Brás Cubas e Miramar, navegando pela Laranja Mecânica: Memórias do Ser
Brás Cubas e Miramar, navegando pela Laranja Mecânica: Memórias do Ser
Deijair Miranda*
No filme Laranja Mecânica o personagem Alex descreve fatos que ocorreram em sua vida. Pode-se observar que não existe uma ordem cronológica, que alguns fatos foram bastante detalhados e outros descartados, não relatados. O diretor trabalhou a idéia de memória como algo não linear, surgindo em flashes, como um corte dentro da realidade, a memória é trabalhada como uma fotografia, um filme ou até mesmo uma obra de arte na qual o artista extrai somente o que lhe é interessante. Não existe relato de memória total, quem conta uma memória é um analista de si próprio, intencionando ir além do sentido aparente.
Freud explicou sobre o recalcamento da memória, tudo aquilo que desejamos esquecer, não deve vir à tona. O filme circula analogamente dessa forma, o que está sendo apresentado nas salas de reprodução é a intenção final do diretor, já foram feitos os cortes, o making-of, tudo o que foi recalcado, as imagens falhas, os excedentes, as imperfeições, as cenas que estavam fora do ângulo.Age-se da mesma forma na vida, a nota vermelha, a desobediência aos pais e outras práticas hoje consideradas insubordinadas foram esquecidas, fazem-se os cortes devidos. Não será permitido que o passado considerado impróprio venha à margem.
Foucault, em As Palavras e as Coisas, explica detalhadamente no capítulo Las Meninas como o pintor extraiu as imagens, como ele tem a capacidade de renomear, até mesmo transformar em mito alguns detalhes, recopiando, fazendo da forma que acha melhor. Descrever o fato ocorrido é uma arte, reduz-se, acrescenta-se, mas nunca é relatado o que houve em toda a sua essência, em toda a plenitude do acontecimento, fazem-se os cortes, deixa-se guardado, recalcado, tudo que é desagradável do ponto de vista individual.
Nos livros de História somente é contada a história oficial, a história dos vencedores. Será que A Guerra de Canudos vale menos que uma página? A Revolta dos Malês apenas dez linhas? E O Golpe de 1964 é essa Revolução em resgate da soberania do país? São os cortes, os arquivos que devem ficar escondidos, queimados em uma Base Aérea, sepultados depois de terem sido esquartejados no centro da cidade ou até mesmo submersos.Cria-se uma barragem para esconderem-se os arquivos, a memória recalcada.
Desde ocultar dos filhos que também roubávamos manga no quintal do vizinho, até exterminar uma comunidade como foi descrita por Euclides da Cunha em Os Sertões, a memória é trabalhada como um objeto de olaria, modelada, bem modelada para que as partes ditas negativas em momento algum sejam mencionadas e, caso sejam,são menosprezadas, ou transformadas em um mito monstrengo: Os comunistas queriam tomar o Brasil; O Antonio Conselheiro era um louco visionário.
Outro exemplo clássico de trabalho de memória é citado por NIETZSCHE (2004): a Bíblia. Foi trabalhada para mostrar a necessidade de se ter um Deus nos moldes judeus e o que ocorre quando não se obedece a esse mesmo Deus e após anos e anos de decadência da estrutura judaica, surgirá um Messias. A memória do povo judeu é trabalhada em toda a Bíblia e por incrível que pareça é a base de toda a civilização que diz ser cristã.
Assim, percebe-se como a memória é trabalhada, a memória e os seus fragmentos, como se pode fazer os cortes, recalcar, torná-la oficial e excluir tudo aquilo que se apresenta como desagradável. Retornando ao filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, a memória de Alex deve ser apagada, o sistema clama por isso, pois a vida pregressa e violenta dele, fruto da sociedade, está fora de controle. Como iremos classificar tal Ser? Como marginal, à margem da sociedade, como é dito no próprio filme.
É a sociedade que determina o que é normal, por meio de uma média comportamental, e Alex está fora dessa média. Primeiro é vigiado, depois punido FOUCAULT (1999). Vigiados e punidos: é o que ocorre com os que têm uma memória, uma história prejudicial à sociedade comum. Quando o ser é vigiado e não se enquadra nos ditames da sociedade é punido, denominado de louco e o louco não tem memória, o discurso do louco não tem efeito, deve ser descartado, sofrer o making-of, não será reproduzido nas telas. Talvez seja uma memória que irá influenciar negativamente, a dita média comportamental.
O livro Memórias Póstumas de Brás Cubas no principio mostra-nos algo de novo na literatura brasileira daquela época final do século XIX. Uma memória contada por um defunto, no mínimo poderia chamar a idéia de o supra sumo da ironia, pois a mesma é escrita por um defunto. Dedicada ao verme que primeiro roer as frias carnes, pode-se observar que a memória já entra em estado de decomposição, no decorrer do livro tudo entra em decomposição, seja física: “Depois do almoço fui à casa de Dona Plácida; achei um molho de ossos, envolto em molambos...” (MACHADO: 1998:164) ou moral:“...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis...” (MACHADO: 1998:044).
Desdenhando, desdenhando, desdenhando do primeiro ao último capitulo o autor joga uma fantástica partida de xadrez, coloca o leitor numa cidade projetada repleta de esquinas. Ao leitor não é permitido situar-se, em tempo ou espaço, inclusive o mesmo é o maior defeito do livro.MACHADO(1998).
O gênio de Machado de Assis trilha inquieto por toda a obra, devora os clássicos de Sthendal a Bíblia. Notemos o rodapé do livro, nele está contido boa parte da história da literatura da humanidade. Engarrafa de forma pitoresca a ciência nos capítulos: O Emplasto e Bacharelo-me. Lança os germes sepulcrais na religião: “Minha mãe doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns preceitos e orações; mas eu sentia que, mais do que orações, me governavam nervos e o sangue”(MACHADO: 1998:033).
A primeira grande obra da literatura brasileira trata de diversos assuntos da sociedade universal: política e os jogos de interesse, o discurso de Augusto Comte sendo bombardeado com a figura de Quincas Borbas. Prudêncio é a âncora para evidenciar a manutenção comportamental da sociedade escravocrata. Machado ainda deixa uma fissura para dialogar com Freud, primeiro com o Complexo de Édipo às avessas, as mulheres que se relaciona no decorrer da narração é completamente diferente com o comportamento de sua mãe, fraca, temente a estrutura cristã e patriarcal, segundo recalca à memória:“...............................” De como não fui Ministro d’Estado (MACHADO:1998:160)
Entre Memórias Póstumas e Memórias Sentimentais de João Miramar, temos uma ponte, uma ponte que deseja rejeitar a memória oficial e construir uma memória genuinamente nacional, a memória desejada por Policarpo Quaresma. Deglutir, devorar, a ordem do dia é ser Antropofagista deixar de lado o sentimento de colonizado e construir uma memória nacional, uma memória de valorização do ser.
Memórias Sentimentais de João Miramar data a segunda década do século XX. Retomando a idéia original desse ensaio no qual comparamos a memória a um filme. Oswald Andrade na obra anteriormente citada trata a memória de uma forma cinematográfica, representada por flashes não cronológicos e de uma forma que destoa a linearidade.
Oswald Andrade escreve o livro da mesma forma utilizada para recordarmos de fatos ocorridos, sem uma ordem pré-determinada dividida em vários episódios, nota-se uma ausência de capítulos, demonstrando uma tentativa bem-sucedida de criticar à ordem e satirizar a sociedade e os seus costumes. Logo no inicio é estabelecido um colóquio com Sigmund Freud: “- Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres , as mulheres não têm pernas, são como o manequim de mamãe até embaixo. Para que pernas nas mulheres, amém.” (OSWALD:2001:045) E continua ironizando toda a estrutura formadora da memória da sociedade, pois influencia, legisla e julga os padrões a serem seguidos. O desdenhe agora é contra a Bíblia: “ A cidade de São Paulo na América do Sul não era um livro que tinha cara de bichos esquisitos e animais de história .’’ (OSWALD:2001:045).
O anticonvencional, a critica na formação da memória, tudo é tratado ironicamente, o que havia sido formado, a concepção cristã é indagada: “ No silêncio tique-taque da sala de jantar informei mamãe que não havia Deus porque Deus era a natureza” (OSWALD:2001:047).
A técnica cinematográfica impressiona por fazer os cortes, modelar, recopiar uma realidade. A obra passeia de mãos dadas com a literatura universal, absorve e norteia o ideal para uma formação de memória nacional, desconstruindo o sentimento de colonizado, de passagem também valoriza o ser por copilar um novo conceito de memória.
O ‘Kodacar’ a sociedade é cortar o não visto, os bastidores e trazer à tona, colocar em evidência uma sociedade atolada na lama, mostra-nos que não existem somente fatos notáveis numa memória, há matéria em decomposição. A memória trabalha para esconder algumas memórias, recalcando-as. Nietzsche, Marx e Freud elevaram o ser por estudá-lo e expor os grilhões mantenedores de cativos. Machado e Oswald indicam uma formação de memória supra nacional, uma memória de valorização do ser, o importante da coletividade é o respeito a individualidade.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, a memória se decompõe, apodrece, a memória não é temporal e sim pós-temporal, lança luz ao antropofagismo de Memórias Sentimentais de João Miramar onde tudo circula, aflora, pletora e nada é linear, mas entre os dois existe Policarpo Quaresma e a sua negação de memória oficial e cristã. De um devorar o outro Stanley Kubrick bebe na fonte de Miramar ‘Kodacando’ o ‘Kodacado’ por Oswald Andrade e a sua fuga da memória convencional.
Referência Bibliográfica
ANDRADE, Oswald de. Memórias Sentimentais de João Miramar. 13. ed. São Paulo: Globo, 2001.
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as coisas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 18. ed. Petrópolis: Vozes, 2001
KUBRICK, Stanley. Laranja Mecânica. São Paulo: Warner Bros, 2002.
LIMA BARRETO,Afonso Henrique. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Martin Claret, 2004.
MACHADO de ASSIS,Joaquim Maria. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 24. ed. São Paulo: Ática, 1998.
NIETZSCHE, Frederich. O Anticristo. São Paulo: Martin Claret, 2004.
RIBEIRO, Darcy. O povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
* Graduando do curso de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia – UNEB Campus II.