O sofrimento no magistério: algumas considerações

As marcas do sofrimento no magistério, segundo penso, mostram-se em primeiro lugar no corpo. Estão nas dores que aparecem como preço cobrado pelos músculos após horas em pé, andando e escrevendo; na exaustão do cérebro cuja capacidade parece ter se exaurido após um dia de trabalho em várias turmas; nos incômodos da garganta cansada de falar; no sono limitado, no lazer constantemente invadido pela correção de provas e trabalhos, bem como pela burocracia de registros e atualizações de cadernetas e diários.

Em si mesmas, no entanto, as atividades de um professor não podem ser consideradas de natureza estafante; elas ganham, como quase tudo, uma dimensão dolorosa quando multiplicadas e acumuladas. Trabalhando em uma escola, com um turno para aulas e o restante destinado às tarefas burocráticas e de planejamento, o professor encontra meios de gerenciar dispêndios e compensações de energia. Porém, o que se observa é a duplicação ou triplicação dessa situação aparentemente ideal – trabalho em mais de um colégio, com aulas pela manhã, pela tarde e, em muitos casos, também pela noite.

Naturalmente, tal carga física não causa surpresa em nossos dias. “Tripalium”, o instrumento de tortura romano cujo nome, ao que parece, deu origem à palavra “trabalho”, projeta a sombra não apenas em professores. Talvez, comparadas às de outras profissões, as exigências do magistério pareçam suaves, e qualquer queixa a esse respeito logo seja rechaçada como um choramingo.

Mais preocupantes, porém, são as marcas físicas quando associadas ao componente emocional. É do encontro com o outro e, principalmente, consigo mesmo, que o professor vivencia suas maiores tensões. Sem dúvida, o encontro é a alma do seu trabalho; e por se tratar de um encontro com o universo muitas vezes caótico das emoções e expectativas, cada dia de serviço pode alcançar uma dimensão dramática.

Diante de si mesmo, o professor pode dar-se conta da tarefa que abraça e sentir-se numa espécie de vertigem que rompe as camadas de rotina com as quais se protege. Subitamente, em um momento aparentemente inexpressivo – uma fiscalização de provas, um instante em que, encostado à parede ou sentado à mesa (quando há), observa os alunos resolvendo um exercício qualquer, o ser humano que assume a postura de educador vê-se suspenso dos automatismos que o moviam até então e percebe, atônito, a crueza da situação: cada corpo ajustado às cadeiras a sua frente é uma complexa e condensada teia de emoções,desejos, frustrações e sonhos; por incrível e paradoxal que pareça, o professor se dá conta de que ali todos são vivos, e a experiência torna-se apavorante quando, no passo seguinte, percebe que ali, em cada encontro, sob a película de informações que ele transmite – fatos históricos, teorias científicas, fórmulas matemáticas, estratégias de leitura, entre outras manifestações de segurança do intelecto – há uma corrente de águas graves, que em cada onda mostra uma verdade assustadora: todos ali são por ele influenciados; todos ali, em maior ou menor grau, esperam algo dele; cada palavra ou gesto seu, caindo em uma daquelas pessoas, poderá marcá-la por muito tempo, talvez para sempre.

Nesse tipo de experiência, em segundos, o professor vê-se lançado ao abismo que ele mesmo é. Procura a si mesmo no espelho apaziguante das formas que o nomeiam: um diploma, um título, um registro no Ministério do Trabalho, traços fantasmagóricos sob a luz do instante revelador: eu nada posso. Que faz ele diante daqueles jovens? Que tem ele a mostrar ali? Fundo, mais fundo se faz o abismo, e em rodopio todos os testemunhos de sua impotência mostram-lhe um sorriso de desprezo.

Algumas tábuas de salvação: a matéria bem preparada das aulas, os conhecimentos devidamente organizados e esquematizados, as informações que se transmitem e que chancelam sua presença entre os alunos. A paz se restaura.

Por pouco tempo. Logo outros momentos surgirão e o professor terá de encarar a si mesmo.

Nesse ponto, somente a assunção da própria miséria pode iniciar uma caminhada de retorno ao papel de professor. No estado de prostração e de reconhecimento das falhas e impossibilidades, no fundo mesmo da corrente que ameaça submergi-lo, ele encontra o meio de salvar-se – uma salvação por meio da humildade. Partilhando a própria humanidade com os alunos, fazendo da sua fraqueza a força com a qual procura integrar a si mesmo em um mundo fragmentado, admitindo que qualquer ambição de completo controle sobre o processo educativo não passa de uma veleidade, finalmente passa a compreender sua situação e a agir com esperança.

Tal postura diante de si mesmo pode ajudá-lo a lidar com outra dor, mais comum: a de não se ver ouvido pelos próprios alunos. Na sociedade do espetáculo e de mídias em constante aperfeiçoamento, quantos professores em sala de aula não são vistos como pálidas e estáticas estampas que se podem descartar? “A aula é chata”, “Sem dinâmica”, “O professor não sabe chamar nossa atenção” – é comum ouvir tais queixas de alunos de todos os estratos sociais. Educados pela indústria cultural, com a percepção fragmentada pela multiplicidade de estímulos eletrônicos, mergulhados até o pescoço no caldo hedonista desta era, muitos alunos não conseguem ter uma percepção fundamental: a de que ali, diante deles - com ou sem habilidades retóricas, cênicas, cinéticas ou midiáticas – está alguém que assume um papel de guia em um ramo do conhecimento; alguém que pode ser visto fora dos esquemas sustentados pelo princípio da satisfação imediata: “gosto/não gosto”, “chato/legal”, “interessante/desinteressante”. Alguém que precisa ser respeitado, a despeito de suas fragilidades e inevitáveis falhas; que deve, ouso dizer, ser respeitado por causa dessas fragilidades e falhas.

Mãos trêmulas, suor frio, ritmos interiores descompassados, boca seca – a manhã de um dia de trabalho tem o sol de um milhão de lâminas que ameaçam o caminho até a escola. Quatro, cinco, seis horários ainda na primeira parte do dia – todos precedidos pela ansiedade. Acalmar os alunos, fazer que todos tomem assento e que, sentados, participem da aula, parece mais desafiador do que desenvolver a própria aula. E no transcorrer das atividades, o constante esforço para que a linha tênue a ligar professor e alunos não se desfaça em inúmeros farrapos. Conversas paralelas, risadinhas, toques de telefone celular, pequenas dissonâncias que avolumam uma cacofonia cuja influência rompe por instantes o equilíbrio de quem não pode se desequilibrar: e o professor se rebaixa ao nível dos gritos e das atitudes agressivas.

Muitos, ensinando no nível médio, passam por isso. Para alguns, o tempo na profissão, a experiência dos muitos agravos, a consciência a respeito do que se faz tornam mais espaçosos os intervalos entre essas crises até que, persistindo na profissão, superam-nas. Para outros, porém, a psicoterapia e os remédios concorrem para a restauração da saúde. Mas há os que se blindam e encaram a tarefa de ensinar como uma travessia à qual diariamente se entregam como aves de atadas asas ao sacrifício. Que os escutem ou não, que com eles aprendam algo ou não, pouco se lhes importa. A tarefa de educar parece uma cínica utopia e uma piada de mau gosto.

É possível, conquanto difícil, enxergar a situação de modo diferente. Reconhecer a própria miséria é também reconhecer a miséria de um tempo. Ali estão alunos desmotivados, que são espelho de minha desmotivação; não me escutam, como também não escuto os apelos de tantos, rodeado pelas muralhas do egoísmo. Olham-me, alguns, com pena, porque sinto pena de mim mesmo – e me diminuem porque já entro em sala diminuído pelas queixas que repito. Não se encantam com o que ensino porque tudo me parece desencantado; e por mais que eu repita chavões pedagógicos, eles, saturados de chavões, percebem a farsa piedosa – e a desprezam.

Rodrigo C Pereira
Enviado por Rodrigo C Pereira em 16/08/2019
Código do texto: T6722026
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