Itinerários de Alice

A poesia é uma viagem. Uma viagem por um mundo imaginário, que somente o poeta conhece. Pelo menos é isso o que se verifica no princípio, depois o itinerário é repassado ao leitor, que assim pode acompanhar o percurso. Há também poemas sobre viagens, sobre fugas em que o eu-lírico busca transcender os limites do espaço visível, e se libertar do incômodo causado pelo ato de estar em repouso. A viagem é, assim, um elemento peculiar e transcendente, porque leva o ser ao outro lado, ao distante e diferente. As possibilidades, nesse sentido, são imensas, desde que haja possibilidades e condições para a busca objetiva.

Colocar o pé na estrada nem sempre é fácil, pois fica muito de nós em todo lugar e, consequentemente, fica muito dos lugares em nós. Quando partimos, nunca vamos sós, levamos um conjunto de apetrechos, além de sentimentos e emoções vividos em determinado local. Uma viagem é um deslocamento, desse modo, tira do lugar algo que permanecia ali. Mas, em tudo há necessidade de mudanças, na poesia e no poeta não é diferente e, muitas vezes, tudo pode começar pela mudança de lugar. Viajar é fugir, é deixar para trás o chão; é seguir para algum lugar diferente. Buscar novas possibilidades, até que chega um ponto em que a busca torna-se mais importante do que o encontro, então a viagem passa a valer por si mesma, sem qualquer outra intenção.

A viagem, pensando de uma forma simplista, pode aparecer de duas maneiras: interior e exterior. Quando a primeira, muitas vezes, pode até ser vista apenas como memórias. A segunda é o ato em si, é o deslocamento, mesmo que breve, com itinerário certo e localizado, digamos assim. Ir ao trabalho, contanto não seja necessariamente uma viagem, é mover-se e, na poesia, isso basta para despertar uma imagem poética. Isso porque, o poeta viaja em si, interiormente, em carruagens metafóricas. Nesse ponto os dois planos se encontram, o interno e o externo se condensam no poema e a viagem do sujeito (pessoa real) se junta a do eu-lírico (voz do poema), sem necessidade de disjunção, pois o resultado é sempre plausível para o leitor.

Alice Sant’Anna (Rio de janeiro, 1988) faz essa busca constantemente, sua poesia é um itinerário e seu porto é a mente do leitor. Lá o poema encontra repouso e a poeta se encontra com a mulher que, antes de tudo, é uma pessoa real. Alice escreve sobre viagens, nem sempre, mas, às vezes, sim. Fala sobre impressões e transmite ao leitor perspicaz a ideia implícita do ato de ver, de sentir, de conhecer. São impressões rápidas que, sem atenção, não podem ser vistas. Ela as apresenta como quem está apenas contando um sonho a um confidente qualquer, não há luxo ou requinte, mas tão somente sua voz e a visão do leitor.

“Ela tem um ritmo leve e uma poesia despretensiosa que alcança até os mais desavisados.” (Do site “adoro.farmrio.com.br)

E alcança mesmo, como quem não tem intenção de ser isso ou aquilo, mas que, de cara, tem suas qualidades reconhecidas. Essa leveza e despretensão fazem com que seus poemas sejam simples e tocantes ao mesmo tempo, porque comuns, são inteligíveis, levando a mensagem de forma perceptível e clara.

Sobre seu estilo, a poeta explica:

“No fundo, não defino muito minha poesia. Se não, a gente fica com consciência demais sobre o que tá fazendo.” (SANT’ANNA)

Essa consciência, talvez seja o que faça com que muitos poetas não escrevam como gostariam, pois buscam uma perfeição impossível e uma poesia não cultivável na atualidade. Hoje, a poesia, como qualquer outra arte, identifica-se com o caos, pois esse é o ambiente estabelecido. A loucura chama mais a atenção do que a lucidez; assim, a arte se apropria do inusitado e acontece em meio ao barulho do mundo pós-moderno. Não há coerência, mas contravenção, e isso não é novidade, vem de décadas anteriores.

Assim ela conclui a ideia anterior:

“O poema é um caminho feito, um pensamento livre, sem conexões aparentes. Geralmente, o final de um poema é o mais importante. Nele, não se tem escrito “fim”, então como termina o poema? Tem que ser um corte seco e sem moral da história.” (SANT’ANNA)

O conceito que a poeta apresenta é perfeitamente verificável em seus poemas, é como uma linha férrea inacabada, em que o trem para abruptamente. O poema, “como um caminho feito”, se encontra definido, e o fim não ultrapassa qualquer limite, nem obedece uma regra específica. A moral da história não está no “fim”, mas na viagem do leitor pelo poema, pelas palavras, pelo significado que ele descobre e aceita como viável, de acordo com sua visão de mundo.

Alice Sant’Anna, em sua poesia, faz a viagem real e a sonhada. Viaja pelo campo do concreto e o da memória; sendo que, muitas vezes, os dois se confundem e não há como identificá-los separadamente.

“Agora me despeço como quem segue

em viagem, passageiros a bordo

de um mesmo vagão. Aceno na janela

e prometo que telefono

que volto nas férias de verão [...]”

(SANT’ANNA)

O poema fala de despedida, mas não caracteriza uma viagem no sentido real, apenas um afastamento. Há mudança, despedida e um tom de esperança, mas nas entrelinhas existe algo de definitivo, embora as promessas digam o contrário. “Agora me despeço como quem segue/ em viagem”. A separação exige a despedida. “Passageiros a bordo de um mesmo vagão”. A impressão é que há, semelhantemente ao eu-lírico, pessoas se despedindo, mudando de rumo, tomando um caminho diferente. Depois os acenos, as promessas, figurações de um mundo real, que ganha contornos poéticos, porque a poesia ameniza certos dramas e transforma a paisagem que ela toca.

A cena comum, talvez de uma separação amorosa, torna-se uma imagem representativa, firmada na condição não de um fim, mas de um início; pois, viajar, de certo modo, é começar um novo ciclo. Assim, a imagem negativa passa a ser positiva, por meio das lentes da poesia.

“A estrada é sinuosa mas eu não

enjoo

ao contrário – escolho

palavras & acordes

que te embalam

no banco de trás”

(SANT’ANNA)

O ônibus representa o mecanismo do mundo pós-moderno urbano das classes menos favorecidas, isso nos países subdesenvolvidos. No tráfego denso das grandes cidades, pode ser uma opção para a reflexão. Para a poeta, esse espaço/tempo é usado para a feitura da poesia, tendo ainda a própria viagem como tema. Por meio de observações e sensações, os poemas vão surgindo e os acontecimentos sendo retratados. Todavia, nem tudo o que está escrito, pode ser considerada uma realidade de quem escreve. Às vezes, outros agentes fazem com que a realidade se configure propícia para o nascimento/criação da obra poética.

O ônibus é um cenário, seu interior e seu exterior, assim como interior e o exterior da poeta, são possibilidades de criação. Na verdade, o grande tema da poesia sempre foi a vida, seus aspectos e as inesgotáveis condições que se estabelecem, quando um poeta se debruça sobre ela. Há tanta coisa disponível no convívio humano, que nem sempre a poesia pode alcançar, mas os poetas fazem de tudo, na tentativa hercúlea, de trazer por meio de palavras todas as realidades, para o seu leitor.

Mesmo que a estrada apresente dificuldades, “a estrada é sinuosa...”, a poeta transforma-as em possibilidade de mudança, “... mas eu não/ enjoo/ ao contrário – escolho/ palavras & acordes/ que te embalam/ no banco da frente”. Enquanto o percurso se faz complicado, a poeta compila em sua escrita as condições do fazer poético, embalando o outro, fruindo o convívio e o destino de cada um de nós.

Notas:

[1] Os trechos em prosa, de Alice Sant’Anna e de terceiros, foram retirados do site: “adoro.farmrio.com.br”; da matéria: “A poesia de todo dia”.

[2] Todos os poemas citados foram retirados do blog pessoal da autora: “adobradura”.

João Barros
Enviado por João Barros em 02/09/2019
Código do texto: T6735291
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