Breve Comentário Sobre a Filosofia em Nietzsche.
Não é o autor que exerce a vontade, pelo contrário, a vontade exerce o autor. E quando vem o ímpeto da vontade criativa, dificilmente o autor cala as suas falanges.
Minhas falanges, e sobretudo minhas falanges distais agora escrevem totalmente sozinhas, isso pois, a vontade criativa me invadiu o cérebro e sinapticamente passou a controlar os músculos e ossos da minha mão.
A inspiração para tal, que invade e domina o corpo, não foi coisa qualquer. Lendo o livro "Nietzsche" de Gilles Deleuze e revisitando esses conceitos tão inesquecíveis senti vontade de fazer breves anotações e comentários sobre a filosofia desse autor tão marcante que é Nietzsche.
Deixarei aqui um breve comentário, o qual considero indispensável para qualquer conhecedor filosofia nietzscheniana que queira revisitar seus conhecimentos. E que também considero indispensável para qualquer pessoa que queira aventurar-se nessas cavernas insondáveis da alma. O comentário é o seguinte:
Nietzsche não é filósofo.
Parece ofensivo, não? Acontece que o papel de Nietzsche para com e em os seus escritos não é o de ser um filósofo. Filósofo é coisa apoucada para as pretensões desse pensador com os seus escritos. O filósofo — como os filósofos contemporâneos nos mostram — amam o saber, amam tanto que vivem o saber e sendo assim, a filosofia é, portanto, algo que não mais do que viver o saber. Nietzsche não ama o saber, muito pelo contrário, ele detesta o saber. Claro, aqui não falo do conhecimento em si, mas sim dos saberes pré-estabelecidos, das realidades extrínsecas da verdades que não as do Único. Nietzsche despreza a subserviência ao conhecimento que antecede a individualidade do indivíduo e despreza portanto, o indivíduo que se curva ao conhecimento, limitando-se a propagá-lo sob novas leituras e roupagens, ao invés de criar um saber e um conhecimento completamente próprios e novos. O conhecimento na história da humanidade, segundo o pensador, era um conhecimento reactivo no sentido de ser submisso às estruturas pré-estabelecidas pela própria vontade reactiva — A verdade, o belo, o bom, o moral. Eram essas as quimeras que o saber procurava dominar, quando não percebia que, na verdade, eram essas quimeras que dominavam o saber. O filósofo que buscava a verdade buscava essas quimeras, mas não percebia que era domado por elas, e esse escopo limitado apoucava e limitava a filosofia e portanto a vida. Filosofia e vida estabelecem entre si uma relação umbilical na filosofia nietzscheniana, como afirma Deleuze:
“Os modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver, a vida activa o pensamento, e o pensamento por seu lado afirma a vida”. (Deleuze em “Nietzsche”. p. 18.)
O mal da filosofia, até então, era esse, o de pensar demais e deixar-se dominar pelos frutos doentios do pensamento, a filosofia, notamos engendra-se em viver o saber, mas o filósofo, tão preso a isso, acaba por não saber como viver! E é precisamente por isso que Nietzsche não é filósofo, ao menos não no sentido clássico da palavra. O filósofo é muitas vezes um asceta — Como foram os filósofos desde Sócrates até Kant — e o ascetismo da filosofia demonstra um teor infirmus(do latim, enfermo) que não pode firmar-se a si mesma no aspecto da vida. Nietzsche condena esse pensador reactivo, esse pensador que é escravo do conhecimento e subserviente ao mesmo, o que Nietzsche quer vai no módulo contrário a essa espécie — o pensador activo exerce a vontade de potência activa, aquela de ser Senhor, e portanto, senhor do conhecimento! Não mais escravo do mesmo. E sendo assim ser criador do conhecimento, e não criado pelo mesmo.
E essa diferenciação se dá muito claramente no corpus nietzscheniano quando notamos o método de sua escrita. Ele não adota o método técnico clássico, massante, incriado, reactivo. Seu pensamento não se dá pelo método empirista, onde a filosofia se concebe pela avaliação e interpretação. Ele integra na filosofia dois meios de expressão, sendo eles o aforismo e o poema.
“O aforismo é ao mesmo tempo, a arte de interpretar e a coisa a interpretar; o poema é ao mesmo tempo a arte de avaliar e a coisa a avaliar”. (Deleuze em “Nietzsche”. p. 17.)
É aqui também que podemos notar o aspecto psicológico do pensamento de Nietzsche, isso pois, ele nota essa patologia no âmago da história da humanidade, esse mal-estar na civilização e propõe para isso uma terapeutica, um verdadeiro remédio contra a vontade reactiva engendrada no homem pela cultura do ascetismo e da negação do mundo. Como psicólogo Nietzsche é também necessariamente um fisiólogo e também um médico, nesse quesito, ele se torna um monista, rejeitando o dualismo corpo e alma e aceitando o corpo, não só isso, mas elevando o corpo, criando uma genuína filosofia do corpo, uma filosofia que impede a queda do homem do ideal para o real e o reconcilia com o real, com o terreno, com o self, com o corpo. O que importa então não é a mente e suas incrível faculdade de atingir o mundo ideal, mas sim o corpo, e sua incrível faculdade de viver o real! É nesse pensamento de criticar o transmundanismo e aceitar o corpo que Nietzsche funda a sua psicofisiologia. Nietzsche, bem sabemos, não é filósofo, é um psicólogo, um médico, um fisiólogo e para tanto deve atuar como intérprete, atuar como intérprete ao considerar os fenômenos patológicos da filosofia como sintomas, e falar desses sintomas através dos aforismos. A secção avaliadora da produção nietzscheniana se dá pela sua face artística, Nietzsche não é filósofo, é artista! O avaliador é o artista, que considera e cria perspectivas, e as demonstram através do poema. Nietzsche cria uma filosofia, mas não é filósofo no sentido clássico, o filósofo Nietzsche é na verdade artista e médico, ou numa única palavra: legislador. Ele é o intérprete e também o avaliador do mundo, do seu mundo.
O mundo para Nietzsche é um mundo belo, no entanto hostil que vai domar a individualidade do indivíduo, e fazê-lo querer fugir do próprio mundo criando para si além-mundos, é nessa negação da voracidade e também necessidade de estar no mundo que nascem filósofos como Platão e Kant. O filósofo para nietzsche ou o filósofo nietzscheniano é legislador, mas também é um dançarino! Isso pois, perceba, e perceba bem: o mundo pode ser comparado a um lago congelado, o azul do gelo nos hipnotiza ao passo em que nos parece hostil, nós achamos o mundo — o gelo — perigoso e tentamos fugir dele, criamos idealizações — além-mundos — que no fundo não passam da vontade de estar no gelo — no mundo —. O filósofo precisa ser um dançarino pois precisa querer encarar o mundo, saber vivê-lo, não temer o gelo mas sim dançar no gelo! Como Nietzsche fala tão poeticamente no décimo terceiro aforismo de Gaia Ciência: Gelo liso; É paraíso; Para quem sabe dançar.