“Aquí es donde rebotan los sueños”
Aqui é onde os sonhos são rebatidos. Frase escrita no muro que separa Tijuana e San Diego. Em 2015, o editor da Revista Peabiru, Renan Xavier, me convidou para escrever este pequeno ensaio partindo da pergunta: o que passa e o que fica barrado na fronteira México-Estados Unidos? Minha condição para arriscar uma resposta partiu da pesquisa de observação participante que realizei nas proximidades do muro que divide as cidades de Tijuana e San Diego.
Em seu Culturas híbridas, em 1989, Canclini dizia: “varias veces pensé que esta ciudad es, junto a Nueva York, uno de los mayores laboratorios de la posmodernidad”. Mas bem, em que sentido? Que pós-modernidade? Muita coisa se passou durante 20 anos, até que, em 2009, o mesmo Canclini avaliasse: “diría que ya para mí Tijuana no es un laboratorio de la posmodernidad sino quizá un laboratorio de la desintegración social y política de México como consecuencia de una ingobernabilidad cultivada.”
Esta é Tijuana. Paradoxo. De uma das fronteiras mais polarizadas do mundo. Welcome to Tijuana, tequila, sexo, marijuana. Welcome to Tijuana, con el coyote no hay aduana. Uma cidade onde o hedonismo se encontra com o selvagem e desconhecido? Não... Esta é uma visão idealizada pelos que estão “do outro lado”. Que vêem o outro como selvagem porque vêem a si mesmos como civilizados. Essa pintura hedonista acaba servindo para ocultar grandes problemas, como a migração indocumentada e as deportações.
Como a música de Manu Chao mostra, o clima é tenso. Esse muro é um paradigma do que se insiste em chamar de globalização, que “tanto divide como une; divide enquanto une – e as causas da divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do globo”, como diz Bauman. Divide o povo e une as vias de acumulação capitalista – as veias abertas. Nesse sentido é mesmo um laboratório da desintegração social e política, como diz Canclini, mas não só do México. É um muro sem vergonha. Tão sem vergonha que, não contente em se erguer metros acima, sobre a areia do deserto, se estende até o mar, e avisa: “Perigo. Ferros embaixo d’água”. Ele não separa, ele cria separação. Torna diferente o que é igual.
A areia da praia e do deserto é a mesma. Mas quem caminha por ela, em cada lado, não é. Lá é militarização e controle. Aqui é gente. Quando uma família é separada pela deportação, não pode voltar a se encontrar. Porque quem está aqui não pode ir pra lá, e quem está lá, se vier pra cá, não volta pra lá mais. Para solucionar o impasse, havia um Parque da Amizade, do lado de lá, onde a militarização dava um tempo. As famílias faziam piqueniques, metade de um lado das grades, metade do outro (e ainda falam tanto do Muro de Berlim...). Em 2009, o parque acabou, e foi construído um muro adicional do lado de lá. Agora, quem está lá nem se aproxima, e quem está aqui faz pressão.
É o muro de toda a América Latina. É lá onde se sente mais a pressão de tudo que vem de todo o Sul, desde a Terra do Fogo. Era essa pressão que levavam Pancho Villa e seus 1500 soldados, quando invadiram os Estados Unidos em 1916. A história se repete a cada dia. Muitos Pancho Villa, movidos pela necessidade material, de sobrevivência, cruzam, com papéis ou sem papéis, para o lado de lá, invadindo o lugar com sua latino-americanidade e mostrando que são os verdadeiros donos da terra, pois, como dizem os Tigres del Norte, “Yo no crucé la frontera, la frontera me cruzó”.
Um desses Panchos me marcou. Caía a tarde feito um viaduto e a multidão de trabalhadores mexicanos descia do trem, em San Diego, para cruzar a barreira de volta a Tijuana. Um senhor de cabelos e barba branca levava sua bicicleta, e os guardas do lado de lá lhe chamaram a atenção. E então vi esse senhor berrar o “Fuck you” mais simbólico da história da língua inglesa.
Mas muitos no lado de cá nem chegam a cruzar. Tem gente que nasceu em Tijuana ou vive lá há décadas e nunca foi pro outro lado. Para eles, o muro é uma parede de cenário, como no filme “O Show de Truman O Show da Vida”. Que dizer então da Colonia Libertad, um bairro que cresce se amontoando sobre o muro, e que guarda milhares de histórias de migrantes retornados dentro de suas casas construídas com dinheiro da migração.
De que lado está a liberdade? Água que passa, muro que barra. O Rio Tijuana corta a cidade, margeado pela rodovia ironicamente chamada de Via Internacional. Quando chega na fronteira, o rio passa e o muro rebate a rodovia. Com mãos de ferro, o muro leva a rodovia até a praia. Só não muda o curso do rio porque não pode vencer a Natureza.
E é ali, nesse rio, que está a imagem mais dura desse lugar: El Bordo. O rio é canalizado, e, nas partes rasas do canal, milhares de pessoas encontram sua morada. Ali constroem suas barracas ou criam seus “quartos” em cavernas formadas pelas secas galerias de circulação fluvial. São migrantes deportados, que, não tendo perspectiva de vida no “novo” país onde foram despejados, ficam por ali, às vezes esperam uma hora certa de cruzar novamente, às vezes apenas ficam. Segundo dados do Colégio da Fronteira Norte (Colef), essa população contava, em outubro de 2013, entre 700 e mil pessoas. Setenta por cento deles são detidos pela polícia ao menos uma vez por semana, pelos crimes de “não ter identidade”, “perambular” e ter um “aspecto” ruim.
...Y si los hombres pudiéramos volar... Assim escreveram nas grades do muro. Termino este ensaio inspirado pela metáfora da gente-pássara, trabalhada pela antropóloga Kolar Aparna e pela artista Amaranta Caballero, mulheres de luz que tive a honra de conhecer em Tijuana. “Essa gente com sua capacidade interminável de auto-organização, de imaginação que não se limita por grades ou paredes, sempre voa”.
* Publicado na Revista Peabiru, n. 17, julho 2015.
** Para referências e informações mais detalhadas sobre a pequisa que deu origem a este ensaio, ver:
MOREIRA, Júlio da Silveira. Tijuana: a esquina da América Latina. Notas sobre a vida transfronteiriça e as deportações massivas. In: DURÃES, Telma Ferreira Nascimento et al (orgs.). Tráfico Internacional de Pessoas e outros trânsitos. Goiânia: Editora Espaço Acadêmico / Editoria PUC Goiás, 2014.