Observações sobre a Escrita criativa
Observações sobre a Escrita criativa
Alexandre Santos
Nos últimos tempos, o termo Escrita Criativa ganhou destaque, assumindo, mesmo, ares de modismo. Assim, eventualmente sem noção exata daquilo que, de fato, o termo significa, muitos têm falado sobre a Escrita Criativa, usando-o [o termo] em diversos contextos e para referir-se a diversas situações. Há razões para isto, especialmente porque o termo Escrita Criativa admite muitas interpretações e entendimentos.
Escrita Criativa é um termo recente, usado para designar genericamente a escrita que se ampara na liberdade literária para produzir realidades artísticas, tanto mais vinculadas à ficção quanto maior for a vontade do autor. Nesta perspectiva, Escrita Criativa é uma característica própria dos textos que, de forma descompromissada com a realidade, traduzem o universo da forma como o artista o vê e quer mostrá-lo. Deste modo, embalada pela ausência dos freios impostos pela realidade das coisas - como ocorre (ou deveria ocorrer), por exemplo, com as reportagens jornalísticas e ensaios científicos - a Escrita Criativa se manifesta plenamente em todos os gêneros literários - poemas, contos, novelas, crônicas, romances e ensaios.
Sobre este ponto, vale dizer que, nestes tempos de extrema manipulação da palavra, a Escrita Criativa também vem sendo verificada em ambiências que, original e aparentemente, não lhes seriam apropriadas (devendo, mesmo, em alguns casos, lhes ser hostis), como o jornalismo e o discurso político, os quais, na atual quadra da evolução social, muitas vezes, vêm assumindo liberdade poética incompatível com o gênero proposto e se afastam da realidade para incorporar as vontades e as conveniências dos autores. De fato, (infelizmente, diga-se de passagem), cada vez com frequência maior, com o nítido objetivo de atender interesses diversos da verdade, o texto jornalístico ganha ares de Escrita Criativa e passa a constituir peça de ficção (como ocorre com os chamados 'fakes'), ou enveredam abertamente para o campo publicitário, trabalhando o campo dos sonhos e, em contraponto, [o campo] dos pesadelos. Acontece o mesmo com o discurso político, que, nos dias correntes, via de regra, costuma seguir texto elaborado ao largo da realidade circundante e dos planos factíveis, recorrendo à Escrita Criativa para impressionar o imaginário das pessoas e reforçar teses construídas a partir de pós-verdades convenientes.
De qualquer forma, o campo no qual se espraia a Escrita Criativa é enorme, inclusive porque, além de se manifestar no texto em si, a criação também pode se verificar de outras formas, como, por exemplo, na construção de coletâneas, cujo significado se baseia na escolha e combinação de textos, tomados como fragmentos de uma peça maior e usados como elementos constitutivos de 'uma coisa nova', inclusive em relação à mensagem transmitida aos leitores. Isto é possível porque - embora ganhe vida no ato da escrita, sendo, portanto, fruto da ação de um autor movido por um talento específico - a Escrita Criativa é uma característica que, embutida nos textos, atravessa os tempos à disposição de leitores de diversas épocas, estando, portanto, sujeita a manipulações de todas as ordens, inclusive para servir de matéria prima para outros textos.
Assim, usando textos de ontem como matéria-prima para obras de hoje, autores reciclam a escrita criativa pré-existente e produzem coisas novas, também marcadas pela criatividade. E, desta forma, o campo da Escrita Criativa alcança coletâneas e ensaios baseados nas obras de terceiros. Em outras palavras, isto diz que, através da escolha e da organização de textos literários produzidos por outrem em coletâneas e antologias ou [através] do aproveitamento e incorporação em sua própria obra de fragmentos produzidos por terceiros, mesmo sem exercitar diretamente a criação literária, ao dar realce a esta ou àquela característica dos textos originais, o escritor/organizador realiza uma incursão indireta no campo da escrita criativa e, disto, pode surgir uma obra literária de personalidade própria, havendo, assim, algum tipo de criação literária. Neste caso, vale dizer, além da própria contribuição ao processo de criação da arte, de alguma forma, o escritor/organizador assume um quinhão da criação literária já trazida por cada um dos textos.
Esta observação não se aplica aos plágios - categoria que, ao invés de apresentar textos inéditos ou pré-existentes harmonizados ou compatibilizados com novas ideias em contexto aberto, constitui mera cópia do trabalho de terceiros (muitas vezes sem, sequer, referência ao autor original), plantado, pois, em terreno pantanoso percorrido à sorrelfa por infratores ideológicos e estelionatários culturais e, não por escritores. Vale dizer, no entanto, que, à despeito de todas as reprimendas cabíveis, críticos complacentes evitam referências mais duras a estes autores e, lembrando a máxima tomada em corruptela de Lavoisier, segundo a qual 'no mundo da arte, nada se cria, tudo se copia', minimizam a importância da originalidade e, dando nova dimensão à criatividade, chegam a sugerir a existência de criatividade e de arte na escolha dos textos imitados e copiados.
Por outro lado, tendo em vista a tênue divisória (se é que existe alguma) entre a verdade e a ficção, muitos afirmam que, ampliado o domínio da imaginação, o espectro da Escrita Criativa se estende a um universo maior do que aquele pensado originalmente. Aliás, se tomadas como faces diferentes de uma mesma moeda, intercambiando posições conforme o modo de ver e descrever o mundo, ficção e realidade ganham nova dimensão e, nesta condição, recursos da escrita criativa podem ser usados regularmente para descrever fenômenos, implicações e possibilidades. Assim, investida desta nova condição, a criação literária passa a funcionar como instrumento descritivo de trabalhos científicos e jornalísticos e, deste modo, no dizer de alguns, a Escrita Criativa poderia alcançar todo o universo das letras.
Os aspectos aqui levantados refletem uma pequena amostra de quão vago é o significado da expressão Escrita Criativa, cujo conceito, a depender da fronteira entre verdade e ficção, ganha novas nuances e aplicações. Assim, reduzida a diferença entre os tipos de escrita usadas para descrever realidade e ficção, a expressão Escrita Criativa ganha (ou, segundo críticos, perde) significado, sendo incapaz de caracterizar e ser caracterizada pela natureza dos textos aos quais se aplica. Esta, talvez, seja a razão de alguns críticos defenderem a inconsistência intencional do termo, inclusive como forma de deixar o conceito frouxo o suficiente para acomodar o processo de escrita praticado por toda a gente.
De qualquer forma, independentemente da amplitude dada ao termo, a capacidade de criar é fundamental para a compreensão da criação e, portanto, para a descrição do universo e daquilo que nele ocorre ou poderia ocorrer.
Alexandre Santos é ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural.