Dos Peixes de Prata e dos Velos de Ouro

Até então esteve o palco do mundo feito de vária coisa, cor, cortina, dança, fala e estribilho, — aliás, de muito mais. Até então, por conta do tanto, fizemos dizer toda sorte, e todo acaso, e todo sabor, aterrando varinhas e conhecendo o mundo, suas alturas, de suas sombras. Até então estivemos na sombra. Até então tudo o que foi vara e altura nos valeu, — melhor, tudo o que disto chamamos de coisa relacionada nos foi a verdade. Até então a fantasia de vara, sombra e coisa alta nos conduziu aos mares e através deles.

Ora, que nada deste muito cessou, poderá até um, quando não outro, comigo concordar. Ainda levantamos o dedo para sentir o vento e lemos dessas nossas fantasias nosso ir adiante. “Assim é ter bom pé!” Quem não há disto dizer bem? Afinal, este é o nosso bem. Até então este foi o nosso bem — sombra e da sombra bendizer. Até então descobrimos nosso gozo divino no mundo, — dizer das coisas bem, sombra ou coisa outra. “A mim bendiz a sombra quando dela bem ouço!” Quem não diria isto? Conforme batíamos os queixos através do imemorável, sempre nos foi apraz o bem falar. Buscamos nas coisas todas, quais ponderamos até então, aquilo pelo qual poder dizer o bem. E até hoje preferimos não dar dente nem língua para escarnecer as coisas propriamente escarnecíveis. E quem disser que muito o homem escarnece, e que não segue o que aqui dá nos olhos, aquilo que digo, há de confessar que nunca viu homem algum que não pôs no rosto um sorriso de amor quando vociferava e urrava. Na realidade, o homem quer, ainda quando escarnece, bem falar. Ele procura entre suas palavras, em seu ninho de cobra, aquela que é a mais sólida, e a que mais rasga, e a que mais fura, e a que mais corre — a que mais bem escarnece.

Alguns perderam-se entre o bendizer, de tão quisto o dizendo, e passaram a falar daquilo que saltava das palavras: “eis o verdadeiro!” Mas, na realidade, o verdadeiro nunca fora mais do que nomen do sublime que os possuía ao dizer. Como que guardassem tesouros, os homens apanhavam todo o sublime em si e se exibiam desvairados pelas praças e foros. “Eis minha verdade!” Corriam dizendo e dançando, — quando não tropeçavam e choravam aos outros: “ai, olhai que vai lá o meu tesouro.” E quem não se comovia? E quem não tomava dos sublimes e fazia deles seu tesouro surrupiado. Na realidade, muito se foi rapino entre os homens, pois que a beleza é coisa que por natureza, e faculdade de natureza, é parca. E alguns homens corriam praças e foros adentro carregando de mau jeito, mal cabendo nos braços, o sublime alheio. A verdade dos outros é coisa da mais brilhante e estuporante, motivo esse duns dizer de suas verdades já sabidas coisa abscondida e misteriosa. Quando um não a escondia bem para que não acessasse o olho gordo.

Mais, quando um, de sublime seu unido a outros, subia palanques com voz de leão, — ah, meus amigos, se pudésseis ver da coisa pavorosa! Belezas d’ouro e vozes prateadas cantavam e trovejavam abrindo todo tipo de ouvido sujismundo e semblante de mula. Rugidos carregavam os menores de si mesmos como que uma voragem de corpos — e aquele povo vibrava. E para aqueles que não mais sabiam do sublime, mas somente de verdade, — ah, esses enlouqueciam. Invejavam a coisa áurea que transparecia o vozeirão e tinham no seu foro particular daquela dor de quem perde em lagrimejo o barco. Quando não eram eles mesmos tomados pela força centrípeta. Pois que é sabido que, frente ao Belo, as pernas se dão afroixadas e até mesmo a vista desanda, — e, na verdade, já vi daqueles que, acometidos disto, confundiam dicere por ducere — e se iam. Mas isto é coisa da qual não faço, advertir do óbvio.

Olhai, amados, não importa ter tesouro no fundo conchavado às áreas baixas da carne, ou mesmo ‘verdade’, quando se quer ver vender a fala no mercado da fala, é necessário ter garganta ou nada se fará. Não importa qual deus da verdade assenta nos ombros do orador. Falo o óbvio?

H Reis
Enviado por H Reis em 19/12/2019
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