A metafísica do mangaká

I

A História do mangá, como disciplina acadêmica, informa que as histórias em quadrinhos japonesas existem desde os pergaminhos dos séculos 12 e 13. A pergunta que proponho neste ensaio, entretanto, é: já existia o mangaká também? Isto é, o mangaká surgiu junto com o mangá? Parece uma pergunta que tem uma resposta óbvia, mas não é bem assim.

Katsushika Hokusai (1760-1849), um artista gráfico que viveu no período Edo (1603-1868), não é chamado de "mangaká", mas a coleção que reúne seus esboços artísticos chama-se "Hokusai Mangá".

Historiadores costumam fazer distinção entre "arcaico" ou "clássico" e "moderno". Sugere-se, com isso, que o artista de mangá "arcaico", como o próprio Hokusai, não é "mangaká"; apenas o criador de mangá "moderno" é "mangaká". Algumas diferenças entre o arcaico e moderno são: nos mangás "arcaicos", há uma sequência de artes gráficas, mas não "arte sequencial" (Eisner, Comics and Sequential Art), não há uma unidade narrativa que conecte as ilustrações. Ou seja, o "Hokusai Mangá" não contém histórias gráficas, nem mesmo ficção, mas meros desenhos do cotidiano japonês do século XIX.

O que se pretende também neste texto é explicar o porquê da diferença conceitual e prática entre mangá "arcaico" e mangá "moderno".

II

Poderia existir "algo em comum" entre o mangaká de hoje e o "artista de mangá" de qualquer período anterior ao "Japão moderno"? Tanto um quanto outro se compreendem como "animais racionais"; como seres humanos, a metafísica pertence à natureza deles.

O "senso-comum" entende "metafísica" no sentido aristotélico ou escolástico, que remete a "Deus", "alma", "outro mundo" etc. Mas neste ensaio, adota-se a concepção heideggeriana de "metafísica". Nas palavras do filósofo Martin Heidegger (1889-1976): "a metafísica é o acontecimento essencial no âmbito do ser-aí" (Que é Metafísica?). O pensador alemão fala em "ordem metafísica" (A superação da metafísica, II). Mais do que isso, ele fala em "ordem metafísica de hoje". Isto é, a ordem metafísica não é estática. O mangaká e o artista de mangá "arcaico" são animais racionais, mas estão em ordens metafísicas distintas.

Heidegger também fala em "acabamento da metafísica". "O fim é, como acabamento, a concentração nas possibilidades supremas" (O Fim da Filosofia, I). O fenômeno do desenvolvimento tecno-científico compõe o acabamento da metafísica. Com isto, a abstração do conceito de metafísica se reduz, pois se associa-se à concretude da ciência e tecnologia.

Quando se fala em "tecnologia", o "senso-comum" pensa em máquinas robóticas ou nos sistemas de informação que permeiam a sociedade atual. Mas "tecnologia" tem um sentido metonímico que remete sua concepção à técnica ou conjunto de técnicas. Há técnica, tanto dos mangakás, quanto dos artistas de mangá do Japão "pré-moderno". Mas é evidente que não se tratam da mesma "técnica".

O filósofo alemão define técnica como "uma forma de desencobrimento" (A questão da técnica). "A pro-dução conduz do encobrimento para o desencobrimento". Tanto a técnica "artesanal" do artista de mangá "pré-moderno, quanto a técnica moderna do mangaká são definidas como "desencobrimento". Mas qual a diferença entre um e outro? A resposta ajuda a compreender a metafísica do mangaká.

III

O animal rationale de hoje é o ser vivo trabalhador. Heidegger explica que "na ordem metafísica de hoje, o trabalho alcançou a objetivação incondicional de todo vigente que vigora na vontade do querer" (A superação da metafísica, II). O desenvolvimento tecno-científico chegou ao estágio em que encontrou um "acabamento adequado no fato de o homem da metafísica im-por-se como animal trabalhador".

O mangaká é produto do acabamento da metafísica, que é caracterizada pelo "triunfo do mundo técnico-científico e da ordem social que lhe corresponde". Na década de 1930, os mangás eram publicados em revistas de "grande circulação" e depois reunidos em volumes. A "grande circulação" só é possível graças às máquinas de impressão que, evidentemente, só poderia ser "desencoberto" por aquele estágio de desenvolvimento tecnológico.

A Era Meiji (1868-1912) ficou conhecida como o período em que o Japão passou pelo processo de ocidentalização, em que até mesmo a ciência ocidental foi importada. A "ordem social" correspondente ao mundo tecno-científico se manifesta neste detalhe. O acabamento da metafísica implica na fundação da civilização baseada no pensamento ocidental. Assim pode ser caracterizada a ordem metafísica em que o mangaká está "inserido".

Hokusai, por outro lado, como um artista de mangá "pré-moderno", viveu uma ordem metafísica caracterizada pelo trabalho que ainda não havia alcançado a "objetivação incondicional". Ou seja, o technites, que possui a techne - e, portanto, sabe como desencobrir e fazer os entes - ainda não havia alcançado a capacidade que caracteriza technik industrial.

A produção "pré-technik" do Japão "pré-moderno" não era capaz de ultrapassar o ser humano a ponto de moldá-lo e preencher seus propósitos, pois ainda não tinha os recursos que a técnica fornece hoje. Não havia na "pré-technik", um ser humano Bestand, com poder explorável que permite uma ultrapassagem com o grau que tem atualmente. Apesar de, já nesta época, o "homem não ser capaz de ser homem por sua livre vontade", a technik, ou tecnologia industrial, que veio "modernizar" o Japão, criou uma "nova forma" do ser-no-mundo, o "animal mecanizado". Além disto, a technites "pré-moderna" tinha como fonte da sua forma de compreensão o "metafísica" confuncionista, que fornece crenças de "harmonia social" e "ordem natural", em que cada tem "seu lugar".

O mangá "arcaico" pictocêntrico tinha evidente influência das ilustrações chinesas. Mas o início da Era Meiji ficou marcada pela finalidade de modificar esta cultura. Logo a arte focada na imagem deu lugar à arte dominada pela escrita. O mangá moderno surge como uma amálgama do pictocentrismo "pré-moderno" e do logocentrismo ocidental "moderno".

Ao adotar a ocidentalização, incluindo aí a importação da ciência ocidental, o governo Meiji sugere a aceitação dos pressupostos da metafísica antropocêntrica, iniciada pelo cartesianismo - que é a fonte do modo de compreensão e descoberta da technik - em detrimento da "metafísica" confuncionista.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 26/11/2019
Código do texto: T6804070
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