O que é livre arbítrio

INTRODUÇÃO

O que é livre arbítrio? Em que circunstâncias a gente pode exercê-lo? Qual o seu custo? Veremos as respostas a estas perguntas a partir do exemplo hipotético da vida de Marília.

MARÍLIA

Imaginemos que Marília aos 17 anos deve escolher uma decisão que vai determinar o curso da sua vida: todo mundo que conhece fez ou vai fazer uma graduação e seus pais esperam que ela também faça. Mesmo sem refletir a respeito Marília decide fazer uma graduação. Tal decisão é tomada por inércia, ainda assim, reflete quem a Marília é: alguém que aceita ser tutelado pelos pais. Nesta família não se impõem uma graduação específica, então qual curso tomar é uma escolha mais difícil. Ela deve escolher entre centenas de cursos sobre os quais conhece muito pouco, ainda assim seus valores e suas aptidões passam a refletir suas escolhas: ela gosta de ler? Ela se preocupa com a segurança profissional? Gosta de desenhar? É comunicativa? Gosta de resolver problemas? Ama carros? Se preocupa com o meio ambiente? Ama as pessoas e as comunidades tradicionais? Ama esporte? Se preocupa com como a sociedade verá seu diploma? Para ela a dificuldade em passar na seleção é importante? A dificuldade exigida pelo curso importa? A duração do curso importa? O custo do curso importa? Neste caso hipotético, ambas as escolhas são uma manifestação de quem a adolescente é, mas escolha de qual curso fazer é tomada com mais liberdade do que a tomada da decisão de fazer ou não uma faculdade.

CONTEXTO

Marília, ainda adolescente, prestes a ingressar na faculdade, faz uma escolha conforme seus valores: boa empregabilidade, formação sólida e gratuita da universidade pública federal. O curso é relativamente difícil e de longa duração, mas tudo bem, ela está pronta para pagar o preço da segurança financeira e escolhe engenharia elétrica. Teve dificuldade em acompanhar a quantidade de matérias ofertada pela faculdade, em alguns semestres trancou algumas matérias e acabou levando mais tempo do que esperava para se formar. Por gostar de matemática gostou do curso, mas a matéria que ela mais gostou foi a matéria na qual conheceu filosofia: nela o professor relacionava matemática com linguagem e mostrava os limites tanto das linguagens como da matemática. Ao sair conseguiu emprego como programadora, o emprego era relativamente mal pago e os programadores seniors nem sequer fizeram faculdade.

ESCOLHA INFORMADA (CONHECIMENTO INTERPRETADO)

Marília foi livre na escolha que fez (graduação em engenharia elétrica), entretanto com mais conhecimento do mundo e de si mesma ela poderia fazer uma escolha que refletisse ainda mais quem ela é (ou seja, ela faria uma escolha ainda mais livre). Ter acesso à informação, entretanto, só tem relevância após interpretação: sem uma análise cuidadosa a informação ajuda pouco. Decidir entre cursar engenharia elétrica, cursar matemática ou fazer curso técnico de programação demanda por um lado informação (como é cada um dos cursos, qual a carga horária, o que ensinam em cada um, qual a empregabilidade), mas também demanda fazer uma difícil comparação entre opções bem diferentes. Como comparar o prazer em entender os fundamentos e viver uma faculdade presencialmente (conhecer gente, ir à festas, conversar sobre o conteúdo...) com fazer um curso técnico durante a escola e entrar logo no mercado de trabalho (passar a ter salário logo, se adiantar na carreira, virar adulta…)? Como achar parâmetros comuns através dos quais comparar decisões tão diferentes? A decisão refletirá tanto mais os valores de Marília quanto mais ela se esforçar em coletar informações e as interpretar. A (pouca) liberdade de seguir o caminho que os pais planejaram (de fazer uma graduação) foi barata. Já a liberdade de escolher qual curso fazer custou estudar as opções, conversar com colegas e amigos, ler a respeito das graduações que mais pareciam interessantes, exigiu pensar a respeito de si mesma, de suas ambições e medos. A liberdade custa caro.

LIBERDADE TEM INTENSIDADE

Livre arbítrio é a propriedade de impor ao mundo decisões que refletem o que a pessoa é. A liberdade não é dicotômica (ter ou não ter), a liberdade tem intensidade (podemos ser muito livres ou pouco livres). A liberdade não é perene, é volúvel, se manifesta em cada decisão com intensidades diferentes!

CONHECIMENTO EXTERNO

Se tivesse um pouco mais de conhecimento do mercado (conhecimento externo) Marília teria entrado em um curso de programação ainda na escola e nem teria feito graduação. Embora sua formação ajude muito no seu trabalho teria atingido seus objetivos mais rapidamente caso tivesse passado os sete anos que levou na graduação trabalhando em programação e fazendo cursos de capacitação pagos pelo trabalho.

AUTOCONHECIMENTO - CONHECIMENTO INTERNO

Se ela se conhecesse mais (conhecimento sobre ela mesma) ela teria feito o curso de matemática, lá ela teria a formação necessária para entrar na sua empresa de programação, mas cursaria menos matérias e em mais profundidade.

DECISÃO

Quanto mais o caminho está determinado menos impor nossos valores, nossos desejo. No que podemos decidir somos livres. A liberdade, assim, tem intensidade, somos tão livres quanto mais podemos tomar as decisões por nós mesmos. Qualquer decisão conta, tanto aquelas de alteram o curso de nossas vidas (qual curso fazer, qual emprego seguir, me casarei?), como decisões cotidianas e com pouco consequência (sábado de manhã, eu levanto ao acordar ou enrolo e dou mais uma coxiladinha?).

DECISÃO PARCIALMENTE INFORMADA

Quanto mais ponderarmos acerca das variáveis envolvidas (tanto internas quanto externas) mais provável será que o resultado corresponda às nossas intenções. Entretanto é impossível ter um conhecimento completo de si mesmo, da mesma maneira é impossível ter um conhecimento completo do que é externo a cada um de nós. E mesmo as informações a que temos acesso já são extremamente difíceis de se computar. Desta maneira é impossível uma decisão totalmente informada (é impossível ter certeza de que as decisões que tomamos tenham exatamente as consequências que planejamos).

AUTOMATIZAÇÃO DE DECISÕES

Computar as variáveis é algo extremamente trabalhoso, com mostrou Daniel Kahneman, portanto usualmente não ponderamos com calma a respeito das variáveis. Mas usamos os cálculos que já fizemos em circunstâncias parecidas e as transpomos para o caso em particular. Kahneman chama este processo de automatização das decisões de “heurísticas”. Sem as heurísticas a cada nova decisão teria que calcular todas as variáveis internas e externas novamente. Por exemplo, peço um suco de laranja em uma determinada padaria, sei que ele custa cinco reais (é um valor que acho justo). Mas as laranjas estão em falta, me oferecem um suco de limão a cinco reais. Como eu já calculei que para mim cinco reais é um valor justo para o suco de laranja eu transponho este cálculo para o suco de limão e compro a bebida. Desta forma eu não preciso ponderar o custo do dinheiro, todas as bebidas disponíveis na padaria e no comércio, o cálculo já foi feito para o suco de laranja. Apesar de as heurísticas facilitarem a nossa vida diversas vezes o uso de cálculos pré utilizados nos levam a equívocos, ou seja, às vezes tomar as decisões intuitivamente nos distancia do objetivo que almejamos. Nos casos em que as decisões tomadas sem uma consideração profunda nos distanciam de nossos objetivos tais decisões refletem falta de livre arbítrio (ao passo que as decisões que nos aproximam de nossas objetivos refletem nosso livre arbítrio).

CONCLUSÃO

Neste texto defino livre arbítrio a partir da análise do caso hipotético de uma pessoa que tem que tomar decisões. O caso mostra como é difícil tomar decisões levando em conta a si mesmo e ao que é externo a cada um de nós: é impossível ter um conhecimento perfeito do que nos cerca, também é impossível um conhecimento perfeito de nós mesmos. E até o que conhecemos, para se tornar um conhecimento pertinente, demanda interpretação (cálculo das variáveis). Portanto, mesmo quando estamos livres de amarras, é impossível exercer o livre arbítrio total.