A epistemologia genética de Jean Piaget
Esta é uma seção do Capítulo 4 do livro "Terapia e Cosmovisão" que estou escrevendo e que está disponível em http://ctbornstl.blogspot.com.br. Como o capítulo pode ser lido fora do contexto do livro, achei que caberia colocá-lo aqui. Uma ou outra referência geral ao livro pode ser ignorada sem prejuízo do entendimento. Faço uma apreciação geral da epistemologia genética de Piaget.
Como foi dito na introdução, este livro não é um trabalho acadêmico. Pouco espaço é dedicado às referências bibliográficas e pouco valor é dado à tentativa de respaldar as idéias em literatura. Porque então dedicar uma seção à Piaget? Esta pergunta é ainda mais importante se lembrarmos que nenhuma seção foi dedicada a Freud, sendo este autor tão ou mais importante para a psicologia do que Piaget o é para a educação ou o aprendizado. Cabe lembrar que psicologia e aprendizado são dois dos pilares nos quais se apoia o presente livro.
A resposta à pergunta formulada acima é simples. Piaget é um humanista e a visão dele tem muita coisa em comum com a visão aqui apresentada. Em contrapartida, Freud é um cético e sua visão do ser humano é extremamente negativa e apresenta poucos pontos em comum com a presente cosmovisão. Não quero, de forma alguma, diminuir a enorme contribuição de Freud para o entendimento da psique humana. Certamente Freud foi muito mais revolucionário do que Piaget e a importância de fatores como sexualidade, inconsciente, sonhos, repressão e sublimação nos distúrbios psíquicos, deve muitíssimo a Freud. Acontece que o foco do presente livro não são os distúrbios psíquicos, mas sim uma cosmovisão terapêutica, e aí a contribuição de Piaget é maior. O foco em Freud é como curar doentes, ou seja, o foco é no remediar. O foco em Piaget é em prevenir a doença, ou seja, em como criar homens sãos.
Nos parágrafos a seguir, vamos descrever brevemente as idéias principais da epistemologia genética de Piaget, em especial, as idéias que tem ligação com o material que está sendo aqui apresentado. Cabe lembrar que Piaget trabalhou também com educação infantil e isto será quase que inteiramente deixado de lado.
A teoria de Piaget parte da idéia de que o desenvolvimento humano é um longo processo que surge de uma interação entre o ser e o mundo. Ele contesta a suposição da psicanálise de que este desenvolvimento é fruto de instintos (pulsões ou Triebe) bem como a suposição do behaviorismo de que o ele é resultado do mecanismo estímulo-resposta [1].
Piaget teve como tarefa principal examinar a gênese do conhecimento e por isto a sua teoria é conhecida como epistemologia genética. Ele verificou que o desenvolvimento do conhecimento ao longo da vida de uma pessoa passa por mudanças qualitativas além das quantitativas. Assim, existe uma mudança do concreto para o abstrato, do simples para o diferenciado. Ao longo do tempo, o conhecimento torna-se mais sistemático, flexível e adaptado às circunstâncias, ou seja, à realidade.
É o indivíduo que constrói o conhecimento e é a verificação da inadequabilidade de certas concepções para explicar fatos e experiências do dia a dia, que nos leva a corrigi-las. É por isto que a teoria de Piaget é denominada de construtivismo. A inteligência é a construção de estruturas que permitem uma cada vez melhor adaptação às situações que se apresentam. Peças básicas destas estruturas são os esquemas segundo os quais objetos e experiências são ordenados e relacionados.
O esquema (ou estrutura) fornece um padrão ou um modelo segundo o qual conhecimentos e comportamentos são conectados. Por exemplo, um destes esquemas permite fazer a conexão entre um biscoito e uma mordida cautelosa, bem como entre uma maçã e uma mordida firme. Aqui existe uma conexão entre um conhecimento (cognição) da natureza do alimento e um comportamento (forma da mordida). Evidentemente existem esquemas que fazem conexões puramente a nível de cognição (por exemplo, quando se escuta algumas notas musicais e as associamos a determinado compositor, ou quando determinada idéia nos leva a pensar em outra) ou puramente a nível de comportamento (por exemplo, quando se leva um pisão no pé e se reage com um grito).
Uma situação que surge é adaptada a um esquema através dos mecanismos de assimilação e acomodação. A assimilação é a incorporação de uma nova experiência a um esquema pré-existente. Neste caso a estrutura cognitiva (esquema) existente é suficiente para lidar com a experiência e percebê-la de forma adequada.
Existem, no entanto, situações em que é preciso modificar o esquema pré-existente. Por exemplo, a criança desenvolve desde cedo um esquema para agarrar/pegar. Quando ela se depara com um líquido, passa a ser necessária a criação de um novo esquema que, no caso de uma bebida, pode ser o de sorver com a boca, ou, apanhar com a concha das mãos. Aqui trata-se de acomodação, ou seja, trata-se de criar um novo esquema ou modificar um esquema antigo. A acomodação se dá sempre que um fato ou uma experiência não conseguem ser trabalhados / entendidos através da assimilação. A acomodação implica em um certo estágio de desenvolvimento, na medida em que um novo esquema não pode ser criado se não existirem condições para tal. Por exemplo, o novo esquema de apanhar com a concha das mãos só pode ser criado se a criança já tiver habilidade manual para realizar este tipo de operação.
Nenhum comportamento parte da estaca zero. Parte-se sempre de esquemas pré-existentes. É isto que caracteriza o construtivismo, ou seja, o saber é uma construção em que cada nova etapa leva em consideração as etapas já existentes. As estruturas que compõe a construção podem ser congênitas / inatas, ou então, adquiridas.
Na verdade, assimilação e acomodação ocorrem conjuntamente e, em maior ou menor grau, estão presentes em toda percepção. Quando a assimilação prevalece sobre a acomodação, ocorre um processo de centralização em si mesmo (fechamento) porque o indivíduo rejeita novas experiências que não se deixam enquadrar dentro de esquemas pré-existentes. O caso extremo é o do autista. Mas também as fantasias deixam se explicar pelo prevalecimento da assimilação. Quando se tecem fantasias, deixa-se de ver a realidade exterior e refugia-se em uma realidade interior (fantasia). A realidade passa a ser representada pela fantasia. Este é o processo utilizado por crianças muito novas que não tem condição de criar novos esquemas para lidar com novas situações.
Quando a acomodação prevalece sobre a assimilação, padrões comportamentais de outras pessoas passam a ser copiados ou reproduzidos. No caso extremo, passa a não existir um trabalho interior de associação da nova experiência a um esquema já existente. A cada nova experiência é gerado um novo esquema e, frequentemente, esquemas utilizados por outros, são copiados e reproduzidos. Ocorre um processo de descentralização ou de abertura.
Eu acrescentaria a observação de que estas duas tendências não necessariamente são excludentes. O sujeito pode se concentrar em esquemas pré-existentes e se recusar a conhecer tudo aquilo que entra em choque frontal com eles. Quando, no entanto, as circunstâncias o obrigam a lidar com uma nova situação, ele copia esquemas adotados por outras pessoas.
Equilibração significa a busca por um equilíbrio entre assimilação e acomodação. Segundo Piaget, somente com equilibração há cognição. Somente neste caso existe transformação da realidade, porque conhecimento é transformação.
O raciocínio desenvolvido nos parágrafos anteriores pode ser formulado de uma maneira mais geral e mais abstrata utilizando dialética e as categorias de sujeito e objeto. A interação do eu com o mundo se dá através da relação dialética entre assimilação e acomodação. A assimilação se dá quando um estímulo vindo do objeto é integrado em uma estrutura já existente no sujeito. Mas um objeto só pode ser percebido na medida em que existe uma estrutura capaz de percebê-lo. A acomodação significa a criação de uma nova estrutura ou a adaptação de uma estrutura já existente, de forma que a integração seja possível. Através da síntese dialética entre assimilação e acomodação resolve-se a cisão existente entre sujeito e objeto e gera-se conhecimento.
Não existe assimilação sem acomodação pois toda integração do estímulo à estrutura, ao mesmo tempo a modifica. Da mesma maneira não existe acomodação sem assimilação pois toda modificação ou adaptação de uma estrutura visa assimilar o estímulo. A acomodação é centrada no objeto enquanto que a assimilação é centrada no sujeito [2].
A equilibração, ou seja, a busca de um balanço entre assimilação e acomodação se dá em níveis cada vez mais elevados e as estruturas (ou esquemas) vão crescendo em complexidade, permitindo a incorporação cada vez maior de estímulos provenientes do mundo externo [3]. As estruturas do sujeito são acomodadas aos objetos, ao mesmo tempo que os objetos são assimilados às estruturas existentes no sujeito.
Vimos no capítulo anterior que conhecimento é movimento e este é resultado do embate de contrários. De um lado, temos a assimilação como um processo centrado no sujeito. Do outro lado, temos a acomodação como um processo centrado no objeto. Do embate destas duas tendências opostas temos, como síntese, o equilíbrio do qual resulta o conhecimento. O equilíbrio é provisório, pois logo surgem fatos novos tornando necessária nova busca de equilíbrio.
Piaget considera o ser humano como um sistema aberto. Ele deixa claro que o conhecimento é ativo, ou seja, só conhecemos aquilo com o qual interagimos, para o qual temos esquemas já desenvolvidos (assimilação) ou para o qual temos condição de desenvolver novos esquemas (acomodação). Piaget se baseia em uma visão biológica quando diz que o conhecimento é parecido com o sistema digestivo pois só colocamos para dentro aquilo que nos interessa e que temos condição de digerir.
À diferença de Piaget eu não consigo ver o problema da existência dissociado do conhecimento. Para mim, dissociar existência de conhecimento é metafísica, ou seja, é abandonar o domínio da realidade. Se o objeto existe é porque dele tive conhecimento, o que, de forma alguma, implica na necessidade de um contato físico ou sensorial com o objeto. A existência de uma galáxia distante, de uma anã branca ou de um buraco negro não chega a ser uma experiência sensorial, embora isto possa ser contestado, porque cálculos matemáticos e observações feitos através de aparelhos e instrumentação, podem ser equiparados a experiências sensoriais [4].
A percepção é uma construção. Esta é a razão porque a epistemologia genética de Piaget é classificada como construtivismo. Os olhos não são janelas por onde a realidade entra, mas, pelo contrário, a percepção da realidade é uma construção da qual os olhos fazem parte. A percepção que eu consigo ter de um certo objeto através da visão é totalmente diferente da percepção que uma jararaca consegue ter do mesmo objeto. Um exemplo mais realista é a percepção de um cego. Ele tem um conhecimento da realidade diferente de uma pessoa que consegue enxergar e este conhecimento do cego vai moldar a sua personalidade, os seus gostos e interesses. É conhecido o fato de só se ver aquilo que se quer ver, que interessa ver e que temos condição de ver. Este interesse e esta condição é fruto da nossa formação, das experiências que tivemos e do desenvolvimento dos nossos órgãos sensoriais. Se uso óculos de infravermelho eu tenho um conhecimento de uma floresta à noite, muito diferente do conhecimento da mesma floresta sem este recurso. Se esta experiência for repetida por um período prolongado, ela afetará a minha percepção da floresta, podendo inclusive afetar a forma de lidar com ela. A percepção da realidade é parte da nossa formação.
Para conhecer o objeto, há que interagir com ele, há que transformá-lo [5]. Conhecimento é ação. Ele depende do desenvolvimento do sujeito, da sua inteligência e é ela que conduz à objetividade. A objetividade não é uma propriedade restrita ao objeto, como consideram os empiristas, mas sim é o resultado de uma construção que envolve sujeito e objeto.
Em Piaget’s Theory, ele explica o desenvolvimento da criança, utilizando os conceitos de centralização e descentralização [6]. Durante os primeiros anos, a criança permanece centrada em si mesmo, no seu corpo e nas suas ações. O gradual equilíbrio entre assimilação e acomodação leva à descentralização, e a criança, progressivamente, aprende a conhecer outros pontos de vista e a interagir com outras pessoas, favorecendo a objetividade [7]. A componente social implica em uma visão coletiva do objeto, das coisas e dos acontecimentos. Reciprocidade e objetividade são sinônimos. Implicam em abandonar a visão egocêntrica da subjetividade [8].
Piaget, na pg. 120 do trabalho acima citado, narra a história de um esquimó que, perguntado porque sua tribo conservava determinados ritos, responde: conservamos os nossos velhos hábitos a fim de que o universo se mantenha. A dialética nos ensina que tudo se passa nos dois sentidos, causa torna-se efeito e vice-versa. O hábito não é tão somente uma adaptação ao meio em que vivemos, mas, é também, ele próprio, formador deste meio. O mundo é também constituído pelos nossos hábitos, e sem eles o mundo não seria do jeito que é.
Com respeito à centralização/descentralização é interessante comparar as diferentes perspectivas de Freud e Piaget em relação ao antropocentrismo. No final da palestra XVIII das Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Freud qualifica as mudanças históricas das posições antropocentristas, utilizando a palavra mágoa (Kränkung) [9]. O fato da terra não mais ocupar o centro do universo (Copérnico), o fato do ser humano não mais ocupar o centro da criação (Darwin) e o fato da psicanálise mostrar que o ser humano não mais é guiado pelo consciente, representariam mágoas que acometem a humanidade. Já Piaget mostra que, pelo contrário, estas são conquistas que representam crescimento. O centrismo, seja egocentrismo, etnocentrismo ou antropocentrismo representariam a infância e a imaturidade (veja pg. 122 da obra de Piaget citada acima).
Para Piaget, aprendizado e conhecimento são conceitos de significado semelhante. Trata-se da construção do mundo através da percepção. Esta percepção se aproxima do objeto, ou seja, o objeto é um limite. O aprendizado é uma adaptação do sujeito ao mundo que o cerca, mas é também uma adaptação do mundo ao sujeito, já que o mundo inclui o sujeito, a sua ação e percepção [10].
Na pg. 4 de Genetic Epistemology Piaget ressalta que conhecimento não pode ser baseado em raciocínio especulativo. Tem que se respaldar em fatos e em pesquisa psicológica [11]. Com esta afirmação Piaget ressalta a base empírica do conhecimento. O conhecimento, no entanto, não é tão somente resultado de estímulos externos como acreditam os positivistas. É necessário que estes estímulos sejam assimilados e acomodados pelo eu.
Epistemologia genética é soma de empirismo inglês com racionalismo Kantiano. Temos experimentação psicológica aliada à formalização. Nesta última, o ferramental lógico-matemático desempenha papel fundamental. De um lado temos o objeto, o mundo externo, a experiência. Do outro temos o esquema, a estrutura ao qual o objeto tem que ser assimilado. Piaget ainda junta Hegel a Kant quando ressalta a importância do movimento, da ação e da transformação da realidade.
Na pg. 6 ao falar da Epistemologia Genética Piaget faz uma bela síntese da sua teoria do conhecimento ao dizer que ali o leitor encontrará a exposição de uma epistemologia que é naturalista sem ser positivista, que coloca em evidência a atividade do sujeito sem ser idealista, que se apóia igualmente no objeto ao mesmo tempo que o considera um limite (portanto, existindo independentemente de nós, mas sem ser completamente alcançado) e que, sobretudo, vê no conhecimento uma construção contínua... [12] Aqui vale a pensa ressaltar que embora Piaget se apóie em Kant no que tange à formalização e à estruturação do conhecimento, dele se distancia no que tange ao idealismo. A rejeição do puramente especulativo, o respaldo na experimentação e a consideração de ação e interferência com a realidade, dão testemunho deste distanciamento.
[1] A parte inicial desta seção é baseada no trabalho de Kerstin Hecker, intitulado Jean Piagets Theorie der geistigen Entwicklung, acessado em outubro de 2018 em https://userpages.uni-koblenz.de.
[2] Veja também texto de autoria de Dennis Hohmann intitulado Jean Piaget – die kognitive Entwicklung in der genetischen Erkenntnistheorie, Escola Superior Vechta, 2006, consultado em janeiro e fevereiro de 2019 em www.dennishohmann.de.
[3] Aqui temos em Piaget implícita a idéia do todo uma vez que a incorporação cada vez maior de estímulos acaba resultando no todo, ou melhor, se aproximando dele.
[4] O que é um telescópio mais do que a extensão da nossa visão? Qual a diferença conceitual entre um telescópio e um simples óculos? Ambos se compõem de lentes. O computador nada mais é do que a extensão e o empoderamento do nosso cérebro. E o cérebro está ligado aos nossos sentidos. De uma maneira ampla podemos dizer que visão e tato participam dos cálculos de um computador, porque os cálculos nunca poderiam ser feitos sem que fossem vistos ou percebidos através dos sentidos. A construção de um pensamento se dá através da escrita, da fala ou da digitação. O cérebro pode pensar, mas este pensamento só consegue ser exteriorizado através dos sentidos. E qual seria o significado de um pensamento não exteriorizado? Mesmo em um caso hipotético futuro, em que eletrodos fossem instalados no nosso cérebro, podemos entendê-los como extensão dos nossos sentidos, da mesma forma que uma perna mecânica é uma extensão da perna normal.
[5] Aqui entra a dialética, apesar de Piaget não mencionar explicitamente este conceito.
[6] Veja J. Piaget, Piaget’s Theory, em Piaget and his school, Editores: B. Inhelder, H.H. Chipman, C. Zwingman, Springer Study Edition, 1976.
[7] A objetividade é uma tendência, um limite para o qual se tende à medida que o conhecimento aumenta.
[8] Veja Jean Piaget, Para onde vai a educação? Editora José Olympio, 20. Edição, 2011, pgs. 118 e seguintes.
[9] S. Freud, Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, Gustav Kiepenheuer Verlag, 1935.
[10] Veja entrevista de Jean-Cleaude Bringuier com J. Piaget em Jean Piaget – Ein Selbstportrait in Gesprächen, Weinheim, Beltz Verlag, 2004, pg. 169 citado em Hohmann pg. 8, obra já referenciada.
[11] Veja Jean Piaget, Genetic Epistemology, primeira de uma série de palestras dada na Columbia University e publicadas pela Columbia University Press, traduzidas por Eleanor Duckworth e consultado por mim em www.marxists.org em 08/2018.
[12] Jean Piaget, Epistemologia Genética, Editora WMF Martins Fontes Ltda. 4ª. Edição 2012.