A LOGÍSTICA DO BODE
A LOGÍSTICA DO BODE
Autor: Moyses Laredo
Em qualquer obra que o engenheiro ou o arquiteto se propuserem a executar, é fundamental planejar bem sua logística, mesmo quando for no quintal da sua casa, que dirá, distante dos centros de apoio, é um item fundamental que deve ser previsto antes mesmo da apresentação do orçamento ao cliente, tais custos mal calculados, podem inviabilizar a própria obra ou trazer enormes prejuízos. No caso em tela, não houve tempo para isso, a concorrência seria para execução de várias linhas de bueiros de concreto tipo BSTC (Bueiro Simples Tubular de Concreto), e algumas galerias de concreto armado, na BR-364 em quilômetros variados, fomos comunicados em cima da hora, dois dias antes da licitação, só tive uma noite para orçar, não houve tempo hábil para visitação ao local, portanto, aceitei concorrer sem ver a parte logística, apenas por informação, de quem conhecia o local das obras, é que fiz as minhas ponderações.
A licitação transcorreu normalmente, dei sorte, minha empresa foi a vencedora do lote que contemplava 4 linhas de bueiros. As obras situavam-se entre os km 145 a 150 da BR 364, Rio Branco Sena Madureira, após o rio Caeté, cerca de 14 a 20 km além de Sena Madureira. Após o resultado, já com os lotes ganhos, mas ainda sem a homologação pela Comissão de Licitação, (tem um prazo de Lei, para as impugnações), montei na minha Hilux 4x4 cabine dupla e fui visitar o local, coisa que deveria ter feito antes, agora no entanto, já era fato consumado. A visita seria para planejar a execução e rezar para que os custos previstos relativo ao item logística de obra, não superasse o valor em planilha. A logística, é quem determina a forma e os acessos dos abastecimentos totais numa obra, refere-se aos movimentos dos materiais, operários, alojamento, alimentação etc.
Tinha conhecimento que nessa época, não havia vestígio de asfalto nesse trecho da BR-364, a estrada estava aberta, o lamaçal imperava, o pior que era tabatinga pura (argila muito fina) que se derretia como sabão ao menor pingo d’água, diziam que se um cachorro mijasse no caminho, o carro não passava, exagero à parte, mas que o risco era enorme de ir no seco e se chovesse não poder voltar. A estrada como estava, era proibido para veículos menores sem tração nas quatro rodas, ainda mais, porque se formavam valas profundas com a passagem de carros mais pesados, carrinhos baixos ficavam montados nas leiras. Quanto à falta de tração não era o meu caso, a Hilux tinha tração nas quatro rodas e mais uma alavanca para engatar a reduzida, que fornecia mais potência ao torque, além do mais, mandei instalar um guincho no para-choque dianteiro. Esse último artifício só servia quando havia alguma árvore para enlaçar o “gancho” do guincho, mas naquele trecho, árvore era coisa rara, o lugar era um descampado só. Então, prevendo uma situação de atoleiro total, como diziam o pessoal do local: “se atolou” - é com as rodas traseiras, “atolou-se” – é com as rodas dianteiras e “se atolou-se” era com as quatro rodas. Sabendo que o socorro era a coisa mais rara de se ter naquelas bandas, improvisei uma vara chata metálica, feita com a maior mola plana de caminhão, desempenada a fogo, com uma argola soldada numa das extremidades e a outra extremidade, cortado o engate do pino, com maçarico. Essa mola era acomodada no próprio para-choque por uma presilha. Quando me via diante do caso - “se atolou-se”, cravava a vara metálica, bem mais à frente do carro, no meio da estrada, até ao talo, na distância correspondente ao comprimento do cabo do guincho, depois engatava o gancho na argola e usando o princípio da aplicação da força ortogonal na vara metálica fincada no solo, obtinha a reação necessária para que o veículo se deslocasse, era só acionar o guincho e de 30 em 30 metros eu saia rindo de qualquer atoleiro. Ainda não vi ninguém fazer isso, inventei a geringonça e deu certíssimo.
Bom, depois da visitação veio a realidade, como chegar com o abastecimento ao local, a dificuldade era maior do que eu tinha imaginado, os relatos que ouvi antes da licitação, não faziam jus à realidade. Previ os custos do pessoal alojado numa pequena pensão em Sena Madureira, que se deslocariam de Pampa (caminhoneta Ford), todas as manhãs para as obras, tomavam café e jantavam na própria pensão, a coisa pegava quando se pensava na merenda e almoço. Peão pega cedo, e o seu trabalho é bruto, no sol haja a cavar, deslocar terras, fazer concreto etc. e lá pelas 9h já tinha que ter uma merenda no jeito, se não, a coisa pegava, eles paravam e ficavam esperando o almoço. O almoço se transformou no maior obstáculo do planejamento, porque o deslocamento para vencer os quase vinte quilômetros até a obra (40 Km ida e volta), gastava-se cerca de 2 horas no pequeno trajeto, se a comida tivesse que estar às 11h, significava que teria que sair da pensão no mínimo às 9h e o preparo, iniciar as 7h da manhã, ai não dava de jeito nenhum. Fui conversar com o pessoal da pensão, vi a desorganização que imperava por lá, cheguei na hora de um bate-boca da cozinheira e o pessoal da pensão, por conta da falta de gêneros para fazer o almoço do dia, o dono tinha sumido, fiquei horrorizado, e se isso acontecesse com o meu pessoal? … primeiro porque eu não estaria junto para dar um jeito, pois tinha que retornar a Rio Branco, a coisa pegaria certamente, não podia deixar que isso acontecesse, mais como fazer?…fiquei algum tempo matutando uma solução, até pensei em mandá-los para a obra somente depois do almoço, mais não teria a produtividade suficiente para atender o cronograma previsto. Então num impulso, resolvi explorar mais adiante além da obra, para ver se havia alguma coisa que eu pudesse ver, como uma possível solução. Pensava em algum bar com sinuca na beira da estrada. Os bares de sinuca começam assim: - primeiro o sujeito arranja um lugar na beira da estrada, faz um pequeno barraco coberto e sem paredes, que caiba apenas a mesa de sinuca com o espaço aberto, “ajunta” muita poeira em cima do feltro da mesa a ponto de travar as bolas, mesmo assim dá pra jogar, depois, contrata o aluguel da dita mesa de sinuca, arruma uma prateleira, põe umas garrafas de 51 (cachaça), nem balcão tem ainda, e pronto! ...tá dado o início ao seu negócio, o investimento inicial não passa de uns 200 reais. Com o aumento da procura, amplia para trás, faz um puxadinho, põem um fogão, traz, ou arranja uma mulher, porque o pessoal pede um tira-gosto, depois outra ampliação, prato de comida, café, pão e por ai vai até que um belo dia surge um barzinho de alvenaria bem arrumado do nada naquele lugar, quem por ali passa pela primeira vez fica a imaginar o que deu no cara do sujeito de colocar um bar ali, no meião do nada, mas, era assim que se iniciava, via a coisa evoluir e muito rápido, era esse tipo que eu procurava. Seguindo na busca, deparei com um rebanho muito grande de bodes no meio da estrada, tive que parar porque os animais não se assustavam com o carro, passei a me deslocar mais lentamente, enquanto seguia, comecei a ligar os pontos, bode é carne e carne nós precisamos, não demorou muito para sair a procura do dono, perguntei ao primeiro “bicicletista” (ciclista) que passou, logo me apontou o lugar bem ali, com os beiços, disse ser a casa do seu Tibúrcio, entrei no curto ramal, coisa de uns 100 metros e lá estava a tal casa, a princípio me espantei porque vi bodes em cima de uma goiabeira, trepados nos galhos, outros no capô da sua velha picape F-100, outros, em cima do telhado de zinco da centina (privada), e no que podiam trepar eles subiam, não sabia que eles eram assim, o homem saiu de lá de dentro com um enorme sorriso, muito simpático de barba rala, chapéu de palha roída nas abas, calça enrolada na canela, presa com suspensórios de corda, camisa rasgada em tiras, botinas de Jeca Tatu, parece que não recebia visitas há muito tempo. Muito constante, se desculpou pelos seus trajes, dizendo estar na lida, me ofereceu logo um cafezinho, cordialidade do pessoal da roça, que de pronto aceitei com prazer, me conduziu para sua casinha, a mulher da cozinha me cumprimentou com um balançar de cabeça, da janela do jirau, ao lado vi uma grande área descampada, notei também um pequeno igarapé ao fundo que a mulher dele usava para lavar e estender roupas, e nisso a conversa fluía sobre sua criação de bodes, fez muitos arrodeios contando toda sua história de como chegou no Acre em 1977, veio do Ceará, da Caatinga, na chapada do Araripe depois, descambou para sua criação de bode, elogiou seus animais, perguntou se eu já tinha provado bode, respondi-lhe que não, aliás, eu nunca havia comido carne de bode mesmo, já tinha sim, me deliciado com uma buchada no nordestes de carneiro, mais precisamente em Cortez, na Operação Nacional do Projeto Rondon (do livro “Meu Pé de Moleque” – autor Moyses Laredo), então em seguida, me convidou para comer, já estava quase passando da hora do almoço, recusei, agradeci-lhe gentilmente, mas ele insistiu e perguntou se eu não comia em casa de pobre?... realmente não era a minha intenção almoçar ali, “não por ser casa de pobre”, mas sim, porque previa almoçar na pensão para ver como era a comida de lá. Diante disso, não tive argumento, então falei – Só se for agora!...me sentei à mesa e experimentei o guisado de bode com jurumum e quiabo...minino, que coisa maravilhosa de bom, nunca pensei que a carne de bode fosse tão saborosa, diferente da carne do carneiro, que me parecia bem mais “adocicada”, já a de bode, nem tem comparação, só o cheiro do bode vivo é que era insuportável, como o bicho fede, mas é natural, eles têm uma glândula que produz uma substância chamada “hircino”, usam esse “perfume” para atrair as cabras. Dali em diante fiquei fã de carne de bode, tinha previsto retornar, com o meu isopor com gelo, para levar um bode inteiro abatido é claro.
Depois do almoço, fomos nos sentar debaixo do chapéu de palha que havia ao lado da casa. Arrastou com sua botina pra perto da gente, dois bancos de madeira, - Senta aí dotô...e se pôs a esticar conversar - O senhor pita? – Não senhor, deixei de fumar há muito tempo, eu acho que a intenção dele era me vender um cordeiro, por isso o excesso de atenção, o homem era comerciante, criava os bodes para vender mesmo, me contou da dificuldade de convencer as pessoas de que a carne é boa, se fosse no nordeste, não ficava um para contar história, falou isso bem convicto, me olhando nos olhos. Ele falando e eu pensando. Concluí que ali estava o que buscava, local próximo, espaço amplo, água a vontade, vigilância para a obra e comida garantida para o meu pessoal, só precisava negociar preço, e outras condições. Tomei cuidados, porque senti que o cabra era bom no “cerca Lourenço” (conversa mole), acontece que a vontade dele de vender, era maior do que a minha de comprar, aprendi que numa negociação, não se pode deixar o outro sentir “cheiro de sangue”, quer dizer, não deixar transpareça que você quer aquilo mais do que ele. O fato é, que realmente era o contrário, eu que precisava mais do que ele, mas não me deixei denunciar, até desdenhei um pouco, disse-lhe que não sabia se o meu pessoal ia gostar de bode, (não tinha contado nada sobre as obras), já estava me impacientando para perguntar-lhe o preço dos animais, quando finalmente ele se adiantou, - Me compre um, seu dotô, que lhe faço bom preço! Em cima da bucha lhe respondi: - E quanto seria esse bom preço? - Trinta “mirrés”, tá bom? (Os bodes deveriam pesar uns 25 a 30 kg cada, depois de limpos) estava bom demais...- É! ... completei, - E se eu comprar mais de um? Seu preço melhora? – Em quantos mais o senhor está pensado dotô? Arriscou de volta, a velha raposa já sentindo o laço da armadilha no pescoço, tinha baixado o preço para pegar o freguês. - Digo umas 10 ou mais. – Ele arregalou os olhos e dizendo: Quanto mais? – É por aí, mesmo, o senhor ouviu bem, talvez até mais, depende do que me disser! - Homi não me diga que o senhor quer comprar mais de 10 bodes de uma vez, é isso mesmo? – Olhe, eu lhe vendo uma pela outra (cabeça) por 25 cada, tá bom? – Eu disse, tá!... mas tem uma coisa, quero só animais adultos e o senhor vai ter que matar e descarnar pra mim. – Mas todos de uma vez? – Não! Somente aquele que for preparar para o almoço e a janta, um bicho desses tem que durar pelo menos uns 5 dias. – Sinceramente não entendi bem o que o senhor quer seu dotô, aí se virou pro lado e aos gritos, mandou a mulher passar um café novo, dos torrados hoje, que a conversa estava indo boa demais. A mulher botou a cara na porta e sumiu de volta, acho que estava ouvindo a conversa. O homem continuou com as suas perguntas, - Mas dotô, o que o senhor quer fazer com toda essa carne? – Eu soltei o assunto em doses homeopáticas, para que absorvesse lentamente, se falasse de uma vez, talvez tivesse que repetir várias vezes e poderia até perder na negociação. Comecei dizendo que “talvez” eu tivesse que construir um barracão ali perto, para o meu pessoal morar por uns 90 dias, precisava fazer umas obras de bueiros que ganhei aqui na estrada. Ele muito esperto, nem me deixou terminar, se ofereceu logo, disse que se eu quisesse poderia fazer no seu terreno, bem ali ao lado, apontando o terreiro vazio onde a mulher estendia roupas, já de olho no barracão que poderia ficar pra ele, quando findasse as obras. Como disse, o “cheiro de sangue” estava forte demais. O café chegou borbulhando, esfumaçando um aroma diferente dos cafés da cidade, aquele era torrado e moído ali mesmo, veio num bule de esmalte e mais dois copos de vidro de compota, numa bandeja de madeira com alguns bijus de farinha seca, a cara da mulher denunciava a alcovitagem dela, tinha ouvido toda conversa...serviu o café e arriou três colheradas de açúcar no copo do seu Tibúrcio sem piedade, olhando pra mim, sorrindo, disse, - ele só gosta do seu café bem docinho, depois de mexido, vi os três dedos de açúcar que ficou no fundo do copo dele. Numa reação química, o açúcar do fundo é o precipitado da reação, ou seja, aquilo que não reagiu, era excesso, então pedi-lhe para eu adoçar o meu. Esperei a mulher sair, então comecei a falar. Seu Tibúrcio o negócio é o seguinte, eu posso até fazer o barracão aqui no seu terreno e deixar ele para o senhor quando terminar as obras, mas ai temos que negociar, - diga lá seu dotô, como vai ser o seu negócio?...continuei, eu compro os bodes no preço combinado, de 25 cada, mas acho que vou até precisar de uns 20 pelo menos, o senhor vai ter que matar e descarnar eles, e a sua mulher, vai preparar as refeições, café, merenda, almoço, merenda e jantar. Eu fornecerei todo rancho (café, açúcar, bolacha, arroz, farinha, feijão, macarrão, sal etc.), e em troca lhe deixo o galpão de uns 7 x 4 de madeira, com pintura a cal, piso assoalhado, coberto com telhas de zinco, mais um banheiro com vaso sanitário, pia e chuveiro, ainda deixava uma fossa com sumidouro, que o senhor poderá usar sem problema por muitos anos. Vou precisar também de um espaço para descarregar o cimento, a brita, o ferro e a areia. Ele ainda abismado com o negócio, só escutava atento para não perder nenhuma palavra minha, acho que era o maior negócio que já tinha feito, começou meio gaguejando, - Quer, quer di-zer que o se-nhor, quer tro-car os serviços da mulherada daqui, de fazer comida para seus trabalhadores...mas me diga mesmo, e quantos homens vem? – Eu disse, somos em 10 a 15 homens, ao todo, no pico máximo das obras. Ele continuou sua conversa – Então vamos lá, é preciso deixar bem claro a sua conversa dotô, então, a mulherada vai fazer comida para o seu povo em troca do barracão prontinho? - O sr. vai fornecer o rancho? – Não vai arrancar nenhuma tábua quando sair? – Vai deixar as portas e janelas? – Sim, sim para tudo meu amigo, depois que eu sair, o barracão é todinho seu. – Se o sr. quiser a gente bota isso no papel, disse eu! Ele pulou, - De jeito nenhum seu dotô, a minha palavra é um tiro de doze (espingarda de grosso calibre) e a minha também, finalizamos por ai, a conversa.
Deu certinho, com a nova logística implementada, os vinte bodes foram suficientes para os quase noventa dias de obra, até almocei lá várias vezes, a mulher do sr. Tibúrcio, se superou em modalidade de pratos, a peãozada queria fazer outra obra por lá, só sei que conseguimos acabar tudo uns 15 dias antes do planejado, menor custo operacional, mais economia no item logística, tudo de bom. Ainda deixamos muitas sobras de materiais para o seu Tibúrcio, não interessava trazer de volta. Ele ficou alegre que nem pinto em bosta, como disse o Vicentão, o valentão da comédia dramática Alto da Compadecida, brandindo uma faca, “Chicó quer morrer e eu tô doidinho para lhe matar, vai dar certinho” e deu tudo certinho mesmo!