à nova divisão internacional do trabalho capitaneada pela economia fabril.

De acordo com a Teoria da Dependência, especialmente a presente no livro Dependência e Desenvolvimento na América Latina, dos cientistas sociais Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falletto, países como Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai tinham um ponto em comum: eles vinham de economias coloniais. São economias que deram, em cada um destes territórios, determinadas formações sociais, cujo traço maior era que o dinamismo econômico vinha da Europa, não do mercado interno. Os Estados Unidos foi um caso totalmente distinto no sistema de colônias do Novo Mundo, entre os séculos XVI ao XVIII: o seu dinamismo era interno. Seu mercado mais forte era interno. A acumulação de capitais ali vinha dos salários pagos aos seus trabalhadores. A burguesia interna norte-americana era numericamente crescente. Seus lucros não dependiam tanto de exportações. A Inglaterra, por esse motivo, passou a ser um empecilho aos norte-americanos, que se livram dos britânicos na segunda metade do século XVIII, inaugurando a federação como um novo elemento estatal-diplomático. Somaram vários dos seus territórios numa força militar única, abrindo mão da soberania, mas sem perder autonomia. Mesmo assim, diferenças internas entre suas burguesias agrárias e industriais, levaram os EUA, na segunda metade do século XIX, a uma guerra civil de secessão. Nela, o Nordeste dos EUA, vencedor, conseguiu acabar com o escravismo e o latifúndio do sul, colocando de vez os ianques na rota da hegemonia das relações de trabalho assalariadas e do crescimento do seu mercado de consumo interno (sem depender tanto de exportações).

Já o Brasil fora fornecedor de açúcar, metais preciosos e café para Portugal, que, por causa do endividamento com os ingleses, acabaram transferindo a estes boa parte da acumulação vinda de sua colônia. Brasil ainda recriou o escravismo como relação de produção, sendo o escravo uma das mercadorias que faziam parte do comércio e da acumulação mercantil. Por esse motivo, o mercado interno da então colônia portuguesa, o Brasil, não cresceu. Foi duramente sufocado por leis lusas, como as oriundas do Ministro das Finanças do reino português, Marquês de Pombal, no século XVIII. Essas leis vedavam manufaturas dentro do Brasil, para aumentarem assim a dependência de Lisboa.

Já o Uruguai, por conta do clima subtropical e do território com boas pastagens, deu origem a uma economia voltada para o comércio de carne e seus derivados, além do trigo. O escravismo no Uruguai deu margem às relações de trabalho mais voltadas ao campesinato/arrendatário/parceiro/agregado como bem o sociólogo brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, mostra em Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. O Uruguai, que não foi diferente dos demais países de língua espanhola que estão nos seus limites, desenvolveu uma economia de enclave.

Esse conceito de economia de enclave é o principal da teoria da dependência dos anos 60 e 70, entre os cientistas sociais que a fomentaram. Trata-se de uma economia com dificuldades para se diversificar. Uma economia demasiadamente dependente de um gênero ou dois, três, para exportação. Somente por meio de exportação de gêneros primários que as economias de enclave inserem-se na divisão internacional do trabalho na era do neocolonialismo, do imperialismo e do capitalismo industrial. Somente com exportações de poucos gêneros é que os Estados nacionais, como os existentes no Cone Sul da América do Sul, conseguem receitas tributárias e reservas cambiais para injetarem moeda nacional em suas economias. Logo, isso acirra, por um movimento vindo de fora, da divisão internacional do trabalho, a concentração de riqueza nas mãos da antiga oligarquia colonial, que não consegue se transformar em burguesia industrial. Não consegue transformar-se em burguesia industrial, como nos EUA, que foram colônia inglesa, porque não há dentro do país um mercado consumidor ampliado por assalariados. Há classes sociais como campesinos e escravos, que não consomem tanto como um assalariado. O assalariado é vital na formação do mercado interno de bens de consumo e de força de trabalho. Isso está muito bem explicado por Karl Marx em O Capital, capítulo XXIV, na “assim chamada acumulação primitiva”.

Pois bem: na primeira metade do século XIX o mercado mais pujante do Cone Sul era Buenos Aires. Buenos Aires foi a sede do Vice-Reino do Prata. Buenos Aires tinha uma burguesia mercantil e um certo regime de difusão das relações assalariadas de produção. Tinha, por esse motivo, um relativo mercado interno. Pode-se dizer até mais atuante que o do Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil, que ainda matinha as relações de trabalho escravistas como relações predominantes (com a Inglaterra já pressionando para que acabasse a escravocracia, pois queria que o Brasil comprasse mais suas manufaturas fabris). A Inglaterra chegou a entrar em tensões com o Brasil, aprisionando navios negreiros no Atlântico Sul, por meio da sua marinha de guerra.

Buenos Aires não queria perder a influência nas suas antigas áreas do Vice-Reino da Prata, como o Paraguai e o Uruguai. Buenos Aires precisava de terras para produzir produtos primários para exportar por meio do seu porto (seus nativos são chamados portenhos, por causa importância do porto de Buenos Aires, economicamente, no momento do Vice-reinado do rio da Prata, entre os séculos XVII e XVIII). Porém, as oligarquias ligadas à propriedade de grandes extensões de terras, com mão-de-obra semi-campesina dos mestiços com índio guarani (“gaúchos”), como nas imediações dos rios Paraná e Paraguai, queriam soberania. Desejavam Estados nacionais, na forma republicana, passando a usar o porto de Montevidéu para escoar seus gêneros primários agropecuários (charque, trigo, erva-mate) para, por meio do Oceano Atlântico, chegar ao Rio de Janeiro e Europa.

Dessa maneira, a luta interna entre elites regionais, como burguesia comercial portenha e fazendeiros com terras às margens dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai, são o foco da Guerra do Paraguai. Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, é pressionado pelos interesses dos criadores de gado que atuam na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai. Teme os interesses separatistas do sul do Brasil, então manifestados na Guerra dos Farrapos (1835-1845). Dessa maneira, utiliza a marinha brasileira, que, na realidade, era um braço da marinha inglesa, para bombardear o Uruguai, colocando Venâncio Flores no poder daquela república. Venâncio Flores membro do Partido Colorado uruguaio, formado pelos fazendeiros de gado com negócios no Rio Grande do Sul também. O comércio de charque com o Rio de Janeiro era intenso. As maiores vendas de charque gaúcho e couro eram para o Rio de Janeiro, via navegação de cabotagem. Era claro que Venâncio Flores precisava manter aliança com o Rio de Janeiro, por interesses comerciais que sempre suplantam o nacionalismo radical. O sistema capitalista de produção é internacional. Não segue a lógica de ideologias isolacionistas.

O que Francisco Solano López precisava era de uma saída para o Oceano Atlântico. Sem essa saída, o porto de Buenos Aires encarecia os produtos vindos manufaturados da Europa, por meio de altas tarifas aduaneiras. Montevidéu, por meio do Partido Blanco e Bernardo Berro, eram os legítimos representantes dos interesses de uma burguesia comercial uruguaia que tentava rivalizar com a burguesia comercial portenha. Tentaram trazer Francisco Solano López para área de influência do porto de Montevidéu, com tarifas aduaneiras mais brandas.

Não bastasse essa pressão por impostos menores em cima de comércio internacional marítimo, as duas províncias argentinas contíguas ao Paraguai eram de fazendeiros. Queriam soberania, por meio de Justo José de Urquiza. Urquiza promete a Francisco Solano López passagem com suas tropas por meio do território de Entre Rios e Corrientes, como se ele, Urquiza, fosse praticamente o presidente da República da Argentina. E ele não era. Bartolomeu Mitre, representante dos interesses da burguesia mercantil de Buenos Aires, havia se tornado o então presidente da Argentina, buscando acabar com a secessão de Entre Rios e Corrientes, áreas política de Urquiza (extremo norte da atual Argentina).

Dessa maneira, Francisco Solano López é induzido pelos membros do Partido Blanco uruguaio (burguesia mercantil) e os federalistas argentinos (Urquiza e fazendeiros correntinos) a invadir o Império do Brasil e a República da Argentina (com sede em Buenos Aires), o que contrariava os interesses, antes da mais nada, dos britânicos: “dividir para dominar”. Não interessava aos ingleses uma reedição do Vice-reinado do rio da Prata, num Cone Sul confederado. Os ingleses queriam matérias-primas baratas e amplo mercado interno nestes países para consumo de manufaturas (como já disse: pediam o fim do escravismo no Brasil até por meio de crises diplomática, com a Questão Cristie).

Os indígenas e negros foram a massa de manobra destas elites do Cone Sul em conluio com a aristocracia brasileira. Não eram uma massa proletária industrial, mas sim a negação do assalariamento. Como se viu: sem assalariamento não há como o mercado interno crescer, como a burguesia nacional acumular e nem como a divisão do trabalho diversificar as atividades econômicas. Fala-se, na teoria da dependência, de sociedades em esquema dual: estruturas antigas sendo mantidas numa nova estrutura social.

A ideia de nacionalismo é uma ideia burguesa e ligada a centralização política. Esta centralização envolve arrecadação de tributos e obras governamentais em prol dos burgueses.

No caso da América do Sul, tanto de origem hispânica como lusitana, não desenvolvemos mercado interno por causa do escravismo e do campesinismo. Isso bem diferentemente dos EUA, que foram colônia também. Nossas estruturas econômicas legaram-nos produtos primários como principais mercadorias de exportação – formando uma burguesia bem minoritária em relação aos donos de terras. Nossa lógica foi vender esses produtos para conseguirmos moedas como a Libra esterlina, moeda esta britânica, para comprarmos manufaturados da Inglaterra (tecidos, bebidas etc).

Porém, a redução do custo dessas mercadorias que exportávamos advinha não do ganho científico da mais-valia relativa, mas de formas violentas de extração da mais-valia absoluta (formas pré-capitalistas ou acumulação primitiva, conforme Karl Marx demostra tanto nos Grundrisses como em O Capital).

O exército de reserva para que as relações assalariadas no Brasil e no Cone Sul da América do Sul fossem movimentadas advinha das populações mestiças indígenas e mulatas. Depois disso, no final do século XIX, chegam os imigrantes europeus que estavam desempregados nos países de capitalismo originário.

Tanto a Guerra do Paraguai como o sistema colonial que o antecederam em toda América do Sul foram uma das bases da acumulação primitiva. O capitalismo não se coaduna com nacionalismo, já que é um sistema global de produção. Lógico que a navegação teve um papel contumaz para estabelecer a divisão internacional do trabalho. A expansão das atividades econômicas na América do Sul sempre esteve ligada à Europa, fornecendo ouro que seria a base do sistema financeiro de lastro da Revolução Industrial, assim como víveres e leguminosas que alimentariam a massa proletária europeia.

Guaranis e escravos africanos foram sepultados para que as burguesias comerciais pudessem se aliar aos interesses do grande capital inglês.

Prova disso, é que após o fim da Guerra do Paraguai, o Império do Brasil, então escravocrata, caiu e chegou a República com pressão para que todos os brasileiros fossem assalariados.

Nos primeiros cinco anos da República brasileira, no século XX, a Ferrovia Noroeste do Brasil, entre Bauru/SP e Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, colocou, assim como as rodovias, posteriormente, um fim da dependência do Brasil em relação ao Estuário do Rio da Prata. Fez os 500 mil mortos na Guerra Grande serem esquecidos pelas gerações atuais, que hoje já conhecem o transporte aéreo dos jatos.

LUCIANO DI MEDHEYROS
Enviado por LUCIANO DI MEDHEYROS em 18/06/2020
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