O EXPURGO COMUNISTA

Depois de meses perseguindo essa obra, enfim pude lê-la. Não aclamada no meio acadêmico, e quase esquecida pela ignorância histórica, "Arquipélago Gulag", torna uma leitura essencial para aqueles que desejam perscrutar os horrores que a política comunista liderada por Lênin, Stálin - e seu corpo de brutais e famintos oficiais - promoveram em solo soviético de 1917 até meados da década de 50. O protagonista da obra foi um dissidente político e ex-comandante do Exército Vermelho no período da Segunda Guerra Mundial, Aleksander Soljenístin (1918-2008). Ele fora preso por membros da NKVD (Comissariado do Povo do Interior), órgão da polícia secreta de 1934-43, que substituiu a OGPU (órgãos unificados em 1922-34), por fazer críticas alusivas a Stálin, numa carta enviada a um amigo. Fora condenado a 8 anos de trabalhos penais, de acordo com o código penal soviético, amparado no artigo 58 - parágrafo 10 (promover propaganda anti-soviética). Em oito anos de prisão, essa sólida e profunda alma, fora capaz de memorizar fatos, acontecimentos, experiências, processos jurídicos e nomes de companheiros de cárcere; registrando a rotina subumana, bárbara, cruel e bestial que os presos políticos eram submetidos perpetuamente. Ele mostra, numa narrativa crua e contudente, o que a máquina estatal soviética produzira de melhor durante seu poder, sob a farsa comunista: tortura e morte. Já liberto, após terminar o livro (1973), ele teve que abandonar sua pátria russa, e embarcar as pressas em um avião com destino à França, pois queriam sua vida. Neste episódio, sua amiga, Elizavieta Voroniánskaia, fora procurada pela polícia secreta, e acabou revelando onde estaria o original da obra. Em seguida, ela, silenciosamente, matou-se. O seu testemunho realístico e espinhoso, estava prestes a revelar ao mundo, o mortífero partido comunista e sua obra diabólica num inferno construído em meio ao gelo; por mentes e mãos que pregavam a partilha, a igualdade e o fim da exploração burguesa. Não pretendo sintetizar pormenorizadamente as mais de 580 páginas de puro terror descrito por Soljenístin, e sim, destacar os aspectos mais pontuais de seu memorial. São tantos relatos brutais, que fica difícil por onde começar. O interessante é que o autor não apenas denúncia as atrocidades do regime a partir do governo stalinista (período que esteve preso), mas no germe da ideologia comunista, ainda nos agitos e solidificação do bolchevismo em 1918.

As torrenciais prisões que ocorreram entre 1937 e 1938, já mostrava a arbitrariedade da política comunista. Essas prisões era fruto de um artigo elaborado por Lênin, em 10 de janeiro de 1918, onde ordenava "a limpeza da terra russa de qualquer insetos nocivos". Quem era esses insetos? Todos aqueles que os Órgãos acusavam de anti-revolucionários e inimigos do joguete soviético. A repressão sem julgamento ocorria a bel prazer, de forma sumária. As perseguições destinavam-se contra operários (que eram acusados de negligentes), camponeses, intelectuais, religiosos, opositores, trotskistas, mulheres e qualquer um que fosse considerado inimigo do governo. Para consagrar a cultura da revolução bolchevique, houve uma brutal perseguição às igrejas, saqueando e confiscando obras de arte e pertences valiosos. Em 30 de agosto de 1918, Lênin, por intermédio da NKVD, mandou prender imediatamente todos socialistas-revolucionários de direita. A maioria foram sumariamente fuzilados. Em 15 de novembro de 1919, sob ordem de Lênin, camponeses foram forçados a limpar torrões de neve que obstruía os trilhos de Moscou, sob pena pela recusa, o fuzilamento. Lênin orquestrava em Petrogrado (posteriormente seria batizado a mal gosto por Leningrado) o fuzilamento de intelectuais. O mesmo Lênin ordenou também, em 22 de julho de 1918, que fossem encarcerados todos aqueles que tivessem vendendo e comercializando produtos sem o consentimento dos órgãos ligados ao Partido. As penas do artigo 58, era de praxe, 10 anos de reclusão. A líderança comunista, encarnada na Tcheká eram violentos ao extremo. As torturas eram praticadas livremente e por vários métodos. Do castigo físico à fome e a insônia proposital. Celas acanhadas, fétidas, abafadas, criara-se uma atmosfera de doenças infecto-contagiosas, como o tifo e a tuberculose entre os moribundos detentos. Percevejos disputavam cada poros dos presos. Em 1922, 32 e 37, os bolcheviques caçavam qualquer um que discordavam de suas ideologias. Mulheres jovens e atraentes eram aliciadas para trabalhar como informantes à Tcheká-GPU. A recusa podia custar-lhes muito caro. Estupros e fuzilamento era a pena por traição ao governo. Os intelectuais era a grande ameaça aos bolcheviques. Por isso, eram presos e mortos, não contabilizando os inúmeros desaparecidos. Sabotagens ocorriam propositadamente pelos comunistas no intuito de incriminar opositores ou para barganhar a confiança do povo. Geralmente racionavam produtos essenciais para sobrevivência, sob a falsa acusação de negligências de gestões e administrações de profissionais que não simpatizavam com o Partido. Muitos engenheiros foram executados sob acusação de prática de fraudes administrativas. Pertences dos presos eram confiscados, furtados. Quando recusavam, parentes soltos eram visitados por homens da Tcheká e torturados até entregarem ouro e jóias preciosas. Mulheres de presos políticos eram violadas. Professores que não divulgassem as doutrinas marxistas, eram presos e executados. Em 1946-47, em torno de meio milhão de refugiados que tinha fugido do regime soviético (civis e camponeses de todas as idades e sexo) foram repatriados as autoridades soviéticas. A maioria foram enviados aos Gulags e executados. O sistema judiciário deixara de julgar de acordo com os ritos legais. Oficiais perversos como Nicolai Krilenko e Lavrenko Beria (figuras temidas inclusive por membros do partido) ditava as regras e conduzia as acusações de forma arbitrária, computando penas máximas por mínima suspeita de espionagem e traição. O tal solícito artigo 58, criminalizava genericamente, enquadrando qualquer opositor por traição e anti-revolucionário. Execuções e cruéis métodos de torturas eram friamente realizadas nos períodos noturnos. Luzes eram projetadas sob o rosto dos presos para que passassem noites sem dormir, debilitando-os até exaurir o vigor. Em seguida, eram fuzilados. As instalações dos campos penais eram caustrofóbica, com o mínimo de ar e luz. As latrinas ficavam próximas das celas, elevando a sujeira e o odor fétido. As rações (refeições) eram racionadas. Sopas sem nutrientes, formavam um aspecto cadavérico nos presos. O uso das latrinas e as refeições, dependendo da política do presídio, eram racionadas até muitos morriam por desnutrição. Prisões como Sukhánovik, Lubianka, Butirki, krásnaia Présnia e Kota eram temidas pelos severos regime internos. Execuções, fome, tortura, infindáveis interrogatórios, isolamento, doenças, escassez de medicamentos e outras mazelas, faziam desses lugares inóspitos o pior lugar da terra. Os implacáveis comunistas eram tão impiedosos e desleais, que nem seus mais quistos homens foram poupados. Andrey Vlássov, ex-oficial soviético tentou libertar a Rússia das mãos de ferro de Stálin, fazendo secretamente um acordo com os alemães. Ele fora preso e executado no fim da Guerra. Nas ilhas em que presos de todas as origem eram despejados torrencialmente (mesmo após o fim da guerra), sob temperaturas rigorosamente gélidas, o trânsito dos presos quando não acontecia pelos trens vermelhos (stolípin), se fazia em furgões (tintureiros), e a pé, em caminhadas de 25 km. Era a pior fase dos apenados. Sem pausa para as latrinas ou refeições; a maioria fazia as necessidades nas roupas. Muitos morriam por hipotermia e inanição. Muitos presos preferiam os próprios campos de trabalho do que esse trânsito de uma ilha a outra. Presos sofriam com gatunos, que lhes tomavam agasalhos, acúçar, toucinho e tabaco. Coisas que para mim e você, são frívolas. Naqueles campos, eram objetos de cobiça e barganha. Eu poderia aqui citar inúmeros episódios horríveis que aconteciam nos campos, descritos por Soljenítsin; mas prefiro abster-me. Quem aventurou ler essa simplória resenha, e achou enfadonho, leia a obra. Quem sabe que ao invés de provocar tédio, cause-lhe repulsa, náusea. O que está escrito nessa obra, jamais se verá nos livros de história. Somente quem viveu o regime e por ele fora triturado, pode testemunhar. Para quem pensa ser uma obra sem credibilidade por ser solitária, existe os relatos em forma de contos, "Os contos de Kolimá" (publicado em 5 volumes pela Editora 34), por Varlam Shalamov e "O Tchekista", por Vladimir Zazúbrin. Relatos de homens, assim como Soljenìstin, que resolveram afrontar o regime diabólico, ainda que em condições degradantes. Ao ler essa importantíssima obra, endossou ainda mais minha visão depreciativa sobre o comunismo (em todas as suas versões) em sua essencialidade, como também, a qualquer regime totalitário. O poder a base da violência, do controle absoluto das pessoas, perseguições indiscriminadas e manipulações das leis. Todo esse comportamento fanático é tipo desses homens que vêm com discursos apaziguadores; que balbuciam eloquentemente, em defesa da igualdade, da restruturação, da salvação das democracias. Eis a voz do inimigo! Quem imagina que o nazifacismo produziu todos os horrores e aberrações nesse período de guerra, convido a ler "Arquipélago Gulag". Os alemães e os italianos não estão sozinhos em ter maculado a história. Assim, encerro:

"Foi com o coração oprimido que me abstive durante anos, de publicar este livro, já há muito concluído: o dever perante vivos prevalecia sobre o dever perante os mortos. Agora, porém, que as forças de segurança do Estado dele se apoderaram, nada mais me resta a fazer senão publicá-lo imediatamente."

A. Soljenístin - setembro de 1973

Juliano Siqueira
Enviado por Juliano Siqueira em 01/03/2020
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