Considerações Sobre a Ecologia
Um Ensaio em 2 Partes
Parte I: O Impasse Entre os Discursos Ecológico e Liberal-Capitalista.
Até o século XX o conceito de “natureza” muito se assemelhava a algo como uma Força Externa ao convívio do homem. Isso é, algo quase que metafísico, uma espécie de Deus por assim dizer. E ela tinha um poder vital à existência do homem capitalista: a natureza existia com o poder inesgotável de fornecer materiais e absorver dejetos. Era assim que a consciência coletiva encarava a natureza. No entanto, isso veio a mudar nas décadas finais do século XX, quando passou a ser evidente a face perturbadora do capitalismo desenfreado e de seu discurso hegemônico: a impessoalidade. O capitalismo é impessoal, e não se preocupa com o homem, com o indivíduo, com a ética ou com a natureza, se preocupa indiscutivelmente com a produção doentia de capital e com a permanência da configuração de seu sistema. Com isso, percebe-se que no jogo do capital tudo vale, inclusive o extermínio da natureza. Logo então, algo que nunca fora antes pensado passou a ser incansavelmente discutido, atravessando o século e nos perseguindo até os dias de hoje: O capitalismo colocará um fim à Natureza?
Uma catástrofe ambiental ganhou um ar de inevitável e com isso o discurso ecológico ganhou força e passou a ser mais importante do que nunca, visto que o status de finitude que a natureza atingiu na sociedade liberal-capitalista atingiu também o homem. Vale ressaltar que a finitude da natureza difere da finitude do indivíduo quando falamos em termos existenciais, isso pois, a finitude do indivíduo implica na finitude do Eu, a finitude da natureza passa a implicar em um possível fim para toda a espécie humana.
No entanto, como aponta o filósofo esloveno Slavoj Zizek, até hoje se alimenta uma visão liberal-conservadora de “natureza”, pensa-se a natureza como harmônica e perfeita por excelência, e que o homem com o advento do capitalismo perverteu e feriu essa harmonia. Esse pensamento traz o sentimento de culpa ao indivíduo, ao pensar que o seu modo de vida trouxe o status de finitude à natureza. Antes um Deus com a infinita capacidade de fornecer materiais e absorver dejetos agora uma vítima do consumismo, fadada ao fim.
A finitude da natureza veio em detrimento da cultura do consumismo, essa por sua vez estabelece uma uma relação umbilical ao liberal-capitalismo e seu discurso. O discurso ecológico(ou “ecologista”) por sua vez, tem em seu âmago a manutenção da ação humana em prol de evitar a crise ecológica evidente. Sendo assim, deve-se concluir que o discurso ecológico é necessariamente antagonista ao discurso capitalista, visto que o capitalismo alimenta a cultura do consumismo e da exploração da natureza.
O liberal-capitalismo apresenta-se sob uma roupagem de “o melhor modelo possível”, como se todo o decorrer da história da política culminasse nessa ideologia, e que entre tantas essa é a mais eficiente imaginável e aplicável, muitas vezes o único discurso que se questiona nesse modelo é a necessidade de uma manutenção das políticas públicas por exemplo. Essa ideologia é hegemônica nesse quesito, domina a consciência coletiva, a psicologia das massas, e faz de credo o seu discurso. Tanto que, mesmo entre os questionadores da ideologia, somente uns poucos se arriscam ao afastamento desse modelo. A urgência ecológica surgiu como um forte questionador da eficiência desse modelo, tendo em vista que nem o estado nem seus respectivos políticos conseguiram conceber qualquer resolução palpável e definitiva à crise ecológica o discurso ecologista apontou o que viria a ser, como aponta Zizek, uma das 4 principais contradições e problemáticas do discurso liberal-capitalista.
O discurso ecologista apresenta, como já dito, uma ameaça à hegemonia do discurso do liberal-capitalismo como o modelo perfeito, visto sua ineficiência em lidar com a crise ecológica. No entanto, percebamos, essa ideologia capitalista é ardilosa e adaptativa, e percebendo a ameaça do ecologismo usou de uma estratégia que provavelmente seria impossível em qualquer outro regime ideológico conhecido: o que chamo de aglutinação.
O liberal-capitalismo aglutinou a ameaça ecologista ao seu discurso e faz para si a sua própria ecologia, um discurso que não ameaça e não necessariamente questiona seu modelo, pelo contrário, o ecologismo capitalista, chamado também de “Ecologismo Reformista” vê no próprio capitalismo a resolução para a crise ecológica, e parando para refletir, a ecologia reformista muito se assemelha ao que nietzsche chamou de “Niilismo Reativo”.
A Ecologia Reformista tem por base a crença na adaptatividade do liberal-capitalismo e de sua “marcha para o futuro”, isso é, o discurso do liberal-capitalismo sob a roupagem de modelo político definitivo mostra a si mesmo como futurista, a produção tecnológica visa o benefício e o avanço e destarte a resolução e manutenção dos problemas da vida individual, tendo em vista a tecno-potência crescente e seu poder em resolver problemas, a crise ecológica é só mais um dos problemas dos quais o liberal-capitalismo, hora ou outra, conseguirá resolver através da sua capacidade de reciclar a si mesmo. E toda a extração de recursos, exploração da natureza e poluição do meio ambiente que vemos hoje em dia nada mais é do que “pegar emprestado recursos do futuro” visto que em tese, é através da extração desses mesmos recursos que viria a resolução para o problema da crise ecológica. O Ecologismo Reformista se assemelha ao Niilismo Reativo no fato de haver em ambos a crença na ciência como a “redentora” de todos os pecados. E o pecado do indivíduo liberal-capitalista é justamente a exploração e o lesionamento da natureza através de seu consumismo, passando a sentir-se como culpado pela crise ecológica iminente, e esse sentimento de culpa é agravado quando o indivíduo percebe que ser culpado pela finitude da natureza implica também ser culpado na finitude iminente tanto do Eu quanto do Outro. O indivíduo portanto, quer que isso mude em detrimento de sua culpa. Nesse aspecto o discurso ecológico do Ecologismo Radical e do Ecologismo Profundo surgem como as mais sincera formas da luta pela ecologia e da reconfiguração do modelo capitalista contraditório, no entanto, esse mesmo capitalismo sentindo a ameaça do ecologismo e usando o artifício da aglutinação, lança as rédeas do Ecologismo Reformista que diz basicamente “Ei! Não sinta culpa! O capitalismo não é inimigo da ecologia, na verdade os avanços do nosso sistema um dia vão salvar o próprio meio ambiente!” e o indivíduo pode se ver numa situação conformista ao perceber que não precisa mudar radicalmente ou profundamente seus hábitos para se sentir ecológico, basta reformar a ideia da ruptura capitalista que a crise ecológica o trouxe!
A consciência coletiva hoje, pensa a ecologia através de um Ecologismo Reformista, seja de maneira direta ou indireta, ninguém consegue perceber que o capitalismo e o ecologismo são discursos antagônicos e que é impossível haver ecologia onde tudo o que importa é o capital. O liberal-capitalismo é necessariamente o que explora e depreda o meio-ambiente, sendo assim, como seria possível haver ecologismo onde há tão maligno capitalismo? Não é. As pessoas que se dizem ecológicas não conseguem perceber a contradição em seus discursos, uma atitude verdadeiramente ecológica se daria através do total desligamento do indivíduo com a sociedade e a produção capitalista, no entanto o indivíduo que se diz ecológico através de seu ideário reformista de liberal-capitalismo toma para si algumas atitudes que, em sua consciência se mostram como “revolucionárias” mas que no âmago e em a curto ou longo prazo, em nada mudaram o aspecto da iminência da crise ecológica. Essas atitudes que o discurso do Ecologismo Reformista fazem os indivíduos ditos ecológicos tomarem é o que aqui chamo de “Pseudo-Ecologia”.
Parte II: A Pseudo-Ecologia.
Antes pseudo-ecologia fosse simplesmente uma falsa ecologia. Infelizmente ela é muito mais que isso, a pseudo-ecologia é o discurso liberal-capitalista engendrado até mesmo em quem discorda do mesmo. É uma espécie de inação disfarçada da mais sincera ação, é uma “não-fazer” com roupagem de “fazer”. Em poucas palavras a pseudo-ecologia é aquilo o que as pessoas fazem em prol da sustentabilidade do Eu no modelo capitalista em nome da ecologia, no entanto esse “fazer” está mergulhado nas ambições e tendências capitalistas da sociedade, e o que para o indivíduo parece muito com “ser o certo a se fazer” é na verdade um não fazer nada, isso porque toda a pseudo-ecologia é aquela ecologia que não dá nenhum fruto e que por mais que convença o indivíduo de que ele está fazendo algo esse algo em nada muda a situação da iminência da crise ecológica.
Em menos palavras ainda, se fosse descrever a pseudo-ecologia, eu a descreveria como toda a ação que fazem as pessoas que dizem “estou fazendo a minha parte”.
O discurso liberal-capitalista proveu ao indivíduo umas pequenas tarefas e incunbências para que a “culpa” que ele tem pelo seu consumismo diminuísse. Essas tarefas são simples e alcançáveis, e estão lá para fazer o indivíduo se sentir bem consigo mesmo por esforçar-se em nome da ecologia. No entanto, sendo tarefas que surgiram do discurso liberal-capitalista são tarefas que, em seu âmago, estão lá para ajudar o liberal-capitalismo e seu extrativismo e exploração, e não tarefas que vão, de fato, salvar a natureza e o meio-ambiente. Não só isso, o liberal-capitalismo — esse predador extremamente adaptável — consegue se aproveitar da pseudo-ecologia e lucrar em cima desta(Lembrem-se: em seu âmago a pseudo-ecologia mais ajuda ao capitalismo do que à natureza).
Um dos exemplos que posso dar de pseudo-ecologia, pegando emprestado do ensaio “Ecologia Sem Natureza” de Zizek, são as “casas sustentáveis”. Elas surgiram quando o discurso ecologista acerca do aquecimento global estava em seu ápice, o liberal-capitalismo aglutinou esse discurso ao próprio capitalismo e criou um produto que atendesse à demanda ecologista. Casas mais compactas e mais caras do que o mercado imobiliário geralmente oferece, mas com a grande vantagem de “ajudar o meio-ambiente”, perceba que aqui a ecologia é na verdade o marketing capitalista disfarçado, o capitalismo se aproveita da demanda ecologista e vende para o público produtos com a roupagem de “ecológicos” para chamar atenção e lucrar em cima disso. No fundo, sabemos, o que o capitalismo quer é acumular capital, e não salvar o meio-ambiente, além de te fazerem comprar um produto, o capitalismo, para que o discurso capitalista e a acumulação de capital não sejam ameaçados, ainda faz você se afastar de discursos ecologistas, isso pois, perceba, você está numa casa sustentável, então você já fez a sua parte.
Outro grande exemplo que posso dar de pseudo-ecologia, ou de capitalismo disfarçado de ecologia são algumas propagandas que conseguimos ver em grandes marcas de alimentos. Por exemplo, coisas como “Na compra desse produto a empresa tal estará fazendo uma doação para uma ONG tal”. Mais uma vez o capitalismo se aproveita da culpa do indivíduo pela crise ecológica e vende a ele a sua redenção e o indivíduo fica extremamente feliz nessa situação de conforto: “pra quê protestar em campanhas ecologistas se eu posso simplesmente comprar um café no Starbucks e contribuir com ONGs que vão ajudar com a crise da fome na África?!”. Embora talvez não percebam, é assim que as pessoas pensam quando compram esses produtos, mas esses produtos, perceba, em nada mudam a situação atual da crise ecológica e a doação que as empresas supostamente fazem são uma parcela extremamente mínima e irrisória perto da tamanha produção de capital que eles têm através de seu discurso de “consumismo ecologista”.
Consumismo e ecologismo são conceitos contraditórios por excelência e não podem se manter no mesmo plano. Onde há capitalismo não pode haver ecologismo, isso pois, até onde se conhece, o capitalismo se resume à: extrair, produzir, vender e acumular. No entanto a avassaladora maioria das pessoas que se dizem ecológicas ou ecologistas são pessoas que atendem ao discurso do “capitalismo ecológico” e fazem essas pequenas tarefas que a consciência coletiva e o liberal-capitalismo as incumbem. Um indivíduo que está visivelmente mergulhado em um ambiente capitalista, independente das medidas que tome, não é e não consegue ser um indivíduo totalmente ecológico, isso pois, enquanto está fazendo as pequenas tarefas(os pseudo-ecologismos) que a consciência coletiva do liberal-capitalismo o manda fazer, as grandes empresas e corporações estão extraindo, explorando, lesionando e pervertendo a natureza, para cada litro de água que você possivelmente economize, o agronegócio para atender à sua demanda de consumo gasta milhões e milhões de litros de água, por exemplo. E a sua economia de água, por mais nobre que o discurso sustentável na sua imaginação possa parecer, não vai diminuir ou amenizar a grande exploração das grandes empresas.
Um ecologismo que não questiona o status quo do liberal-capitalismo que vivenciamos não é um ecologismo pleno, mas sim um ecologismo que é conivente ao capitalismo exploratório, por mais que os praticantes desse ecologismo não percebam.
Seguindo os exemplos, um caso mais recente de pseudo-ecologismo que posso citar foi a incansável campanha contra os canudos de plástico. E por que? — vocês me perguntam — a consciência coletiva voltou todo o seu discurso ecologista durante certo tempo para a questão dos canudos de plástico e da poluição dos rios e mares, da morte das tartarugas e etc, a atitude de não usar canudos de plástico foi pseudo-ecológica, perceba, por alguns aspectos. O primeiro deles é que essa ação não é uma ação que necessariamente questiona o discurso capitalista, e enquanto as pessoas faziam o enorme esforço de não usar mais canudos as grandes empresas empenhavam a produção de plástico e a extração de petróleo em outras atividades, de modo que a diminuição da demanda pelos canudos em pouco ou nada afetou verdadeiramente a iminência da crise ecológica causada pelo corporativismo. Perceba também que essa medida foi uma medida de “curto prazo” pode-se dizer, isso porque uns anos depois o empenho sustentabilista evaporou no ar, e as pessoas hoje em dia pouco ou nada se importam com o uso de canudos. Outras coisas que algumas pessoas não percebem é que com essa tendência ecológica muitas empresas conseguiram se aproveitar disso, umas passaram a vender canudos de ferro ou de aço para que o cliente da demanda ecologista pudesse também sentir o prazer de “estar fazendo a sua parte”, diminui-se assim a produção de plástico e aumenta a exploração do ferro e do aço, que também têm impactos ecológicos negativos. Outras empresas sob a roupagem ecológica fizeram dessa demanda um marketing e passaram a entregar souvenirs para que seus clientes também fizessem “a sua parte”, certas empresas de roupas, por exemplo, entregavam canudos de aço como brindes de seus showrooms vendendo uma auto-imagem de empresa ecologista.
Acredito que não existe contradição maior do que “empresa ecologista”. Se a empresa explora recursos e pessoas ela definitivamente não é ecológica. Ressalto aqui que não estou dizendo que não existem pessoas ecológicas ou empresas ecológicas, não. Estou apenas tentando atentar ao fato de que a ecologia verdadeira e eficaz é muito mais rara de se ver do que parece, e a maioria das ações ditas como sustentáveis ou ecológicas que vemos por aí são ações alimentadas pelo liberal-capitalismo e que, em seu âmago, não são medidas ecológicas verdadeiramente eficazes.
Vale também certa menção às faces que o pseudo-ecologismo sustenta em seu discurso. Um indivíduo se destaca na campanha da luta pela ecologia e a consciência coletiva o ovaciona e o eleva a um ídolo da causa, e enquanto todos se viram a elogiar ou criticar essa nova face do ecologismo nenhuma ação verdadeiramente eficaz é feita por essa ou qualquer pessoa que a ovaciona, para inibir a crise ecológica iminente.
A pseudo-ecologia, perceba, é multi-facetada e seu discurso capitalista disfarçado de ecologia influência uma parcela significativa da população. Não é possível haver um ecologismo sincero numa sociedade capitalista, no cenário atual o discurso da sustentabilidade nada mais é do que uma fantasia liberal-capitalista. Uma ecologia verdadeira, se daria em grande parte pela luta e pelo empenho total à causa ecológica e também se daria por meio do desligamento do indivíduo com o capitalismo. O objetivo desse ensaio não é necessariamente dizer o que é a ecologia e quais são as personalidades e as ações verdadeiramente ecológicas, mas sim atentar à hegemonia do discurso capitalista sobre a demanda ecológica e demonstrar que a sociedade, embora pense, está muito longe de uma ecologia plena. Se a sua ecologia se baseia num “estou fazendo a minha parte” provavelmente suas ações são pseudo-ecológicas e dirão respeito somente a você isso, porque em pouco ou nada influenciarão na crise ecológica iminente, se você pensa “estou fazendo minha parte” então pense por conseguinte: “mas isso é o suficiente?”.
Apêndice: Dois textos fundamentais para o amadurecimento das minhas considerações acerca da ecologia foram o citado “Ecologia Sem Natureza” do filósofo esloveno Slavoj Zizek e o artigo “Sobre a sustentabilidade como fantasia liberal-capitalista: do tampão verde à ecologia sem natureza” da Revista Famecos.