QUEM REPARA OS PRATISTAS, NUMA ORQUESTRA

QUEM REPARA OS PRATISTAS, NUMA ORQUESTRA?

Autor: Moyses Laredo

Ele nasceu numa favela, não conheceu o pai, a mãe foi presa quando ainda pequeno, depois de solta, sumiu no mundo, esse sim, pode dizer que se criou sozinho nas ruas, cresceu limpando vidro nas esquinas, quando algum motorista caridoso, jogava umas moedinhas sem muito valor, juntava para comprar um pão, mas, a sua verdadeira paixão estava no sangue, era um percussionista nato, os percalços da vida não o atingia, sempre levava tudo com muita naturalidade, nada o atingia, não sentia inveja de ninguém por mais abastados que fossem, e assim levava a vida, como diz a música do Zeca Pagodinho “Deixa a vida me levar”:

“Eu já passei por quase tudo nessa vida. Em matéria de guarida. Espero ainda a minha vez. Confesso que sou de origem pobre. Mas meu coração é nobre. Foi assim que Deus me fez(...) Sou feliz e agradeço. Por tudo que Deus me deu (...)”

Esse sempre foi o seu lema, por onde andava angariava amizades, pela sua alegria de bem com a vida, e quando podia, acompanhava da porta as batucadas nos bares, ou com os dedos a tamborilar numa caixa de fósforo ou com os muxoxos de língua, como os fanqueiros, que sozinhos imitam vários percussionistas. O compasso musical estava no seu íntimo, era capaz de largar tudo se visse alguma rodinha de samba ou de capoeira onde o ritmo era quem comandava a toada. Cresceu assim, tornou-se adolescente, tinha largado as ruas, conseguiu um abrigo que o acolheu e o educou, foi trabalhar no seu primeiro emprego, era uma loja de discos, ali se sentia em seu verdadeiro mundo, cheio de ritmos, nesse lugar, foi apresentado para a música clássica erudita, primeiro se encantou com a perfeição dos acordes, todos eles entravam na sua cabeça docemente sem o menor ruído, como descreveu, conseguia separar cada instrumento da orquestra e facilmente visualizá-lo de olhos fechados, aquilo o encantou, explodiu de emoção quando entrou o percussionista dos pratos, dando aquela pratada que ecoou na sua cabeça, ele retirou o fone do ouvido e exclamou estupefato – Meu D’US!... o que é isso? O cara dos pratos entrou na “horíssima” (não existe ainda essa palavra) certa, nem um milésimo de segundo antes nem depois, se encaixou com perfeição na vaga das partituras, como se tivesse sido escrito para isso, como se o compositor tivesse pleno conhecimento dos seus acordes e que não poderia viver sem aquele som, nunca pensou que aquilo o encantaria tanto e o tornaria um aficionado desse instrumento. Daquele dia em diante, resolveu ir atrás, pesquisar para saber tudo sobre pratos. Soube que os pratos é um instrumento de altura de sons variadas e indeterminadas, quem controla é o percussionista, ele é feito em liga de metal, geralmente a partir do cobre, em forma convexa e circular. Nas orquestras utiliza-se mais os pratos de choque, ou “pratos a dois”, pois são percutidos um contra o outro. Onde aprender a “tocar” pratos? As bandas musicais tem aqueles tipos, que são montados numa armação metálica juntos à bateria, mas, não é desses que estava falando, queria mesmo aqueles que são tocadas nas grandes orquestras. Os pratos de choque, quando golpeados um contra o outro, produzem um som impactante, forte, normalmente quando toda a orquestra está tocando forte também. Existem várias técnicas de produção de sons a partir do atrito entre os pratos: pode-se deixar o som ressoar até sumir, pode-se abafá-lo logo após o choque, criando suspense, pode-se produzir sons contínuos batendo-os suavemente ou agitando-os. Os efeitos dependem do que a música pede. Em muitos concertos, o pratista não toca mais que uma única vez, depois de longa espera para entrar, porém, sem a sua participação, a música não atinge seu clímax! Todo frequentador de concertos de música erudita, talvez já tenha cismado com a figura do pratista. Enquanto a orquestra se esfalfa, ele está lá no fundo, impassível. A música segue. Os violinistas suam. Os clarinetistas ficam de rosto afogueado. Mas o pratista continua em seu repouso. Em inúmeros concertos, o pratista não dá mais que uma pratada. Que espécie de vocação é essa?

O primeiro fato relevante é que o conhecimento de um pratista não se restringe somente ao seu instrumento. Ele deve dominar todo o campo da percussão, do bumbo ao martelo gigante (usado na Sexta Sinfonia de Mahler). É comum, nas grandes orquestras, que se estabeleça um rodízio, de modo que, quem toca o prato hoje, cuida do xilofone amanhã. Como todo músico erudito, o percussionista precisa dominar a teoria.

Cada vez que conhecia a importância desse instrumento mais se encantava e queria isso pra sua vida inteira, nem passava pela cabeça fazer outra coisa. A sua cidade era pequena demais, não havia como conhecer e aprender sobre esses instrumentos musical. Se mandou, era sozinho mesmo, contava com pouco mais que dezessete anos, não tinha com o que se preocupar, o seu ofício de aprendiz de alfaiate ensinada no orfanato, lhe dava segurança de conseguir um emprego, sabia que os piores serviços, os mais maçantes, é que lhes eram destinados, cortava grandes quantidades de moldes de camisas e batas, com uma tesoura elétrica, chuleava vários cortes, pregava uma infinidade de botões de quatro furos, cosia as casas desses mesmos botões, sabia até alinhavar pequenas peças, isso não lhe rendia bem, mas, em qualquer lugar que fosse seria muito bem aceito, levava consigo ótimas recomendações. Procurou saber em qual cidade havia um Conservatório, ao encontrar, foi justamente nessa que achou de morar. Depois de se estabelecer, procurou o dito Conservatório para se inscrever como aprendiz de pratista, apresentaram-lhe para o grande instrumento feito no mais puro cobre, tinha alças de couro e podia-se extrair sons distintos além daquele provocado pelo choque de ataque, como demonstrou o Maestro que o recepcionou, um homem calmo que transmitia serenidade, disse-lhe que existia o som mais prolongado que vibrava por algum tempo, como uma nota de piano, que emite uma onda de propagação sem controle dos pedais, tudo o encantava. O Maestro muito solícito, porque raramente se via alguém que deliberadamente pedia para aprender esses tipos de instrumentos de percussão, havia até uma boa demanda na sua orquestra, o último tinha perdido a audição. O instrumento, de simples não tinha nada, o paciente Maestro, contou-lhe que a primeira aparição do prato na orquestra foi no final do século XVIII. Algumas partes orquestrais de bombo e pratos foram escritas para serem usadas por um único músico. Um prato de ataque é montado no topo do bombo, permitindo ao músico tocar o bombo com uma mão e o prato com a outra. Nesse ponto da explanação, interrompeu o Maestro e perguntou-lhe, - “Mas como então saber o momento exato, numa música, para entrar com os pratos?” Novamente, lhe foi dito que, primeiramente teria que saber manipular os pratos, pois até mesmo o ângulo em que se encontram no choque, interfere no som, depois, deverá partir para o aprendizado da leitura da partitura específica para os tons do prato, essas partituras são representadas de modo diferente das musicais, seguem, contudo, o mesmo espaço nas pautas. A notação também é feita no pentagrama musical, só que no caso do prato e bombo, as posições das figuras nas determinadas linhas/espaços não vão indicar uma nota musical e sim uma peça específica da bateria, de qualquer forma, o percussionista, tem que ter conhecimento de partituras para poder acompanhar a leitura da música e entrar no tempo certo, do jeito como fora escrito para ele. Os olhos do nosso amigo brilharam de satisfação, pensava ele que a coisa era simples, bastava pegar um e bater contra o outro e pronto, mas nada disso, tinha seus mistérios que ele pretendia desvendar com a ajuda do paciente Maestro.

Assim, os dias transcorreram, de manhã, no enfadonho serviço de ajudante de alfaiate, e à tarde no seu deleite, estudando com afinco a ler e escrever partituras, ele tinha enorme interesse, por isso avançava muito rápido, como disseram seus instrutores musicais, porque nem sempre o Maestro se ocupava com ele, deixava a missão, para outros aprendizes mais adiantados, mas, tudo bem, contanto que lhe ensinassem estava tudo bem, aliás, estava amando aquilo, quando absorto chuleava um interminável corte, ou, costurava centenas de casas de botões, seus pensamentos estavam longe, repassando as partituras na mente, memorizando o que podia, seu trabalho rendia muito, a ponto do dono da alfaiataria querer promovê-lo e dar-lhe mais trabalhos pela parte da tarde, o que sempre recusava, sua tarde era sagrada para os estudos no Conservatório.

Finalmente, depois de mais de oito meses estudando com total dedicação, pode integrar a orquestra de Câmara Experimental do Conservatório, era uma pequena orquestra que se apresentava esporadicamente para fixar os músicos em seus instrumentos. Ocupava um lugar de destaque na pequena orquestra de Câmara, por ser pequena nem sempre o percussionista era requerido, até que um dia, foi chamado para o grande teste, teria que ser aceito em definitivo na dita orquestra. Esse dia foi grandioso, recitariam a Quarta Sinfonia do compositor russo Piotr Ilitch Tchaikovsky em que, o som dos pratos de choque aparece 193 vezes, tinha que se sair bem em todas, caso perdesse uma só notação da percussão, seria censurado, mas, ao contrário, dos que esperavam seu insucesso, ele se superou e não perdeu um só compasso, esteve presente na “horíssima” certa, como se encantou da primeira vez. Nessa tarde, foi muito elogiado como também, sem saber, fora notado por um Maestro de uma Filarmônica da cidade grande, que estava ali justamente para descobrir novos talentos, bateu o olho no menino e logo se encantou com sua destreza e pouca idade, sabia ele por experiência, que ainda lhe restavam muitos anos de aprendizados, poderia ensiná-lo, diferentemente daqueles macacos velhos “do-cu-pelado”, que nada mais aprendem. Pena que era uma orquestra Filarmônica, que são mantidas por doações ou pelo governo, o bom mesmo seria se fosse uma orquestra Sinfônica, ah, essa sim! É composta por músicos profissionais e os salários são iguais os da Renata Vasconcellos da Globo, mas tudo bem, pensou ele, uma escada, se sobe de degrau por degrau, e assim, se mudou para a cidade grande e lá se foram mais cinco anos de sua vida, a bom bater pratos, o que ganhava já era bom de mais se comparado com as esquinas limpando vidro.

Um belo dia, a sorte voltou a lhe sorrir, finalmente fora mais uma vez notado, agora, por pura sorte do destino, o pratista da Sinfônica da cidade vizinha, ficou doente, acamado não tinha condições de acompanhar a Companhia na tournée pela Europa, então, o Maestro amigo, o recomendou, cedendo-o para a dita orquestra, não podia cerceá-lo em seu desenvolvimento musical, gostava muito dele. Ao ter com o novo Maestro, um homem esquelético vestido de jaqueta preta, cabelos brancos, compridos até os ombros, dava a aparência de japonês, falava pouco, mas era bastante incisivo, foi logo dizendo: - “Olhe, aqui o salário é esse, não tem mais nenhuma vantagem, às vezes, se ganha algum bônus, quando o contratante quer dar, mas, não se iluda, fica nisso ai mesmo”. Ele ficou de boca fechada o tempo todo, enquanto o Maestro japonês falava, pensou à princípio, que ele havia se enganado com o valor do seu salário, era demais, coisa impensada para um pratista vindo do interior, sem eira e nem beira, como diziam os portugueses, para classificar os pobres, deixou para o final, quando o homem acabou de falar, o inquiriu. – “Alguma dúvida?”. Ele muito acanhado perguntou ao Maestro – “O salário que o senhor mencionou, está certo? É isso mesmo?” – “Sim, porque você ainda está principiando aqui, depois vai melhorar não se afobe, dê o seu melhor que as coisas mudarão”. Então era verdade, ele iria ganhar tudo isso? Mas, como assim, o que faria com tanto dinheiro, achava que só ganharia isso tudo, se somasse sua vida inteira trabalhando como ajudante de alfaiate, e, no entanto, o Maestro japonês estava lhe oferecendo o salário todo por um único mês!

Desse dia em diante, até à apresentação no grande O Teatro dell'Opera di Roma, na Itália, repassou todas as músicas que seriam recitadas, se deparou com as do grande compositor italiano Antônio Salieri, descobriu os nuances de suas composições e começou a estudar pelos solfejos musicais de suas notas, ou seja, cantando-as, precisava conhecê-lo com profundidade, tinha que se familiarizar com tudo que lhe cabia respeito. Suas composições não tinham os ímpetos de um compositor russo Igor Stravinsky, como em sua obra clássica “O Pássaro de Fogo”, mas, tinha seus encantos e o prato era um dos seus instrumentos preferidos para simular grandiosidade. Na época, diziam que disputava capacidade musical com o grande compositor Wolfgang Amadeus Mozart, em seu “Requiem em dó menor” embora à beira de seu desenlace, teve muita repercussão na corte alemã, então, ele precisava superá-lo, por ser o compositor do Imperador da Áustria, na época. Na verdade, as composições de Salieri são fantásticas, o filme Amadeus (1984) sobre a vida de Mozart não lhe fazia merecimento, o tratou com inferioridade. Tendo vivido na mesma época do famoso Mozart, Salieri foi um compositor italiano que ofuscava o mestre austríaco em sua época de atuação. Ele era muito mais famoso, respeitado e bem sucedido que Mozart.

Mas a verdade é que Salieri foi professor de vários dos compositores clássicos mais famosos da história, como Ludwig Van Beethoven, Franz Liszt, Franz Schubert e outros, incluindo o próprio filho de Mozart, Franz Xaver. Infelizmente, os últimos anos de Salieri foram internados em um hospício, com sintomas de demência, tendo morrido com setenta e quatro anos de idade, até hoje, suas obras são recitadas mundo à fora, talvez até bem mais do que as de Mozart, palavras do próprio pratista.

Na verdade, numa orquestra, o personagem a quem mais admiro, é o pratista, ele treina muito como o amigo de nosso relato, estuda muito, se dedica muito, perde noites em claro, relembrando os pontos, fica parecendo um doido, falando e gesticulando sozinho, e no dia do espetáculo, levanta cedo, mesmo que a orquestra vá se apresentar à noite, já se arruma assim mesmo, quando chega à tarde, começa a se maquiar, põem seu melhor smoker, engraxa bem os sapatos até se ver espelhado neles, capricha na brilhantina nos cabelos, calça as luvas. Dessa vez, a namorada o acompanharia, a orquestra veio até sua cidade, e vai assisti-lo pela primeira vez, com dificuldade ele consegue uma vaga, numa FRISA, acomoda a namorada e a mãe dela. Ficaram ali sentadas, muito emocionadas com a honraria, era a primeira vez que pisavam num teatro, estavam à espera do grande momento, onde ele atuaria, depois de mais de duas horas, atenta ao seu namorado, com os enormes pratos em suas coxas, olhos fixos nele, não desgrudavam um só momento, pois as batidas são tão rápidas, como eram as lutas do Mike Tyson, e por qualquer descuido poderiam perder aquele sublime momento, finalmente, depois de muita expectativas, e de muitas ameaças de bater os pratos, ele, de repente se levanta, ajeita o fraque, endireita as costas e toca os pratos. Isso é tudo, dá uma única batida, mas foi aquela batida de pratos, que o teatro todo veio a baixo de tanta emoção, digo, o teatro não, sua namorada, que não se conteve, ergueu-se da cadeira e deu um sonoro grito, o Maestro levantou a baqueta na hora, se virou para ver aquilo, ela, muito envergonhada já tinha se enfiado debaixo da cadeira, ninguém a viu, e lá ficou até o espetáculo acabar. É por isso que eu admiro esses caras, eles suscitam grandes emoções, faz jus aos seus intermináveis estudos, é para isso que se dedicou muitos anos na vida, o que ele faz, parece pouco, mas sem ele, a música perde seu impacto, dê valor aos pratistas.

Molar
Enviado por Molar em 05/06/2020
Código do texto: T6968791
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.