A INTERPRETAÇÃO DO POEMA

“Não tem porque interpretar um poema. O poema já é uma interpretação.” Mario Quintana. (*)

– Fonte: página do “Tá escrito”, in Facebook, em 26/05/2020.

(*) poeta, tradutor e jornalista gaúcho, 30 de julho de 1906, Alegrete, RS; 05 de maio de 1994, Porto Alegre, RS.

Sim, o poema já é uma interpretação, e esta (a primeira) é a do poeta-autor. Aliás, não é bem a deste, e, sim, a do seu alter ego, esse hóspede por vezes insólito e incômodo que habita a inquietação do agente autoral. É este personagem que escreve o poema, sobrepondo-se à parcela racional da psique do autor. O alter ego é a máscara individual ou múltipla, como é o caso em Fernando Pessoa, que, até 2010, descobriu-se que são 127 (cento e vinte e sete) heterônimos e semi heterônimos, segundo José Paulo Cavalcanti Filho, em sua obra "Fernando Pessoa – uma quase autobiografia: Rio de Janeiro: Record, 2011. Álvaro de Campos, um dos seus eus (alter egos) filosóficos de FP, registra: “Assim sou a máscara”, tão aderente ela está no seu eu.

Estou cada vez mais convicto de que o ego não consegue produzir Poesia, somente a Prosa – a expressão prosaica – porque a sua criação está assentada nos postulados da racionalidade, ou seja, gerado pela razão. Já no alter ego prepondera o sentir emocional, a emoção em catarse, liberando as ideias mergulhadas no cadinho fervente do caos interior.

Bem, para finalizar: o texto trazido a público por MQ tem, a meu ver veracidade parcial, porque sendo a fala poética uma proposta ou sugestão sobre a transmutação da matéria da vida, assentada na farsa, na fantasia, na invenção e nos sonhos, curiosamente, contém uma tão instigante veracidade na proposta-sugestão que lavra o pensamento do autor, de modo a que possa ser capaz de cooptar o poeta-leitor como uma defensável verdade.

Tenhamos em conta o que diz Octávio Paz (1914-1998), ensaísta, tradutor e diplomata mexicano, Prêmio Nobel de Literatura de 1990: “Poema é um organismo verbal que contém, emite ou suscita poesia”. Portanto, quem dá vida à proposta poética é o leitor. Sem o ato de leitura deste, o texto poético acaso tido ou havido é matéria inanimada, não vive por si próprio, exige a recepção pelo leitor.

Assim posto, cada receptor – a quem costumo chamar de poeta-leitor – vai fazer uma leitura peculiar (e singular) do conjunto textual em pauta. Possivelmente teremos uma interpretação individuada de parte de cada um dos leitores, mesmo que haja similaridade de entendimento da proposta-sugestão, sendo que é muito improvável que esta compreensão venha a ser absolutamente igual em cada qual.

Ainda convém aduzir novamente um fragmento de Octavio Paz, visto que a leitura do poema mostra grande semelhança com a criação poética original: “O poeta cria imagens, poemas; o poema faz do leitor imagem, poesia, pois é via de acesso ao tempo puro, imersão nas águas originais da existência. A poesia não é nada senão tempo, impulso rítmico perpetuamente criador”.

Parece-me ser assim que o poema se recria na cabeça de cada receptor. Esse um dos mistérios da Poesia: a sua atemporalidade, porque a leitura da peça poética, em cada momento histórico, recria o poema, devido ao “impulso rítmico perpetuamente criador” e lhe dá contemporaneidade como ideia ou pensamento.

Luiz de Camões (séc. 16) e Fernando Pessoa (séc. 20) são bons exemplos, em nosso idioma: em vários dos seus poemas, a cada momento, em cada século, a vida se recria através de um entendimento baseado não somente em sua historicidade, mas adequado ao mundo fático em que vive o poeta-leitor. Ainda que seja necessário ter-se em conta de que a literatura não se aplica diretamente ao plano da realidade que nos limita a ele, mas nunca é delimitador do alcance da arte poética, porque a esta não é aplicável nenhum limite.

– Do livro inédito OFICINA DO VERSO: O Exercício do Sentir Poético, vol. 02; 2015/20.

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