O SUFIXO “…NTE”
“Última flor do Lácio, inculta e bela, (…)”[1]. Sim, bela, de uma beleza que é compartilhada com italiano e espanhol – retomo adiante. Essa beleza é, antes de tudo, formal, estética, pelo suave balanceamento de vogais que falta a tantos falares.
Transformado a partir do latim e enclausurado no extremo oeste da península ibérica e da Europa toda, o português ainda conserva raízes fiéis a sua língua-mãe. Sofreu grande influência (de forma positiva) do árabe, durante a ocupação moura [711 → (1139 até 1492)], notadamente no vocabulário, sendo que as suas ortografia e a sintaxe foram pouco afetadas.
Ainda, vale lembrar que: 1º) o latim clássico não possuía o modo “infinitivo” para os verbos; 2º) muitos gramáticos consideram que, em português, são apenas três as conjugações e que a quarta, representada apenas pelo verbo “pôr” e todos os seus compostos, não é mais que uma variante da segunda, fazendo remissão às formas arcaicas “poner → poer” para esse verbo.
O sufixo “nte” indica, antes de tudo, o espólio do particípio presente – este modo (como presente) há tempos desapareceu de nossa gramática, tendo restado, contudo, o particípio passado.
O particípio presente deu surgimento a termos ora classificados lexicamente como adjetivos (podendo estender-se para serem substantivos). Ele vai juntar-se ao infinitivo, sendo suprimido o “r” final; como existe a vogal temática, o sufixo fica ampliado para três: “ante, ente e inte” (ou quatro, se aceitarmos a quarta conjugação: “onte”). No caso dos verbos regulares, a fusão é quase imediata. Veja abaixo:
  • Fala(r) + nte [ou fal(ar) + ante] → falante
    Corre(r) + nte [ou corr(er) + ente] → corrente
    Segui(r)[2] + nte [ou segu(ir) + inte] → seguinte
É o mesmo se tomarmos o particípio passado, suprimirmos os sufixos “ado, edo e ido” e acrescentarmos “ante, ente e inte”, respectivamente:
  • Fal(ado) + ante → falante, etc.
Os verbos irregulares, por essa sua razão mesma, ou não se permitirão à regra acima ou ensejarão formas não existentes em nosso léxico. Ex.: ser → sente, vir → vinte, subir → subinte.
Mais, temos que levar em conta o aspecto semântico do resultado. Veja tirar, cujo sentido primeiro é o de suprimir; ele leva a um p. presente que, em certas acepções, foge a esse sentido: tirante. Pôr e tirar são antônimos, mas ponte e tirante, não (a ponte tinha oito tirantes).
A rigor os termos oriundos do fato exposto mais atrás, sobre o particípio presente, querem dizer “o que o verbo está a indicar”, ou seja, os seus modos sintético ↔ analítico. Veja:
  • Falante ↔ que fala
    Corrente ↔ que corre
    Seguinte ↔ que segue
Observe que em inglês, que não é uma língua neolatina, mas que paga um grande tributo ao latim, com quase metade de seus termos com raiz neste, o sufixo “ing” não se especifica para os nossos modos “infinitivo”, “particípio presente” e “gerúndio”. Bastam os exemplos:
  • I am speaking → Eu estou a falar (Portugal) - INFI
    In spite of being rich → Apesar de ser rico - INFI
    A walking dead → Um morto andante/que anda - P.PR
    She is smiling → Ela está sorrindo (Brasil) - GERÚ[3]
Quero chegar a dizer que esse modo de formar adjetivos e/ou substantivos é muito enriquecedor a quem produz textos em nossa língua. Eu sempre me vali desse recurso em meus textos poéticos, até porque acho esses termos com sufixo em “nte” muito empolgantes e “resolventes”. Eu acho as palavras por ele geradas extremamente charmosas, de um alinhamento rigoroso com as nossas raízes de língua. São elas de imensa força expressiva, além de ostentarem uma beleza estética, como “transmutante”, em “Memória da Criação”, 1990. Ou “incipiente, vibrante, candente, continente, fremente, servente, ingente, reinantes, picante, viventes, nascente”, sem falar em “inocente’’ (é o mesmo), de “O Rio de Mim”, publicado em 2007. Vinicius de Moraes encantou-nos ao dizer de um “amor prestante”[4]. Considerem a elegância e a eloquência poéticas de “transmigrante” – impagável!
Enfim, considerem essa possibilidade, a de fazerem aportar para a nossa expressão contemporânea termos de genuína raiz, derivados desses sufixos em “nte”, mas de inesperada ocorrência, algo assim que somente existe no “instante”.
 
Um pouco mais:
 Um pouco mais:

É preciso que se ressalte que o próprio latim sofreu alterações profundas ao longo dos séculos, migrando da forma clássica para o latim vulgar e para o eclesiástico – este é muito responsável por sua perpetuação. Portanto, ao apontarmos determinado fenômeno linguístico dentro da língua de Virgílio, é importante levar em conta a distinção das épocas dos fatos.
O latim clássico tinha seis ou mais casos para a apresentação de nomes e seus adjetivos, dos quais dois eram tidos como cardeais, conforme a sua função sintática: o nominativo e o genitivo. Alguns adjetivos, se relacionados a uma ação e se aplicados ao nominativo, terminavam em ans, ens e ins; ao qualificarem o genitivo, essas terminações eram antis, entis e intis (mais precocemente) ou ante, ente e inte (mais tardiamente), isso como nomes de igual terminação. Fica claro nos exemplos abaixo (no latim clássico não se usam letras minúsculas e nem artigos):
  • GIGANS (nominativo), GIGANTIS (genitivo)
    MENS (nominativo), MENTIS (genitivo) → MENS HOMINI (a mente do homem), VIS MENTIS (a força da mente) – são nomes (como se substantivos)
Por outro lado, mesmo verbos regulares podem ensejar palavras que não são registradas em nosso léxico. Ex.: comer → comente, possuir → possuinte.
Ah, o italiano e o espanhol – as únicas línguas neolatinas que se valem do primoroso sufixo, com o “e” final, a lhes garantir a plena sonoridade. O francês suprimiu esse “e” e emudeceu o “t”, no masculino, de modo que o sufixo se perdeu na fala: “charment” tem pronúncia próxima a “charmã”.
 
 
[1]Língua Portuguesa”, soneto de Olavo Bilac.
[2] : Não é verbo regular, mas serve ao exemplo, por ter o particípio com raiz regular.
[3] Deixo aqui um alerta: o termo “prevalente”, tão usual hoje em dia, é um empréstimo indevido do inglês “prevalent”. O verbo em questão é “prevalecer” – portanto, o adjetivo cabível é “prevalecente”.
 
[4] In “Soneto do Amor Total”, 1951.