Casa de Papel: Liberalismo x Intervencionismo
JOGO DA VIDA
Pense em uma mesa de sinuca com bolas espalhadas em linha reta em equidistância. Um bom jogador facilmente consegue acertar uma bola e derrubá-la na caçapa (geometria/física básica), um excelente jogador consegue bater em uma bola para que esta bola bata em uma terceira e ela caia (duas relações causa/consequência). Agora imagine um jogador bater a bola branca em uma bola, esta bola tem que acertar uma terceira bola que está em movimento retilíneo e esta terceira bola tem que acertar uma bola que está em movimento circular! O que o líder do grupo de assaltantes faz no seriado é exatamente isto, ele concatena diversas relações de causa/consequência, mas não com bolas de sinuca (que são estáticas), mas com pessoas, que são vivas, vibrantes, inteligentes, emotivas! O seriado usa a metáfora do xadrez, entretanto esta metáfora é equivocada. No xadrez as regras são fixas, claras, previsíveis. É possível treinar ao longo da vida para o ambiente controlado do jogo de xadrez. Entretanto no assalto à casa da moeda é impossível dominar todas as variáveis: a intempestividade, de alguém, um equipamento que porventura venha quebrado…. Não digo que o assalto à Casa da Moeda é impossível, digo que o assalto daquela maneira (centralizada por uma pessoa que antevê cada adversidade) tem um elo frágil: a sagacidade de uma pessoa (o Professor), se ela falhar o plano todo vai por água abaixo. É exatamente esta a crítica que mais me motiva contra ideologias como o comunismo: a centralização torna a administração um elo frágil da sociedade. Não sou contra a existência do Estado, sou contra a prática de diversos estados (como o brasileiro) de centralizar decisões estratégicas na mão de uma cúpula de especialistas. Como exemplo do que sou contrário cito a existência da taxa SELIC: uma cúpula de especialistas determina o preço do dinheiro.
O QUE SE DIZ x O QUE SE EXPRESSA
Numa obra audiovisual, como é o caso da série Casa de Papel, há a opção de uma mensagem falada e há a opção de uma mensagem mostrada visualmente, sendo a segunda considerada superior à primeira. Hitchcock talvez seja o maior ícone deste segundo caminho e é aclamado por isto. Entretanto em diversas grandes obras todo o drama se dá em torno do texto falado, ainda assim o resultado é excelente (é o caso, por exemplo, de Deus da Carnificina). De maneira que é injusto dizer que o uso do texto é inferior ao uso da imagem. Ao invés disso defendo que qualquer veículo (texto escrito ou falado, imagens em movimento de atores ou desenhos, trilha sonora, fotografia, cenografia….) desempenha uma função artística quando estão carregadas por uma ou mais camadas de entendimento que enriquecem quem está assistindo. Por isto é arte: por ser subjetiva (tem efeitos diferentes em pessoas diferentes). Este ensaio se presta a discutir um texto e um subtexto da série Casa de Papel. Certamente poderia escrever este ensaio sob a ótica dramática do conflito dentro grupo (entre os assaltantes) ou sobre a ótica do conflito do grupo contra a polícia. Entretanto analisarei apenas sobre a ótica política/econômica.
QUEM É ROUBADO
Usualmente em um roubo bem sucedido há um beneficiário (o ladrão) e um prejudicado (a vítima). Entretanto na primeira temporada o grupo de Dalís (ao assaltar os protagonistas se fantasiam de Salvador Daí) elabora um plano diferente: entrar na Casa da Moeda e fabricar dinheiro. Se o dinheiro nem sequer existe ninguém será lesado, correto? Esta é a impressão que nós temos. Os assaltantes são contra sistema, eles ficaram furiosos porque nas crises de 2008 o governo imprimiu dinheiro para socorrer grandes empresas. O personagem que centraliza a execução do roubo (alcunha Professor) está ciente de que isto é um engano. Na primeira temporada ele explica (e ao fazer isto explicita uma crítica liberal ao sistema) como o socorro ao sistema financeiro via impressão de moeda é um roubo à toda a população (pois quando o Estado imprime dinheiro o valor do dinheiro que cada um de nós possui diminui). De acordo com os Dalís o assalto à casa da moeda é um ataque ao sistema, pois mostra que imprimir dinheiro é uma forma de explorar a população.
OUTRA CRÍTICA AO ESTADO
Já o roubo ao Banco da Espanha (na segunda temporada) é uma reação a ação do Estado. O governo espanhol captura e tortura um personagem (alcunha Rio). Nas conversas o grupo de Dalís (os assaltantes se fantasiam de Dalí) falam sobre como os Estados sistematicamente transgridem os direitos humanos, seja em operações secretas, seja através de torturas praticadas em lugares fora de jurisdição (como é o caso de Guantánamo, a prisão que os EUA mantém em um território cubano). Ou seja, tanto na primeira temporada como na segunda o grupo se apresenta como resistência contra o Estado. Na primeira temporada contra o roubo que o Estado faz à população em geral (através da impressão de dinheiro), na segunda temporada contra a sórdida e sistemática transgressão de direitos humanos feitas pelo Estado (exemplificada pela tortura ao Rio).
LEITMOTIV SOCIALISTA
Certamente o que dá o maior ar socialista é um artifício que o seriado usa sempre que as personagens se reúnem em prol de um objetivo comum: as personagens cantam Bella Ciao, música popularizada pelo Partido Comunista (partido internacional que já gozou de muita popularidade pelo mundo). Leitmotiv em alemão significa “motivo condutor”. É uma frase musical utilizada repetitivamente. Extrapolando para o contexto audiovisual o leitmotiv de Casa de Papel é a música ‘Bella Ciao’, mas não a música apenas, mas todo a confraternização do grupo em prol de um objetivo comum: todos cantando e expressando sua vitalidade, seu entusiasmo pelo objetivo e em comunhão com o grupo, este é o leitmotiv socialista.
XADREZ x MÁGICA
Como se dá o assalto à Casa da Moeda? Através de um plano extremamente complexo e bem formulado, um plano que prevê diversas causas x consequências. Muitas vezes usam a metáfora do xadrez: uma jogada leva a outra jogada, quem é capaz de prever com antecedência diversas jogadas está em vantagem. Soma-se a isto que o grupo de assaltantes passa dias dentro da casa da moeda, então os recursos necessários à reação dos movimentos da polícia devem ser trazidos antecipadamente (no momento da invasão). Tanto a elaboração do plano é centralizada pelo Professor como a execução é liderada por ele. O professor é quase um super herói (ou super vilão) capaz de antever os movimentos da polícia em um nível de precisão mágico.
AUTOCONFIANÇA DO ESTATISTA
O estatismo se baseia na ideia de que o alguma autoridade central (ministro da cultura, presidente do banco central, ministério da saúde, senado federal…) é mais habilitado a saber o que é melhor para cada pessoa do que ela mesma. A autoridade central, por exemplo, pode determinar que cada pessoa use cinto de segurança quando está andando de carro. Qual é o limite da intervenção na liberdade de cada pessoa? Diversas correntes de pensamento tem respostas diferentes, quanto maior a fé na habilidade de uma autoridade central em manipular variáveis em prol de um resultado determinado mais estatista será aquela corrente de pensamento. Alguns keynesianos, por exemplo, acreditam que pode manipular as variáveis econômicas para suprimir os ciclos econômicos. Alan Greespan, ex presidente do FED, foi aclamado por suprimir as crises econômicas durante sua gestão, infelizmente seu microgerenciamento da economia potencializou diversas bolhas especulativas (especialmente as das empresas de tecnologia e, subsequentemente, as de imóveis). Quanto maior a percepção (por parte de uma autoridade monetária central) de que uma crise irá estourar maior e mais complexas as intervenções na economia se fazem necessárias para evitar a crise econômica - entretanto mais complexa e grandiosa se torna a próxima bolha especulativa.
PROFESSOR: O REPRESENTANTE DO ESTADO CENTRALIZADO
O personagem Professor critica o Estado por socorrer grandes empresas (especialmente do sistema bancário) através da impressão de dinheiro, também critica o Estado por infringir os direitos humanos (através da prática de tortura). Entretanto, no contexto do assalto ele desempenha o papel do Estado centralizado, pois ele planeja, coordena, ensina e decide. A autonomia das decisões está em uma medida desproporcional com ele. Está certo que ao longo do assalto algumas situações saem do controle e as demais personagens tomam decisões. Mas isto é a exceção - e também são as falhas do planejamento/execução do Professor, que foi incapaz de prever nos mínimos detalhes cada interação.
MENSAGEM SUPERFICIAL (PRIMEIRA CAMADA DE ENTENDIMENTO)
Quanto mais superficial uma informação (quanto mais próxima da primeira camada de entendimento) mais objetiva é a mensagem. A mensagem explicitamente passada através da fala de personagens, de que o Estado é uma ameaça aos cidadãos, está na primeira camada de entendimento. Seja a fala de que a impressão de dinheiro se constitui em um roubo à população, sejam as falas que mostram que os poderosos do Estado são capazes das maiores crueldades para atingir objetivos específicos (mesmo que objetivos pessoais). A interpretação desta mensagem já é subjetiva (depende da formação pessoal). Entendo que estas críticas são liberais, pois são críticas muito semelhantes à de integrantes da escola austríaca de pensamento econômico. Alguém com uma formação socialista, entretanto, pode entender que estas são críticas ao Estado capitalista.
MENSAGEM EXPRESSADA (SEGUNDA CAMADA DE ENTENDIMENTO)
Quanto mais profunda a mensagem mais subjetiva (mais pessoal) ela é e menor o controle de quem fez a obra. O que Casa de Papel expressa para mim é uma profunda fé na centralização e na execução: os planos são elaborados por uma cúpula (Professor e Berlim), a execução é centralizada em uma autoridade central (Professor). Tal modelo se coaduna com ideologias estatistas (como o socialismo e o keynesianismo), de maneira que para mim o que a série expressa é a fé no Estado centralizado.
O QUE FALA x O QUE EXPRESSA
O seriado textualmente (em uma primeira camada de entendimento) faz críticas ao estatismo: o Professor acusa o Estado de fazer transferência da riqueza da população em geral para o sistema bancário através da impressão de moedas, também acusa o Estado de institucionalmente (embora não legalmente) infringirem direitos humanos (com tortura, por exemplo). Entretanto o seriado expressa outra coisa: através da sua fé na atuação do Professor o seriado Casa de Papel, em uma segunda camada de entendimento, defende um Estado centralizado.
CONCLUSÃO
Em uma primeira camada de entendimento a série se aproxima do liberalismo (pela crítica ao Estado), mas também se aproxima do marxismo (pois se vale da de uma música popularizada pelo Partido Comunista, Bella Ciao). A série flerta com estas duas maneiras de pensar com maestria, sem ofender nenhuma das duas: as críticas ao Estado são críticas da Escola Austríaca, mas que marxistas poderiam aceitar como críticas ao estado capitalista. Já a música Bella Ciao, embora popularizada pelos marxisas, tem uma letra extremamente liberal. Vale notar que a música, embora popularizada por marxistas, foi o símbolo do movimento antifascista italiano, movimento que contou não apenas com marxistas, mas também com liberais, católicos, anarquistas e outros. Além de que a letra da música é completamente adequada ao liberalismo. Em uma segunda camada de entendimento (pessoal), a série me expressou uma profunda fé na centralização da execução, fé bem apropriada a ideologias estatistas (como o marxismo e o keynesianismo).
Acordei de manhã
Minha querida, adeus, minha querida, adeus, minha querida, adeus! Adeus! Adeus!
Acordei de manhã
E deparei-me com o invasor
Ó resistente, leva-me embora
Minha querida, adeus, minha querida, adeus, minha querida, adeus! Adeus! Adeus!
Ó resistente, leva-me embora
Porque sinto a morte a chegar.
E se eu morrer como resistente
Minha querida, adeus, minha querida, adeus, minha querida, adeus! Adeus! Adeus!
E se eu morrer como resistente
Tu deves sepultar-me
E sepultar-me na montanha
Minha querida, adeus, minha querida, adeus, minha querida, adeus! Adeus! Adeus!
E sepultar-me na montanha
Sob a sombra de uma linda flor
E as pessoas que passarem
Minha querida, adeus, minha querida, adeus, minha querida, adeus! Adeus! Adeus!
E as pessoas que passarem
Irão dizer-me: «Que flor tão linda!»
É esta a flor do homem da Resistência
Minha querida, adeus, minha querida, adeus, minha querida, adeus! Adeus! Adeus!
É esta a flor do homem da Resistência
Que morreu pela liberdade