Direito e Cinema: modos de usar (II)
Direito e Cinema: modos de usar (II)
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
As justificativas para uma aproximação didática entre direito e cinema seguem de algum modo as justificativas que vinculam direito e literatura. Poderíamos assim pensar em “direito no cinema”, “cinema no direito”, bem como sobre o “direito do cinema” ou ainda em “direito ao cinema”. Nesse último caso, também comparativamente, já se argumentou em favor de um “direito à literatura”.
Trata-se de tese exposta por Antonio Candido, talvez um de nossos mais expressivos críticos literários, para quem o direito de o cidadão fruir e consumir literatura é um direito humano fundamental. Aplicando-se analogicamente a premissa a um suposto direito ao cinema, pode-se apelar para um direito ao lazer. Nesse caso, por menos que assim pensemos, haveria um apequenamento do cinema. Objetivamente, cinema não é só lazer. É muito mais. Muito mais.
O “direito no cinema” sugere filmes nos quais os temas do direito e da justiça seriam preponderantes. Impecável, nesse sentido, o índice de Gabriel Lacerda, que sugeriu e estudou fitas como “Doze homens e uma sentença”, “O homem que fazia chover”, “Kramer versus Kramer”, “Julgamento final”, “O povo contra Larry Flinch”, “As bruxas de Salem”, entre outros. A lista pode ser interminável. Entre os mais recentes acrescento “Um contratempo” e “História de um casamento”, esse último uma dramática narrativa sobre o fim de uma relação; ao mesmo tempo, critica-se a indústria norte-americana de divórcios “a la mode”.
O “cinema no direito” seria, por outra via, uma forma de argumentação jurídica que se valeria de “topoi” cinematográficos, com o objetivo de convencimento, do magistrado, do jurado, da própria parte. Há sempre um exemplo, uma referência, uma reminiscência. Em âmbito de direito internacional e de justiça de transição há explorações de filmes como “Lista de Schindler”, “O menino do pijama listrado”, “O pianista”, “A casa dos espíritos”, “Desaparecido”, entre tantos outros também. O selo “direito do cinema” seria função do direito positivo e da dogmática. É o caso de temas de direito autoral, de responsabilização, de cumprimento de cláusulas contratuais.
Do magistrado e do advogado se espera uma cultura geral que o cinema oferece recorrentemente. Dados e situações de filmes realçam o poder de argumentação. O cinema permite uma leitura alternativa de mundo que se dá com o conhecimento de culturas, situações, dramas e tensões que marcam a atividade humana. Avalie, por exemplo, o conjunto de possibilidades culturais que o acompanhamento de filmes do Oriente Médio provoca no espectador ocidental. É caso de filmes como “Uma noiva síria” e “As tartarugas podem voar”.
A questão da justiça, central em nossa tradição cultural, é provavelmente um dos temas mais comuns na história do cinema. É o caso de “Tempo de matar”, “Mississipi em chamas”, e tantos outros.
Filmes possibilitam que conheçamos institutos de outras tradições jurídicas. Exemplifica-se com o cinema norte-americano, com foco em adaptações de best-sellers de John Grisham e de Scott Turrow. Nesse caso, o cinema é fundamental para o exame de instituições jurídicas de outra cultura: é assim valioso no direito comparado. De igual modo, a história do direito é exemplificada e examinada em várias obras, a exemplo de “O nome da Rosa”, “Danton e a Revolução”, “Dez dias que abalaram o mundo”, “Xica da Silva”, apenas para nominar alguns. A busca de uma língua jurídica universal, isto é, de um esperanto jurídico, é também empreitada que o cinema pode propiciar.
O cinema é obcecado com filmes que tratam de crimes, de criminosos e de vítimas. Levanta-se então um novo campo, da criminologia cinematográfica. O recente “O capitão e o espião”, no qual Roman Polanski explorou o caso Dreyfus, é exemplo emblemático dessa tendência. Pode-se departamentalizar a função cinema com a função taxionomia jurídica. Isto é, filmes de direito internacional (“O julgamento de Nuremberg”), de direito e bioética (“Iris”, “Longe dela”, “Diário de uma paixão”, “Meu pai, um estranho”), de direito penal (“Os últimos passos de um homem”), de direitos humanos (“Memórias do cárcere”, “Papillon”, “Z”), de direito imobiliário (“Aquarius”), de direito canônico (“Dois Papas”). É no cinema que também pode-se especular em torno da antropologia jurídica “(“A guerra do fogo”).
Ainda que ficcional (em termos), o cinema é instrumento de compreensão da realidade. Ainda pedagogicamente, pode ser fórmula de compreensão das profissões jurídicas, dos traumas, tensões e angústias que envolvem a profissão. É comum filmes tratarem de advogados, promotores e juízes, fotografados como heróis e como vilões. Porque em todos os campos da vida, onde estamos, somos sob a forma de heróis, de vilões, de um pouco de cada uma dessas figuras, como nos sugere Richard Blaine, o personagem de Humphrey Bogart em Casablanca.
Para Oscar Wilde a vida imita a arte muito mais do que a arte imitaria a vida. Utilitária, formalista e naturalista, a arte é também expressão da vida, na qual predica sua existência e para a qual dirige seu inventário de paradoxos e de possibilidades. Nesse sentido, o cinema (arte) e o direito (que pretende regulamentar a vida) imbricam-se em uma única realidade que transcende ao lazer, ao anedótico, ao bizarro e ao esquisito.