Ensaio - Poesia, Algumas Aproximações - o Onírico e o Sublime como elemento poético.

Em Platão, no Fedro, vemos o elogio da arte abstrata, aquela que não possui referências explícitas, que não se apóia num modelo, cujo âmbito é plenamente onírico, capaz, portanto, de abrir os compartimentos perceptivos do leitor desinteressado.

Isso encontra raízes no culto dos oráculos, sobretudo o de Delfos. Os oráculos eram sacerdotes que, em uma suposta conexão com os deuses, faziam predições que eram interpretadas posteriormente pelos que os consultavam.

As pitonisas eram sacerdotisas do templo de Apolo, e, segundo os relatos, aspiravam um certo vapor advindo das reentrâncias da terra e, sob o efeito de tais emanações, entravam num frenesi e profetizavam.

Tal como os oráculos, o poeta se encontra arrebatado por um frenesi que o faz delirar e compor seus versos de dimensão plurisimbólica.

Interessante notar que, assim como os delírios dos oráculos possuíam interpretações diversas segundo cada intérprete, os poemas surreais, asbtratos, possuem uma significação própria para cada leitor.

Para Platão, a verdadeira obra de arte não é elaborada através de um processo puramente racional, deliberado, inteligente, pois a poesia é fruto do coração, e não da razão. Querer fazê-lo é querer enquadrar o poema em um logaritmo, em uma cifra, em uma equação. A verdadeira obra de arte nasce do delírio divino:

“Quem se aproxima dos umbrais da arte poética, sem o delírio que as Musas provocam, julgando que apenas pelo raciocínio será bom poeta, sê-lo-á imperfeito, pois que a obra de arte inteligente se ofusca perante aquela que nasce do delírio” – Fedro

Em outra ocasião (República) Platão fará uma severa crítica à poesia que, segundo ele, não possuía uma dimensão pedagógica, exprimindo conceitos equivocados sobre os valores e sobre a religião, devendo, pois, ser expurgada da República. Tal conceito possuía também uma ordem metafísica, uma vez que a arte representativa, fosse ela um poema ou um quadro, se afastava do real. Se o mundo material, sensível, era uma cópia do inteligível, a obra de arte seria a cópia da cópia. Quando um artesão fazia uma cadeira, ele a fazia baseado no modelo sensível, que era uma cópia do modelo inteligível, afastando-se da cadeira-em-si, que estava no mundo das idéias. A arte era uma imitação da imitação. Aristóteles faria da imitação o princípio da arte, afirmando que toda obra é mímesis, no sentido de um melhoramento do modelo tomado como representação. Mas esta é uma outra discussão que foge do meu propósito aqui.

Já em Longino vemos a obra de arte que surge do “delírio báquico” capaz de elevar o artista ao Sublime.

Ao contrário de Horácio, que em sua Arte Poética dava uma especial predileção à composição, à ordem racional, à unidade e coerência, Longino afirmava que a obra poderia possuir certos erros, que seriam perdoados, desde que fosse expressão maior do sublime:

“O sublime é o ponto mais alto e a excelência, por assim dizer, do discurso e que, por nenhuma outra razão senão essa, primaram e cercaram de eternidade a sua glória os maiores poetas e escritores” – Do Sublime

“Não é a persuasão, mas o arrebatamento, que os lances geniais conduzem os ouvintes” – Idem

“As obras naturais se deterioram e aviltam de todo, se reduzidas a esqueleto pelas regras da arte” – Idem

Detenho-me em Longino, pois este faz uma aproximação entre o delírio poético criativo e o delírio dos oráculos:

“Muitos, com efeito, são inspirados por um sopro alheio, tal como, ao que consta, aproximando-se da trípode, onde, conforme dizem, existe uma fenda da terra, que exala um vapor impregnado de divindade, imediatamente, pelo poder do deus, a pitonisa se torna fecunda e passa logo a oracular segundo a inspiração” – Do Sublime

Cabe ressaltar, ainda em Longino, a especial atenção que ele dá ao novo, à novidade, o que o aproxima do “make it new” poundiano, este, por sua vez, encontrou-o na literatura oriental antiga, razão pela qual se diz que o novo é mais velho do que se pensa (Longino é do século I d. C.):

“O que suscita admiração é sempre o raro” – Do Sublime

Temos aí Pound e os formalistas russos, temos aí o surrealismo, Breton e c&a, temos aí James Joyce e a vanguarda, etc.

O que importa ressaltar é que a obra de arte genuína não é fruto de uma elaboração de cunho racionalista, é uma obra inspirada, autônoma, nasce diretamente do coração, seu âmago é o símbolo, em sua dimensão plural, e o símbolo, como afirmam os antropólogos culturais, são os responsáveis por mediar a relação entre o terreno e o celeste, entre os mortais e os deuses. A obra de arte poética moderna e contemporânea buscou aí, nos antigos, seus pressupostos. O novo já nasceu velho. O poeta é o profeta inspirado (mais uma vez Rimbaud, um exemplo moderno), é um oráculo arrebatado por um frenesi divinal.

Dou aqui alguns exemplos de autores que se deixaram levar pelo inconsciente.

Clarice Lispector: Ela promoveu verdadeiras epifanias, mergulhou a alma sem medo no oceano hermético, de onde saiu plena de significados. Ela mesma adverte o leitor de que não deve tentar decifra-la intelectualmente. Aqui vale dizer que o pior leitor é o que eu chamo de leitor lógico-discursivo, o que emprega em toda leitura uma estrutura lógica. Isso funciona em certos textos específicos, técnicos, não numa obra de arte, onde toda lógica não tem direito de cidadania, sai de cena para dar lugar ao ilógico (Bachelard). Assim, ela afirma:

“Renda-se como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei” – Laços de Família

“Não se preocupe em “entender”. Viver ultrapassa todo entendimento” – Idem

Julio Cortázar: Um gênio imbuído de todos os fluidos arquetípicos. Nele dá-se um sopro cósmico, onde a alma gira de encontro ao Absoluto.

Murilo Rubião: O autor mergulha até os cabelos no realismo fantástico, reverberando a realidade através dos reflexos de um espelho onírico.

Jorge Luís Borges: De tanto enxergar ficou cego. Escreveu sobre universos paralelos, insólitos, perdidos em labirintos astrais, jardins bifurcados, bibliotecas dentro de um espelho, plantas que absorvem o espaço e reorganizam o Tempo plasmando tudo.

Baudelaire: Para o poeta a natureza é um templo hermético onde olhos ocultos espreitam o homem, onde há analogias e misteriosas refulgências, cabendo ao poeta, esse ser interior, traduzi-las.

Rimbaud: A poesia é um mistério revelado aos poetas, que devem transmitir seus vaticínios ao mundo para livra-lo de sua limitação corporal e histórica. A alquimia do verbo, a linguagem primordial.

Mallarmé: a poesia se faz com palavras, não com idéias. Há uma linguagem absoluta que não é acessível pelo intelecto finito.

Herberto Helder: As palavras giram num caos vertiginoso, numa gravidade bêbada, constituindo-se uma galáxia de significados. Mesmo no caos encontram a ordem, mas uma outra ordem, uma ordem suprema.

As referências não caberiam aqui, seriam necessários mais tempo e mais espaço, e o grande dilema do homem criador é que o tempo é bastante exíguo diante da magnitude dos anseios espirituais.

UM BREVÍSSIMO APÊNDICE

Fernando Pessoa disse certa vez: “Canto de qualquer maneira e acabo com um sentido”. Mesmo não sendo um adepto do surrealismo, deixou-se arrastar pelas vagas impetuosas do inconsciente.

POETA – UM “SER INTERIOR”

Defino o poeta como “ser interior”.

Com efeito, o ofício do verso o faz mergulhar completamente dentro de si mesmo, arranca-o da aridez de um mundo desencantado (Weber) por uma tecnologia cada vez mais funesta, por uma sociedade pós-industrial desmitologizada, onde o cálculo frio reduz os seres humanos a máquinas. Assim, o poeta torna-se puro Conteúdo.

A ARTE É UM SACERDÓCIO

A arte é um sacerdócio (“O poeta é um sacerdote” – Ginsberg), exige devoção e dedicação, muitas vezes a despeito do próprio homem, que se encontra dividido entre seu lado terreno de necessidades básicas e seu lado inspirado de intérprete do alto.

Assim afirma Jung:

“A essência da obra de arte não é constituída pelas particularidades pessoais que pesam sobre ela – quanto mais numerosas forem, menos se tratará de arte; pelo contrário, sua essência consiste em elevar-se muito acima do aspecto pessoal. Provinda do espírito e do coração, fala ao espírito e ao coração da humanidade” – O Espírito na Arte e na Ciência

“Todo ser criador é uma dualidade ou uma síntese de qualidades paradoxais. Por um lado, ele é uma personalidade humana, e por outro, um processo criador, impessoal. Enquanto homem, pode ser saudável ou doentio; sua psicologia pessoal pode e deve ser explicada de um modo pessoal. Mas enquanto artista, ele não poderá ser compreendido a não ser partir de seu ato criador” – Idem

Jung fala da total submissão do artista ao seu lado criador e as conseqüências de tal submissão:

“São raros os homens criadores que não pagam caro a centelha divina de sua capacidade” – O Espírito na Arte e na Ciência

“O lado humano é tantas vezes de tal modo sangrado em benefício do lado criador, que ao primeiro não cabe senão vegetar num nível primitivo e insuficiente” – Idem

O poeta é tão um ser interior que, absorvido pelo plano dos conteúdos transcendentais, ele negligencia o aspecto material da vida. Dessa forma, é possível ver artistas que se apresentam em público de forma desleixada, com traços físicos deteriorados, pois quando se chega perto do sublime que a arte proporciona ao artista o resto perde o valor, a aparência é totalmente sufocada pela essência, torna-se um embuste.

Tentei nortear alguns elementos que definem, segundo minha visão, certo procedimento poético, apontando algumas referências significativas dentro da cultura em geral, reivindicando o papel do onírico e assinalando o Sublime que preenche o sujeito, fazendo-o prescindir de qualquer bem material ou outro anseio inferior. Assim o fiz sem pretensão alguma. Desde já agradeço.

Sarauvirtual
Enviado por Sarauvirtual em 30/10/2019
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