DO LIVRO - APAE, 50 ANOS DE AMOR
Autor: João Anatalino
Edição comemorativa dos 50 anos da APAE-MOGI DAS CRUZES
CAPÍTULO I
TENDÊNCIAS HISTÓRICAS E FILOSÓFICAS
O problema da linguagem
A relação da sociedade com as pessoas que apresentam algum tipo de deficiência física ou intelectual sempre foi motivo de controvérsias e perplexidades. Em nenhum momento, na história da espécie humana, houve uma concordância expressa e cabal sobre a forma correta de lidar com esse problema.
Na verdade, ao longo do tempo é possivel perceber que há variação, às vezes até radical, de tratamento do tema, envolvendo mesmo uma política de Estado, que nele intervém, de forma atabalhoada, ora com viés político-ideológico, ora com finalidade meramente eleitoreira, provocando as mais diversas reações na sensibilidade geral das comunidades.
Dessas ações resultam as diversas formas de tratar esse tema, que variam de cultura para cultura, conforme o sistema de crenças, valores e ideologias assumidas pelos diferentes povos. E daí as consequentes práticas sociais, religiosas e políticas adotadas, ao longo da história, com relação ao tratamento dado às pessoas pertencentes a esse grupo. Elas nunca foram uniformes, como veremos, e ainda hoje suscitam calorosos debates.
Começa pelo problema de linguagem que o tema coloca em questão. Não há consenso no uso de um termo comum para definir um indivíduo com deficiência, e muito menos para informar, com um mínino de adequação semântica, o que, de fato, constitui uma deficiência física ou mental. O termo mais comum utilizado para definir uma pessoa nessas condições é o de “indivíduo portador de deficiência”.
Entretanto, esse termo nunca teve uma aceitação tranquila entre os estudiosos da questão, pois no sentido lógico do vocábulo, o verbo portar não seria apropriado para definir o problema, já que as pessoas não “portam” uma deficiência. Pessoas com essa condição nascem ou adquirem uma deficiência, e esta nunca é uniforme nem se sujeita a um padrão de classificação que possa ser catalogado e estudado, para fins de dar a ele um tratamento uniforme. As deficiências, físicas ou intelectuais, como as capacidades e habilidades humanas, são diferentes, e nesse sentido, não podem ser padronizadas nem tratadas de maneira nivelar.
Assim, por volta da metade da década dos anos 90, no século passado, foi proposta a expressão “pessoas com deficiência”, que tem sido considerada mais apropriada para definir o indivíduo com algum tipo de problema físico ou intelectual, que autorize a sua classificação nesse grupo de cidadãos. Esse termo é o mais utilizado nos dias atuais. E é o que será utilizado neste trabalho, ainda que possa, por parte dos estudiosos desse tema, vir a sofrer alguma contestação.
A questão filosófica
Houve épocas em que indivíduos com deficiência física ou mental eram mutilados através de operações cirúrgicas para serem apresentados em espetáculos públicos representando personagens como palhaços, monstros e outras aberrações, como nos mostra Victor Hugo em seu conhecido romance “O Homem que Ri” (1869).[1]
Ainda na Grécia antiga, há registros que mostram pessoas com deficiência sendo descritas como indivíduos “fracos”, “incompletos” ou “imperfeitos”, denunciando a forte carga de preconceito e rejeição que lhes eram amarradas.
Esses registros mostram ainda que os gregos antigos procuravam distinguir alguns tipos de deficiência de outras e até conseguiam aproveitar algumas delas para o exercício de certas atividades sociais e profissionais. Era o caso das pessoas que sofriam de nanismo, que devido a uma semelhança com os chamados demônios sátiros, ,eram utilizados como figurantes nos espetáculos públicos, especialmente nos festivais dedicados ao deus Dionísio, que em Roma era conhecido pelo nome de Baco.[2]
Ao longo da história é possível perceber que esse tema vem sido tratado mais como uma questão filosófica e política, do que como um fato social mesmo. Veremos como ele evoluiu ao longo das sociedades que se sucederam no concerto geral das nações que nos legaram a civilização que hoje ostentamos, mas, como uma fórmula geral de prática social, com raríssimas exceções, é possível perceber que o tema “pessoa com deficiência” tem sido encarado, em todos os tempos, como um problema social de certa relevância, e não raras vezes, como objeto de políticas sociais restritivas e até cruéis.
Em um estudo publicado no início do século passado (1901), o antropólogo francês Francis Galton desenvolveu a espúria e odiosa tese de que a sociedade humana deveria praticar uma “seleção natural” em seus membros, com o objetivo de melhorar a qualidade da espécie humana. Pregava um tipo de esterilização dos indivíduos que apresentassem alguma forma de deficiência, para impedir que a filogênese natural da humanidade acabasse sendo contamina-da por imperfeições genéticas que poderiam levar a um enfraquecimento geral da espécie.
Acreditando ser a natureza e não o ambiente, o fator determinante das habilidades humanas, Galton dedicou toda a sua carreira científica ao desenvolvimento de uma proposta de melhoria genética da espécie humana por meio de casamentos seletivos. Num livro escrito em 1883, (Inquiries into human faculty and its development) ele criou um termo para designar essa nova ciência: eugenia (que significa bem nascido).
No início do século XX, quando as teorias de Darwin eram amplamente aceitas na Inglaterra, havia grande preocupação quanto à "degeneração biológica" do país, pois o declínio na taxa de nascimentos era muito maior nas classes alta e média do que nas classes populares. Para muitos, parecia lógico que a qualidade da população pudesse ser aprimorada pela proibição de casamentos indesejáveis e pela promoção da união de parceiros bem-nascidos. Foi necessário apenas que homens como Galton popularizassem a eugenia e justificassem suas conclusões com argumentos científicos aparentemente sólidos, para que os governos de então começassem a achar essas teses justificáveis e até úteis, do ponto de vista social.
A prática da eugenia
As propostas de Galton ficaram conhecidas como "eugenia positiva". Nos EUA, porém, elas foram modificadas, na direção da chamada "eugenia negativa", que pregava, pura e simplesmente, a eliminação das futuras gerações de pessoas "geneticamente incapazes" – neles incluídos os enfermos, os racialmente indesejados e economicamente empobrecidos –, por meio de proibição de casamentos, esterilização compulsória, eutanásia passiva e, em último caso, o extermínio físico.
Os defensores da eugenia usaram bem os conhecimentos científicos desenvolvidos no começo do século XX para "provar" que a hereditariedade tinha um papel importante na geração de patologias sociais indesejáveis e doenças congênitas. Os principais focos dessas patologias eram os imigrantes e as etnias consideradas “perigosas” para a saúde das raças dominantes.[3]
E nesse rol também as pessoas com deficiência acabaram sendo inscritas como grupo nocivo à pureza da espécie. Nesse sentido, a população incluída nesse catálogo sinistro tornou-se um alvo fácil dos defensores da nova "ciência", que tinha por fim a criação de uma “raça humana mais saudável”. [4]
O racismo político
Naturalmente, esse tipo de pensamento acabaria contaminando os meios políticos e sociais. O racismo natural de alguns grupos nacionalistas norte americanos, que já eram francamente hostis aos negros, latinos e outras nacionalidades não-brancas e de origem não nórdicas, encontrou nessa tese um canal dos mais apropriados para espalhar-se por vários meios científicos e sociais dos Estados Unidos, gerando movimentos ultra-direitistas, que muito têm perturbado a paz social na pátria americana. Um desses movimentos é o grupo nacionalista radical conhecido como Ku Klux Klan.[5]
Um cientista de renome, chamado Charles Davenport, diretor do laboratório de biologia do Brooklin Institute of Arts and Science, em Long Island, instalado em Cold Spring Harbor, foi o líder do movimento eugenista dos EUA. Em 1903, no auge da carreira, ele obteve da Carnegie Institution a permissão para instalar uma Estação Biológica Experimental naquela universidade, onde o tema da eugenia seria estudado como disciplina acadêmica.
Vários outros biólogos e cientistas de renome juntaram-se a ele nessas pesquisas, convencidos de que as leis de Mendel, aplicáveis à criação de gado e melhoria da qualidade em plantas, podiam ser aplicadas para essa mesma finalidade, a seres humanos.
Na Alemanha, as teses e os trabalhos desenvolvidos pelos americanos com respeito à eugenia se tornaram uma forte fonte de inspiração para os defensores da supremacia racial. Foi nela que Hitler e os teóricos do partido nazista se inspiraram para compor as doutrinas eugenistas de identificação, segregação, esterilização, eutanásia e extermínio em massa dos “indesejáveis”, entre os quais estavam as pessoas com deficiência.
Foi nesse sentido que, em julho de 1933, o governo alemão expediu a lei que mandava esterilizar, compulsoriamente, as diversas categorias de indivíduos "defeituosos" que não fossem de origem nórdica. E com o início da Segunda Guerra Mundial, também os alemães considerados física ou mentalmente deficientes passaram a ser mortos em câmaras de gás, juntamente com os judeus e outros indivíduos nessa condição. Foi assim que a odiosa tese de um pretenso cientista acabou levando à morte milhões de pessoas, somente pelo fato de serem de raças ou crenças diferentes, ou por ostentarem condições físicas ou intelectuais não compatíveis com a ideia de uma “humanidade perfeita”.
Preconceito e discriminação
A prática da eugenia em pessoas com deficiência, porém, é bem anterior ao período nazista e tem raízes históricas muito antigas. Pode ser recenseada já na era pré- histórica, quando a humanidade dependia, para sua sobrevivência, praticamente dos produtos que a natureza lhe proporcionava, qual seja a caça, a pesca, a coleta de frutos, e tinha as cavernas como habitação.
Nessa época era fundamental e necessário que as pessoas tivessem constituições físicas adequadas, de maneira que permitisse à elas enfrentar os duros desafios que o ambiente lhes apresentava. Sendo nômades, os grupamentos humanos tinham de deslocar-se constantemente de um local para outro e nesse sentido, um corpo sem anomalias era fundamental para a sobrevivência do indivíduo. Quem não pudesse defender-se por si próprio tornava-se presa fácil dos predadores e dos inimigos.
Não havendo ainda uma organização social que pudesse assumir a tarefa de cuidar dos menos favorecidos pela natureza, é evidente que a pessoa com deficiência acabava sendo abandonada à sua própria sorte e dificilmente sobrevivia. Essa característica dos grupamentos humanos, na pré-história, pode ser recenseada em pinturas rupestres e em escavações arqueológicas, onde se nota a prática de abandonar os membros que não podiam mover-se com agilidade, ou que apresentassem alguma anomalia que impedisse sua mudança de um lugar para outro com rapidez, ou mesmo de se defender. É uma tradição que ainda pode ser recenseada entre tribos indígenas do Brasil e da África.[6]
Entre as pessoas abandonadas, é evidente que seriam aquelas com deficiências as escolhidas, e por consequência, as mais prejudicadas. Esse procedimento não resultava, como é óbvio, de um sentimento de rejeição ou preconceito para com essas pessoas, mas sim de uma necessidade de sobrevivência do próprio grupo.
Não entravam, nesse conceito, as odiosas teses desenvolvidas pelos defensores da seleção natural, que viam nesse procedimento uma fórmula lógica e natural de sustentar espúrias teses justificando o racismo e outras aberrações filosóficas e culturais, que tanta infelicidade tem trazido à humanidade.
O que se mostra aqui é que, nesse estágio primário de desenvolvimento da espécie humana, a estrutura física da pessoa conferia à ela não somente uma importância cultural dentro dos grupos. A estrutura física era, mais que um atributo orgânico, uma qualidade fundamental da pessoa. Quanto mais forte, mas capacitada para sobreviver; quanto mais limitada, mais sujeita a uma eliminação precoce, por força das próprias condições ambientais. Nesse sentido, como parece ser óbvio, a pessoa com deficiência era o principal hospedeiro desse handcap, tornando-a diferente das demais, e por conta disso, relegada a um segundo plano entre as preocupações daqueles grupos.[7]
Essa tendência deixou de ser justificada com a progressiva socialização dos povos que emergiram para a era histórica. Nesta, os produtos necessários à sobrevivência humana deixaram de ser exclusivamente produzidos pela atividade laboral de caça, pesca e coleta. A forma de ganhar a vida, através da indústria, da agricultura, da pecuária e de outras atividades gregárias desenvol-vidas pelas sociedades antigas, mesmo nas mais primitivas, já não mais centralizava-se na força física e na destreza pessoal do indivíduo, razão pela qual, o abandono, puro e simples, das pessoas com deficiência, já não se justificava como medida de sobrevivência do grupo. Assim, o sentido utilitário da vida humana cedeu espaço à uma noção mais espiritualizada da existência, que foi conquistada principalmente pelo desenvolvimento das religiões antigas, que viam no homem um prolongamento das divindades por eles cultuadas.
Evidentemente, as condições físicas da pessoa continuavam a influir de forma decisiva no valor que se dava a ela, no sentido sociológico e econômico. Pessoas com dificuldade de produzir e ganhar suas próprias vidas continuariam a ter o desfavor da sociedade, em qualquer período da história em que o valor social de um indivíduo fosse dosado pela sua capacidade de produzir. Essa é uma noção da qual nem as modernas sociedades conseguiram ainda se libertar de forma absoluta. Nesse sentido, o aspecto biológico será sempre o motor dessa influência, podendo mesmo até causar a ocorrência de certas situações embaraçosas e desconfortáveis na vida das pessoas nessas condições.
Mas, em uma sociedade que prima por uma política de valorização do ser humano, somente a ignorância de algumas pessoas pode ainda continuar a justificar as reações de preconceito, rejeição e discriminação que ainda se notam em alguns segmentos sociais em relação às pessoas com deficiência. O que antes se justificava pela própria estrutura comunal então existente, hoje somente se entende como um resquício de barbárie ainda não superada por esses indivíduos.
Porque hoje a sociedade tem mecanismos e recursos que possibilitam um tratamento mais humanitário do tema. Sendo assim, não mais se justificam ideias de seleção natural ou valorização dos indivíduos por sua capacidade de produção ou pela sua utilidade social. Destarte, a noção de que todos os indivíduos, seja qual for a sua raça e condição, têm direitos humanos que devem ser respeitados é, nos dias atuais, um pressuposto reconhecido e hospedado por praticamente todas as legislações adotadas pelas nações civilizadas do planeta.
Recepcionada pela ONU, essa legislação hoje está incorporada na maioria das Constituições vigentes dos países que participam dessa Organização.[8]
A atuação das APAES
É, pois, nesse exato contexto que situamos a atuação das APAES, modernamente a mais bem sucedida das organizações humanitárias que realizam esse maravilhoso trabalho de resgate de uma população marginalizada e estigmatizada ao longo de milênios de história. Podemos dizer que é aqui que nós nos reencontramos com o elo perdido que fez da espécie humana a coroa da criação de Deus. E verificamos, nesse reencontro, que a humanidade é um todo que não sobreviverá se uma de suas partes for seccionada e segregada como um tumor que precisa ser extirpado em função da saúde do organismo. Porque, se no organismo humano se desenvolvem neoplasias malignas que comprometem a saúde do organismo, a natureza, por seu turno, não faz nada que não seja útil ao seu desenho estrutural. Assim, todas as pessoas, independente da sua constituição biológica, exercem um papel fundamental nesse contexto.
Importa, para o equilíbrio geral de uma sociedade que busca um modelo ideal de desenvolvimento, que se preservem suas conquistas e garanta-se, para todos, o direito à uma vida útil e à felicidade. E que nenhum dos seus substratos seja segregado ou impedido de participar desse concerto, seja por que motivo for.
Nesse sentido, todo esforço que se faça para que cada pessoa seja integrada na sociedade com adequadas condições de nela viver e mostrar seu valor pessoal ̶ porque todas elas têm ̶ será muito bem vindo. Esse é o trabalho ao qual se dedicam as APAES.
E a APAE-Mogi das Cruzes, neste campo específico do desenvolvimento humano, com orgulho, completa cinquenta anos de um trabalho profícuo, que produziu expressivos resultados. Sua história é um exemplo de superação e conquistas que merece ser compartilhado, porque é a luta de milhares de pessoas que se comprometeram com uma causa, a qual só agora, depois de milênios de incompreensão e exploração política, começa a encontrar um encaminhamento apropriado.
__________________________
[1] Essas operações eram praticadas especialmente por ciganos nômades (os “comprachicos”) que compravam ou raptavam crianças justamente para essa finalidade. Eles deformavam o rosto das crianças, para depois vendê-las aos donos de teatros ambulantes (mambembes), que percorriam as aldeias, encenando espetáculos públicos.
Autor: João Anatalino
Edição comemorativa dos 50 anos da APAE-MOGI DAS CRUZES
CAPÍTULO I
TENDÊNCIAS HISTÓRICAS E FILOSÓFICAS
O problema da linguagem
A relação da sociedade com as pessoas que apresentam algum tipo de deficiência física ou intelectual sempre foi motivo de controvérsias e perplexidades. Em nenhum momento, na história da espécie humana, houve uma concordância expressa e cabal sobre a forma correta de lidar com esse problema.
Na verdade, ao longo do tempo é possivel perceber que há variação, às vezes até radical, de tratamento do tema, envolvendo mesmo uma política de Estado, que nele intervém, de forma atabalhoada, ora com viés político-ideológico, ora com finalidade meramente eleitoreira, provocando as mais diversas reações na sensibilidade geral das comunidades.
Dessas ações resultam as diversas formas de tratar esse tema, que variam de cultura para cultura, conforme o sistema de crenças, valores e ideologias assumidas pelos diferentes povos. E daí as consequentes práticas sociais, religiosas e políticas adotadas, ao longo da história, com relação ao tratamento dado às pessoas pertencentes a esse grupo. Elas nunca foram uniformes, como veremos, e ainda hoje suscitam calorosos debates.
Começa pelo problema de linguagem que o tema coloca em questão. Não há consenso no uso de um termo comum para definir um indivíduo com deficiência, e muito menos para informar, com um mínino de adequação semântica, o que, de fato, constitui uma deficiência física ou mental. O termo mais comum utilizado para definir uma pessoa nessas condições é o de “indivíduo portador de deficiência”.
Entretanto, esse termo nunca teve uma aceitação tranquila entre os estudiosos da questão, pois no sentido lógico do vocábulo, o verbo portar não seria apropriado para definir o problema, já que as pessoas não “portam” uma deficiência. Pessoas com essa condição nascem ou adquirem uma deficiência, e esta nunca é uniforme nem se sujeita a um padrão de classificação que possa ser catalogado e estudado, para fins de dar a ele um tratamento uniforme. As deficiências, físicas ou intelectuais, como as capacidades e habilidades humanas, são diferentes, e nesse sentido, não podem ser padronizadas nem tratadas de maneira nivelar.
Assim, por volta da metade da década dos anos 90, no século passado, foi proposta a expressão “pessoas com deficiência”, que tem sido considerada mais apropriada para definir o indivíduo com algum tipo de problema físico ou intelectual, que autorize a sua classificação nesse grupo de cidadãos. Esse termo é o mais utilizado nos dias atuais. E é o que será utilizado neste trabalho, ainda que possa, por parte dos estudiosos desse tema, vir a sofrer alguma contestação.
A questão filosófica
Houve épocas em que indivíduos com deficiência física ou mental eram mutilados através de operações cirúrgicas para serem apresentados em espetáculos públicos representando personagens como palhaços, monstros e outras aberrações, como nos mostra Victor Hugo em seu conhecido romance “O Homem que Ri” (1869).[1]
Ainda na Grécia antiga, há registros que mostram pessoas com deficiência sendo descritas como indivíduos “fracos”, “incompletos” ou “imperfeitos”, denunciando a forte carga de preconceito e rejeição que lhes eram amarradas.
Esses registros mostram ainda que os gregos antigos procuravam distinguir alguns tipos de deficiência de outras e até conseguiam aproveitar algumas delas para o exercício de certas atividades sociais e profissionais. Era o caso das pessoas que sofriam de nanismo, que devido a uma semelhança com os chamados demônios sátiros, ,eram utilizados como figurantes nos espetáculos públicos, especialmente nos festivais dedicados ao deus Dionísio, que em Roma era conhecido pelo nome de Baco.[2]
Ao longo da história é possível perceber que esse tema vem sido tratado mais como uma questão filosófica e política, do que como um fato social mesmo. Veremos como ele evoluiu ao longo das sociedades que se sucederam no concerto geral das nações que nos legaram a civilização que hoje ostentamos, mas, como uma fórmula geral de prática social, com raríssimas exceções, é possível perceber que o tema “pessoa com deficiência” tem sido encarado, em todos os tempos, como um problema social de certa relevância, e não raras vezes, como objeto de políticas sociais restritivas e até cruéis.
Em um estudo publicado no início do século passado (1901), o antropólogo francês Francis Galton desenvolveu a espúria e odiosa tese de que a sociedade humana deveria praticar uma “seleção natural” em seus membros, com o objetivo de melhorar a qualidade da espécie humana. Pregava um tipo de esterilização dos indivíduos que apresentassem alguma forma de deficiência, para impedir que a filogênese natural da humanidade acabasse sendo contamina-da por imperfeições genéticas que poderiam levar a um enfraquecimento geral da espécie.
Acreditando ser a natureza e não o ambiente, o fator determinante das habilidades humanas, Galton dedicou toda a sua carreira científica ao desenvolvimento de uma proposta de melhoria genética da espécie humana por meio de casamentos seletivos. Num livro escrito em 1883, (Inquiries into human faculty and its development) ele criou um termo para designar essa nova ciência: eugenia (que significa bem nascido).
No início do século XX, quando as teorias de Darwin eram amplamente aceitas na Inglaterra, havia grande preocupação quanto à "degeneração biológica" do país, pois o declínio na taxa de nascimentos era muito maior nas classes alta e média do que nas classes populares. Para muitos, parecia lógico que a qualidade da população pudesse ser aprimorada pela proibição de casamentos indesejáveis e pela promoção da união de parceiros bem-nascidos. Foi necessário apenas que homens como Galton popularizassem a eugenia e justificassem suas conclusões com argumentos científicos aparentemente sólidos, para que os governos de então começassem a achar essas teses justificáveis e até úteis, do ponto de vista social.
A prática da eugenia
As propostas de Galton ficaram conhecidas como "eugenia positiva". Nos EUA, porém, elas foram modificadas, na direção da chamada "eugenia negativa", que pregava, pura e simplesmente, a eliminação das futuras gerações de pessoas "geneticamente incapazes" – neles incluídos os enfermos, os racialmente indesejados e economicamente empobrecidos –, por meio de proibição de casamentos, esterilização compulsória, eutanásia passiva e, em último caso, o extermínio físico.
Os defensores da eugenia usaram bem os conhecimentos científicos desenvolvidos no começo do século XX para "provar" que a hereditariedade tinha um papel importante na geração de patologias sociais indesejáveis e doenças congênitas. Os principais focos dessas patologias eram os imigrantes e as etnias consideradas “perigosas” para a saúde das raças dominantes.[3]
E nesse rol também as pessoas com deficiência acabaram sendo inscritas como grupo nocivo à pureza da espécie. Nesse sentido, a população incluída nesse catálogo sinistro tornou-se um alvo fácil dos defensores da nova "ciência", que tinha por fim a criação de uma “raça humana mais saudável”. [4]
O racismo político
Naturalmente, esse tipo de pensamento acabaria contaminando os meios políticos e sociais. O racismo natural de alguns grupos nacionalistas norte americanos, que já eram francamente hostis aos negros, latinos e outras nacionalidades não-brancas e de origem não nórdicas, encontrou nessa tese um canal dos mais apropriados para espalhar-se por vários meios científicos e sociais dos Estados Unidos, gerando movimentos ultra-direitistas, que muito têm perturbado a paz social na pátria americana. Um desses movimentos é o grupo nacionalista radical conhecido como Ku Klux Klan.[5]
Um cientista de renome, chamado Charles Davenport, diretor do laboratório de biologia do Brooklin Institute of Arts and Science, em Long Island, instalado em Cold Spring Harbor, foi o líder do movimento eugenista dos EUA. Em 1903, no auge da carreira, ele obteve da Carnegie Institution a permissão para instalar uma Estação Biológica Experimental naquela universidade, onde o tema da eugenia seria estudado como disciplina acadêmica.
Vários outros biólogos e cientistas de renome juntaram-se a ele nessas pesquisas, convencidos de que as leis de Mendel, aplicáveis à criação de gado e melhoria da qualidade em plantas, podiam ser aplicadas para essa mesma finalidade, a seres humanos.
Na Alemanha, as teses e os trabalhos desenvolvidos pelos americanos com respeito à eugenia se tornaram uma forte fonte de inspiração para os defensores da supremacia racial. Foi nela que Hitler e os teóricos do partido nazista se inspiraram para compor as doutrinas eugenistas de identificação, segregação, esterilização, eutanásia e extermínio em massa dos “indesejáveis”, entre os quais estavam as pessoas com deficiência.
Foi nesse sentido que, em julho de 1933, o governo alemão expediu a lei que mandava esterilizar, compulsoriamente, as diversas categorias de indivíduos "defeituosos" que não fossem de origem nórdica. E com o início da Segunda Guerra Mundial, também os alemães considerados física ou mentalmente deficientes passaram a ser mortos em câmaras de gás, juntamente com os judeus e outros indivíduos nessa condição. Foi assim que a odiosa tese de um pretenso cientista acabou levando à morte milhões de pessoas, somente pelo fato de serem de raças ou crenças diferentes, ou por ostentarem condições físicas ou intelectuais não compatíveis com a ideia de uma “humanidade perfeita”.
Preconceito e discriminação
A prática da eugenia em pessoas com deficiência, porém, é bem anterior ao período nazista e tem raízes históricas muito antigas. Pode ser recenseada já na era pré- histórica, quando a humanidade dependia, para sua sobrevivência, praticamente dos produtos que a natureza lhe proporcionava, qual seja a caça, a pesca, a coleta de frutos, e tinha as cavernas como habitação.
Nessa época era fundamental e necessário que as pessoas tivessem constituições físicas adequadas, de maneira que permitisse à elas enfrentar os duros desafios que o ambiente lhes apresentava. Sendo nômades, os grupamentos humanos tinham de deslocar-se constantemente de um local para outro e nesse sentido, um corpo sem anomalias era fundamental para a sobrevivência do indivíduo. Quem não pudesse defender-se por si próprio tornava-se presa fácil dos predadores e dos inimigos.
Não havendo ainda uma organização social que pudesse assumir a tarefa de cuidar dos menos favorecidos pela natureza, é evidente que a pessoa com deficiência acabava sendo abandonada à sua própria sorte e dificilmente sobrevivia. Essa característica dos grupamentos humanos, na pré-história, pode ser recenseada em pinturas rupestres e em escavações arqueológicas, onde se nota a prática de abandonar os membros que não podiam mover-se com agilidade, ou que apresentassem alguma anomalia que impedisse sua mudança de um lugar para outro com rapidez, ou mesmo de se defender. É uma tradição que ainda pode ser recenseada entre tribos indígenas do Brasil e da África.[6]
Entre as pessoas abandonadas, é evidente que seriam aquelas com deficiências as escolhidas, e por consequência, as mais prejudicadas. Esse procedimento não resultava, como é óbvio, de um sentimento de rejeição ou preconceito para com essas pessoas, mas sim de uma necessidade de sobrevivência do próprio grupo.
Não entravam, nesse conceito, as odiosas teses desenvolvidas pelos defensores da seleção natural, que viam nesse procedimento uma fórmula lógica e natural de sustentar espúrias teses justificando o racismo e outras aberrações filosóficas e culturais, que tanta infelicidade tem trazido à humanidade.
O que se mostra aqui é que, nesse estágio primário de desenvolvimento da espécie humana, a estrutura física da pessoa conferia à ela não somente uma importância cultural dentro dos grupos. A estrutura física era, mais que um atributo orgânico, uma qualidade fundamental da pessoa. Quanto mais forte, mas capacitada para sobreviver; quanto mais limitada, mais sujeita a uma eliminação precoce, por força das próprias condições ambientais. Nesse sentido, como parece ser óbvio, a pessoa com deficiência era o principal hospedeiro desse handcap, tornando-a diferente das demais, e por conta disso, relegada a um segundo plano entre as preocupações daqueles grupos.[7]
Essa tendência deixou de ser justificada com a progressiva socialização dos povos que emergiram para a era histórica. Nesta, os produtos necessários à sobrevivência humana deixaram de ser exclusivamente produzidos pela atividade laboral de caça, pesca e coleta. A forma de ganhar a vida, através da indústria, da agricultura, da pecuária e de outras atividades gregárias desenvol-vidas pelas sociedades antigas, mesmo nas mais primitivas, já não mais centralizava-se na força física e na destreza pessoal do indivíduo, razão pela qual, o abandono, puro e simples, das pessoas com deficiência, já não se justificava como medida de sobrevivência do grupo. Assim, o sentido utilitário da vida humana cedeu espaço à uma noção mais espiritualizada da existência, que foi conquistada principalmente pelo desenvolvimento das religiões antigas, que viam no homem um prolongamento das divindades por eles cultuadas.
Evidentemente, as condições físicas da pessoa continuavam a influir de forma decisiva no valor que se dava a ela, no sentido sociológico e econômico. Pessoas com dificuldade de produzir e ganhar suas próprias vidas continuariam a ter o desfavor da sociedade, em qualquer período da história em que o valor social de um indivíduo fosse dosado pela sua capacidade de produzir. Essa é uma noção da qual nem as modernas sociedades conseguiram ainda se libertar de forma absoluta. Nesse sentido, o aspecto biológico será sempre o motor dessa influência, podendo mesmo até causar a ocorrência de certas situações embaraçosas e desconfortáveis na vida das pessoas nessas condições.
Mas, em uma sociedade que prima por uma política de valorização do ser humano, somente a ignorância de algumas pessoas pode ainda continuar a justificar as reações de preconceito, rejeição e discriminação que ainda se notam em alguns segmentos sociais em relação às pessoas com deficiência. O que antes se justificava pela própria estrutura comunal então existente, hoje somente se entende como um resquício de barbárie ainda não superada por esses indivíduos.
Porque hoje a sociedade tem mecanismos e recursos que possibilitam um tratamento mais humanitário do tema. Sendo assim, não mais se justificam ideias de seleção natural ou valorização dos indivíduos por sua capacidade de produção ou pela sua utilidade social. Destarte, a noção de que todos os indivíduos, seja qual for a sua raça e condição, têm direitos humanos que devem ser respeitados é, nos dias atuais, um pressuposto reconhecido e hospedado por praticamente todas as legislações adotadas pelas nações civilizadas do planeta.
Recepcionada pela ONU, essa legislação hoje está incorporada na maioria das Constituições vigentes dos países que participam dessa Organização.[8]
A atuação das APAES
É, pois, nesse exato contexto que situamos a atuação das APAES, modernamente a mais bem sucedida das organizações humanitárias que realizam esse maravilhoso trabalho de resgate de uma população marginalizada e estigmatizada ao longo de milênios de história. Podemos dizer que é aqui que nós nos reencontramos com o elo perdido que fez da espécie humana a coroa da criação de Deus. E verificamos, nesse reencontro, que a humanidade é um todo que não sobreviverá se uma de suas partes for seccionada e segregada como um tumor que precisa ser extirpado em função da saúde do organismo. Porque, se no organismo humano se desenvolvem neoplasias malignas que comprometem a saúde do organismo, a natureza, por seu turno, não faz nada que não seja útil ao seu desenho estrutural. Assim, todas as pessoas, independente da sua constituição biológica, exercem um papel fundamental nesse contexto.
Importa, para o equilíbrio geral de uma sociedade que busca um modelo ideal de desenvolvimento, que se preservem suas conquistas e garanta-se, para todos, o direito à uma vida útil e à felicidade. E que nenhum dos seus substratos seja segregado ou impedido de participar desse concerto, seja por que motivo for.
Nesse sentido, todo esforço que se faça para que cada pessoa seja integrada na sociedade com adequadas condições de nela viver e mostrar seu valor pessoal ̶ porque todas elas têm ̶ será muito bem vindo. Esse é o trabalho ao qual se dedicam as APAES.
E a APAE-Mogi das Cruzes, neste campo específico do desenvolvimento humano, com orgulho, completa cinquenta anos de um trabalho profícuo, que produziu expressivos resultados. Sua história é um exemplo de superação e conquistas que merece ser compartilhado, porque é a luta de milhares de pessoas que se comprometeram com uma causa, a qual só agora, depois de milênios de incompreensão e exploração política, começa a encontrar um encaminhamento apropriado.
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[1] Essas operações eram praticadas especialmente por ciganos nômades (os “comprachicos”) que compravam ou raptavam crianças justamente para essa finalidade. Eles deformavam o rosto das crianças, para depois vendê-las aos donos de teatros ambulantes (mambembes), que percorriam as aldeias, encenando espetáculos públicos.
[2] Dionisio (em grego: Διόνυσος) era o deus dos ciclos vitais, das festas, do vinho, da loucura, do teatro e dos ritos religiosos. Em Roma era chamado de Baco e presidia as famosas Bacanais, festas orgíacas a que os romanos se entregavam no equinócio da primavera. Dioniso era considerado protetor dos fracos e dos desvalidos, dos marginais e de tudo que era imperfeito na sociedade. Por isso seu séquito era sempre formado pelos sátiros, espécie de demônios nanicos, metade homem, metade animal, e que simbolizavam a natureza ambígua e burlesca do ser humano. Na imagem, máscaras de pessoas com deficiência, usadas nas representações teatrais gregas. Fonte: Istockphot.com
[3] Tema que recupera a importância nos dias de hoje, quando a Europa e os demais países, classificados como “desenvolvidos”, estão sofrendo uma nova “invasão bárbara”, como são chamadas, por alguns partidos nacionalistas, as ondas migratórias vindas de Ásia e África, que estão ocorrendo nesses países. Geralmente, são nesses momentos, entre os povos que já conquistaram um nível confortável de desenvolvimento econômico e social, que afloram os sentimentos de rejeição e preconceito contra as pessoas menos desfavorecidas, entre elas, as que apresentam alguma deficiência física ou intelectual.
[4] Na imagem, o edifício da Estação Biológica Experimental, localizada no Estado da Virgínia Ocidental, onde os estudos para o desenvolvimento da “raça humana saudável” eram desenvolvidos. Fonte: Peter Lang-Stanton e Steven Jackson- BBC - programa apresentado em 23 de abril de 2017.
[5] Ku Klux Klan (também conhecida como KKK ou simplesmente ("o Klan"), é o nome dado a três movimentos distintos nos Estados Unidos, que defendem ideias reacionárias e extremistas, tais como o nacionalismo, a supremacia branca, a proibição da imigração e, especialmente, a supremacia da raça nórdica. São anticatólicos, antissemitas, e politicamente, defendem ideias de extrema direita.
[6] Conforme reportagem mostrada pelo programa Fantástico, da Rede Globo, exibida no dia 07/12/2014 a antiga tradição indígena que faz os pais tirarem a vida de crianças com deficiência física ainda remanesce em pelo menos 13 etnias no Brasil. É uma tradição praticada pelos índios brasileiros desde antes dos europeus chegarem ao país.
[7] Na imagem, pintura rupestre mostrando a atividade de grupos em sua luta pela sobrevivência. Fonte: Voices of Ancient Age- Angeles Arrien- O Caminho Quádruplo.
[8] A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece os direitos humanos básicos que a todo ser humano, independente de raça, religião, condição física e sexo, deve ser garantidos. Essa declaração foi adotada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Ver, no apêndice deste trabalho, a íntegra da legislação que rege os direitos da pessoa deficiente no Brasil.