O olhar nos olhos da vulnerabilidade humana - Um diálogo com Bauman
A mobilidade humana pelo globo fora um fator determinante para a história e o sucesso da nossa espécie no planeta Terra. Desde que o mundo é mundo, nós migramos.
Tal fenômeno começou com a busca por terras mais férteis, passando pela fuga de desastres naturais ou mesmo pela procura por regiões mais propícias para o desenvolvimento humano. Assim, seguiu evoluindo de acordo com as necessidades impostas pelo contexto de cada período, fazendo com que as modalidades do fenômeno da migração se reconfigurem conforme a passagem do tempo.
Na era em que vivemos, a globalização, regida pelo capitalismo, é o modelo econômico, social e político determinante. Nesse contexto, as trocas são característica principal em um mundo composto por nações que visam sua própria sobrevivência, como verdadeiros organismos vivos, abrangendo, obviamente, a de seus indivíduos ou, se preferirem, cidadãos nacionais. Assim, as trocas são definidas por atores que traçam um padrão por todo o globo, visando, de forma constante e perene, o aumento do próprio lucro.
A expansão do número de agentes e países inseridos nesse fluxo provoca, consequentemente, o crescimento de conflitos produzidos pelo intenso contato intercultural e tendo os grandes centros urbanos como palco principal de ocorrência dessas relações de trocas de cultura, etnias, raças, costumes, religiões.
O fluxo migratório atual tem origem na influência, muitas vezes fundada na relação colônia-metrópole, das nações desenvolvidas em assuntos internos dos principais países emitentes de imigrantes. Os primeiros traçavam suas ações preocupados em satisfazer seus interesses próprios, como por exemplo, suprir a necessidade da indústria armamentista de prospectar seus produtos, fato que culminou na emergência de conflitos que, consequentemente, provocaram o deslocamento de pessoas de suas terras em busca de paz. A isso somou-se o fluxo natural e constante de imigrantes econômicos.
A internet e o alcance dos veículos de comunicação possuem grande impacto diante dessa problemática. Por um lado, aos olhos do refugiado, as tecnologias de comunicação são um verdadeiro espelho refletor do abismo que separa os países desenvolvidos do resto do mundo, de modo a despertar o sonho de uma vida melhor. Por outro lado, temos nesses canais de comunicação verdadeiros dutos de disseminação da crise migratória como um pânico moral, ou seja, um sentimento compartilhado por um grande número de pessoas de que algo está à espreita ameaçando seu suado bem-estar social. Diante disso, temos uma indiferença globalizada já que estamos cada vez mais acostumados a lidar com o sofrimento humano e virar nossas costas para ele na medida em que esse choque culmina fatalmente na trivialidade das notícias cotidianas.
De acordo com o que o sociólogo Zygmunt Bauman nos diz no primeiro capítulo de sua obra “Estranhos à nossa porta”, os habitantes dos países receptores do fluxo migratório na era moderna enfrentam o chamado “dilema do estranho” onde o estrangeiro tende a causar ansiedade diante do medo do inesperado, do não saber como se comportar, da fuga da zona cotidiana de conforto. Não sabemos como podemos nos antecipar em nossas ações e isso incomoda.
As condições de entrada e permanência do imigrante são modificadas de acordo com o contexto de cada período, ou seja, quando a economia não se mostra em expansão entrando, consequentemente em período de recessão, os imigrantes são os primeiros a sofrer, valendo o interesse daqueles que não toleram o fluxo migratório.
O papel do Estado nesse cenário é, muitas vezes, conflituoso já que esse, conforme afirma Edu Morais de Souza em “A problemática das políticas imigratórias em tempos de globalização”, está relativamente perdendo sua autonomia decisória na medida em que diversos atores sociais, nutrindo diferentes interesses, o pressiona em relação à questão migratória. Porém, a influência dessas nações permanece. Em um cenário acentuado pela pluralidade de fontes de autoridade – descendentes de questões econômicas, sociais, étnicas, ecológicas, morais, religiosas, entre outras – o Estado ainda se apresenta como o grande conciliador de todas elas.
Há, portanto, grupos que sentem-se privilegiados e outros que, ao contrário, sentem-se prejudicados pelo fluxo migratório. Os primeiros geralmente são compostos por grandes empresários que buscam salários cada vez mais baixos, de modo que pessoas em situação de vulnerabilidade, como os imigrantes, são consideradas os alvos perfeitos para atender as necessidades corporativas desses. Por outro lado, os prejudicados são, em maior parte, a parcela da população que ou nutre ideias xenofóbicas, de maneira que consideram que uma sociedade heterogênea é um maleficio para o desenvolvimento do todo nacional.
Bauman diz que a principal categoria de pessoas que se mostram contra a imigração é aquela dos socialmente indesejáveis, porém nacionais, que ao verem que existe uma outra categoria abaixo da sua sentem-se aliviados, como se sua dignidade humana tivesse sido recuperada. Isso, somado à ansiedade daqueles que temem o estranho, é a base para o sucesso eleitoral de partidos e movimentos racistas, xenofóbicos, chauvinistas que pipocam pelo mundo cada vez com maior frequência. Nesse contexto, o nacionalismo é um bote salva-vidas para a moribunda autoestima dessa camada empobrecida da sociedade.
Diante dessa ansiedade nutrida por tal categoria de pessoas que temem o inesperado e apresentam o dilema do estranho, Bauman diz que a segurança emerge como prioridade, posicionando-se antes mesmo dos direitos humanos. Assim, a criação de uma atmosfera de estado de emergência atento a um inimigo comum, bem definido, faz com que certas atitudes repressivas sejam aceitas pela população em nome da segurança, abrindo-se mão da liberdade, da empatia, da solidariedade em nome da segurança, do protege-se do outro, do estranho. Portanto, a fragilidade, a vulnerabilidade, a insegurança tornam-se um fator fundamental na agenda das atuais técnicas de governos.
Isso tudo leva ao consequente fenômeno de "securitização da questão migratória". Em Relações Internacionais, securitização é um processo pelo qual atores estatais transformam assuntos extraordinários à esfera de segurança em questões de defesa nacional permitindo o uso de quase quaisquer meios em nome da proteção. Tal artificio é muito explorado na retórica política para convencer o eleitorado de que esforços estão sendo empregados para solucionar suas queixas, mesmo que nada realmente efetivo esteja sendo posto em prática.
Nesse sentido, Bauman nos dá como exemplo a transformação pelo ex-presidente François Hollande do problema dos ataques terroristas de novembro de 2016, em Paris, em uma questão migratória que encontra suas origens no fluxo de refugiados vindos principalmente dos países atingidos por guerras civis em curso. Tal atribuição fez com que a popularidade do ex-presidente - até então baixíssima - atingisse rapidamente níveis extremamente altos. Isso é uma verdadeira mostra de securitização da imigração.
Dessa forma, a securitização é como um “truque de magica”, tal qual classifica Bauman. É, antes de tudo, um meio pelo qual os governos desviam a atenção do cerne do problema (que têm como raiz fatores fundamentais da condição humana que geram competição, como oferta de empregos de qualidade, confiança e a estabilidade da condição social, proteção da dignidade, garantia de segurança) – por não quererem resolver ou não saberem como – e transferem isso para um inimigo definido, ou seja, os imigrantes que, segundo seus discursos, vêm a ser terroristas em potencial ou estranhos que vêm roubar empregos e disseminar seus costumes imorais e incompatíveis com os valores tradicionais da sociedade receptora. Tal retórica é, igualmente, sustentada pela propaganda através de diversos canais de comunicação.
Fato é que a securitização pode, pelo contrário, estimular os recrutadores de verdadeiros terroristas. Afinal quanto mais se degrada, se estigmatiza, se exclui uma parcela da população a acusando de “anormal”, mais se alimenta o ódio e a vontade de vingança por parte dessa.
Os imigrantes/refugiados são justamente as vítimas das consequências produzidas pela globalização e não a raiz dos problemas dela, além de que os que executam atentados são exatamente aqueles dos quais os refugiados estão fugindo.
A título de síntese podemos afirmar que atualmente a ordem vigente tem como foco o pleno desenvolvimento econômico sem nenhuma preocupação com o acompanhamento paralelo do progresso social. As fronteiras do mundo globalizado estão cada vez mais abertas e flexíveis para o capital financeiro, porém se apresentam cada vez mais rígidas e fechadas para o fluxo humano.
Destarte, o homem está progressivamente mais apto e capacitado para prospectar em lugares mais longínquos, porém, paralelamente, parece estar cada vez menos preparado para lidar com as consequências dessa abertura de fronteiras.
Esse despreparo em lidar com a intensificação do contato intercultural é resultado do desconforto produzido ao sermos forçados a encarar nossa vulnerabilidade como seres humanos, o que ameaça nosso suado bem-estar sustentado por nossa ilusão de estabilidade, afinal os imigrantes são o mais duro e ilustrativo reflexo da frágil realidade humana. Não queremos olhar nos olhos da verdade, pois enxergaremos forças globais poderosas o suficiente para interferir em nossas vidas enquanto desconsideram nossas necessidades e ignoram nossas preferências, gerando paralelamente miséria e desigualdade em escala progressiva pelo mundo afora. A essência humana é instintivamente dolorosa, competitiva e caótica.
As imigrações são nada menos do que o produto do desequilíbrio de igualdade entre o mundo desenvolvido e o mundo subdesenvolvido. Esse fenômeno, no mundo globalizado tem influência tanto na sociedade receptora quanto na sociedade de origem do imigrante, afinal são presenças e ausências que influenciam na comunidade como um todo, e não somente na vida dos que participam do fluxo migratório. Daí surge a necessidade de compreender a imigração como um fenômeno que pressupõe totalidade.
Assim, na era globalizada, o indivíduo transcende o cidadão, na medida em que devem ser definidos como cosmopolitas, pois os problemas do ser humano são, inevitavelmente, globalizados simultaneamente com os processos econômicos que o mundo vive atualmente cada vez em maior velocidade. Daí surge a necessidade de haver uma comunidade de riscos compartilhados, na medida em que as soluções devem ser pensadas em nível global através do diálogo entre diferentes sociedades, onde a maior parte delas sejam contempladas com essas soluções, afinal os eventos e fatos produzidos acabam por se darem em escala global.
Destarte, o fluxo migratório de pessoas moldou nossa história e foi essencial para contribuir com os processos de adaptação, inovação, realocação de recursos, que foram, por sua vez, determinantes para a sobrevivência da nossa espécie no planeta. No mundo globalizado em que vivemos o contingente de imigrantes representa, igualmente, inúmeras vantagens para as nações receptoras, contribuindo para o enriquecimento econômico, social, cultural e até pessoal da sociedade como um todo.
Com efeito, Bauman nos ensina que ninguém ainda encontrou a fórmula perfeita do equilíbrio entre liberdade e segurança, ao contrário, ele acredita que não existe uma resposta certa para essa questão. Haverá sempre uma perda maior de um elemento em benefício do outro, porém esforços devem ser feitos para caminharmos em direção a um sistema de nações mais justas e agregadoras, que enxergue a humanidade antes da nacionalidade, da religião, da raça, da cor, dos costumes, enfim, da diferença. Dessa forma, a renúncia das coletividades receptoras da ideologia de sociedade homogênea em detrimento de uma coabitação de comunidades diferentes é o primeiro passo para uma assimilação efetiva de imigrantes.