'BORDERS'

"VC FOI IDIOTA!"

Foi bem assim, desse jeitinho doce, que o psiquiatra me qualificou quando eu cedi a minha vez à mocinha que havia tentado pôr fim à sua vida, na noite anterior. Havia dezessete pacientes antes de mim, em uma saleta onde cabiam, no máximo, uns dez.

A sensação de claustrofobia me rodeava, a despeito de meus esforços por me controlar. Usei meus headphones e nada. Abri meu livro...nada. A moça sentou-se ao meu lado esquerdo. Encostei o dedo em sua pele. Na pele de seu braço.

Eu sei. É ridículo. Mas eu precisava saber o que ela sentia. Confirmar o que eu via.

Já falei da faculdade 'fantáaastica' que possuo de sentir, ver e ouvir com o toque de minhas mãos!? Pois é.

Vc não precisa acreditar. Não mesmo. Meu filho não acredita. Minha nora não acredita. Minha irmã não acredita. Foda-se. Nemm sei se eu acredito.

A moça bonita não chegava a ter seus 20 anos. Poderia ter sido meu filho que, por acaso, estava ao meu lado. Toquei sua pele e, de súbito, a tristeza dela passou para mim. Uma confusão de pensamentos aleatórios se chocaram com os meus. Amei cada segundo...(estou sendo sarcástica).

Então!

Eu não estava a fim de ir ao psiquiatra. Rolou só porque precisava de um atestado médico para abonar minha falta naquele dia. Falta ocasionado por um pequenino surto emocional. Nada demais. Então, lancei um olhar perscrutador à minha roda e PLAFT! Lá estava ele: O psiquiatra canalha.

A mãe da moça estava um caco. Ambas não largavam seus celulares enquanto se ajeitavam ao meu lado. Aos poucos, fui desvendando os mistérios da cabeça torta da menina bonita. Tão torta quanto a minha. Fiquei pensando..."Puta que pariu! Como sou forte!"

QUE MERDA! ODEIO SER FORTE O TEMPO TODO!

Mas já mencionei isso.

Voltando a menina...

Ela deveria ser a décima oitava a ser atendida. Fiquei com pena, porra. A menina estava fraca e com febre. Tentar o suicídio não é coisa pouca! CARA! Como não entendem isso!?

É preciso ser muito corajoso para acolher a 'covardia' de atentar contra a própria vida.

Ela tentou. Uma, duas, três...trocentas vezes, segundo sua mãe. Foda-se...de novo. Eu quis ajudar a moça a sair daquele ambiente pesado onde nuvens escuras pairavam sobre nossas cabeças.

Imagine um lugar onde todos têm transtornos psiquiátricos e todos, ao mesmo tempo, pensando em seus problemas. Todos, ao mesmo tempo, emanando sentimentos contraditórios, pensamentos obscuros, vozes que se misturavam àquelas que eu já ouvia.

O CAOS!

A moça sai da consulta. Eu entro em seguida. Sorrio ao médico que dispara a frase acima. Pergunto porque sou idiota. Ele me responde. Disse que a moça era Borderline e que já havia tentado se matar por várias vezes e, em todas as vezes, postava algo sobre a tentativa, nas redes sociais. Ele me olhava por sobre os óculos. Ficou parado, olhos fixos em mim, aguardando por uma reação.

"E Borderline não é um transtorno? Não deve ser tratado com respeito? Não deve ser diagnosticado e medicado devidamente?", disse, inclinando-me perigosamente sobre a mesa, em sua direção. Não posso afirmar, mas tenho quase a certeza de que inflei minhas narinas quando falei, mirando seus olhos que me mostraram um pouco de sua infância onde ele chorava por ser tido como o "estranho" da turma. Por um triz eu não abri minha matraca e falei. Falei, falei, falei e falei.

Mas, calei. E ele também. Continuou tomando seu suquinho de caixa pelo canudinho. PA-TÉ-TI-CO. Eu mereço...

Moral da História:

Nenhuma. Não retornei àquele consultório. Não suporto julgamentos, preconceito, ignorância. Quem sofre de transtornos mentais ainda precisa percorrer um longo caminho a fim de ser encarado como um portador de doença cientificamente comprovada. Teremos um longo caminho até chegarmos ao topo onde os diabéticos, hipertensos, dentre outros, vivem confortavelmente.

Como se algum doente encontrasse conforto em sua doença.

Somos a escória. Somos os fracassados, os afrescalhados, os fracos, os 'sem fé'. Somos os parasitas, os preguiçosos, os que não têm o que fazer.

Somos os dramáticos.

Um dia, a menina bonita vai deixar de tentar porque, enfim, terá conseguido atingir seu objetivo. Deixará para trás uma vida inteira porque não sabia controlar a intensidade de seus sentimentos, a instabilidade de seus relacionamentos interpessoais. Terá morrido em vão por ter vivido com uma falsa impressão de sua própria imagem, massacrada pela sensação de inutilidade; pela insegurança e impulsividade.

A moça terá encontrado a Morte por querer se vingar do namorado ou da amiga que lhe magoaram. Um dia, de tanto tentar, ela vai conseguir e, então, dirão ao pé de sua cova, que a menina não soubera aproveitar as chances que a vida lhe dera. Mas eles não compreendem o inferno em que vivemos.

Não compreendem...

22-02-2020

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 22/02/2020
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