A epopeia menor de José Chagas
( A Antonio Oscar Fernandes Pereira, meu avô, em cuja biblioteca descobri José Chagas)
Não se pode considerar este texto um estudo aprofundado sobre qualquer aspecto, geral ou particular, da obra de José Chagas. Falta-lhe, para isso, o método, a minúcia, o olhar crítico, a convivência diuturna com a obra do poeta. Embora minha profissão requeira a maior parte dessas qualidades, é possível que somente uma sombra delas se mostre nas linhas seguintes. É possível até mesmo que nem a sua sombra se faça notar; tanto melhor, porquanto em quase tudo vale mais ser inteiro - ou nada ser.
Porém, não gostaria de cansar o leitor com um exercício, velho de há mais de um século e narcísico por natureza, da chamada “crítica impressionista”. Nesta simpática modalidade de leitura, o texto literário é mero pretexto para as divagações mais ou menos interessantes do “crítico”. Não se trata disso, ao menos no plano de minhas intenções conscientes.
O que pretendo oferecer aqui é o resultado de uma “leitura produtiva”, ou seja, um horizonte no qual o autor constela uma série de problemas que mobilizam a inteligência do leitor, provocando-o a gerar interpretações, a estabelecer vínculos, a plasmar, enfim, com a matéria do texto, novas intuições e indagações. Nesse sentido, tento levar adiante uma partilha – a da minha experiência de leitor com um poema de José Chagas.
Harold Bloom afirma que o mais importante na leitura é a possibilidade, por ela oferecida, de aliviarmo-nos da solidão; trágica ideia, mas bastante verdadeira. Verdadeira também no caso da escrita de poesia lírica: pois sendo esta a captação de um instante, a tentativa de cristalização em palavras de algo essencialmente arredio à fala, é também para o autor um exercício de libertação de si. O leitor será testemunha desse momento, repetido em cada leitura. E o próprio leitor, quando escritor, poderá ampliar o círculo de comunhão desde que se disponha a “ouvir” as ressonâncias da obra do poeta em seu próprio universo, aceitando-a como companheira ou guia na descoberta de novas clareiras no Ser.
O texto com o qual dialogarei é Epopeia menor de um poeta muito mais, cujo subtítulo é Quase carta para Omar Coelho. Faz parte do primeiro livro de Chagas, Canção da expectativa, publicado em 1955. Sem acesso à edição original, sirvo-me da Poesia Reunida (1955 – 1979), publicada pelo Sioge, em São Luís, no ano de 1980.
O título oferece a primeira pista sobre a natureza do texto, afirmando que se trataria de uma epopeia, ou seja, um poema épico. Segundo os clássicos, um poema épico se caracteriza por alguns aspectos: o assunto “elevado”, no qual sobressai a figura do herói, que, em aventuras marcadas geralmente pelo belicismo, afirma sua força ou astúcia; a atmosfera de lenda, ainda que o texto tome por base elementos históricos; além de acontecimentos ligados à esfera do maravilhoso. Essa grade teórica assimila obras como Ilíada e Odisseia, poemas matriciais; a Eneida, que educou a latinidade, e Os Lusíadas, que encarnam a alma portuguesa, inspirando entre nós, brasileiros, exemplos menos felizes do gênero, como a Prosopopeia de Bento Teixeira e o Caramuru, do frei Santa Rita Durão.
Uma epopeia, o poema de Chagas? Uma epopeia menor – e estamos ainda no título. “Menor” em quê? Na extensão? Na qualidade? O restante do título acena para uma espécie de “argumento da humildade” que justificaria a última hipótese. Não penso, porém, que se trate disso; e a primeira pista é, de certa forma, um despistamento.
A relação que se estabelece entre o texto de José Chagas e o modelo de poesia épica é de ironia. Com isso quero dizer que ele retoma elementos formais e temáticos do gênero, reelaborando-os em uma escala menor. O poema apropria-se de topoi da épica ocidental para subvertê-los, a fim de pôr à luz o caráter dessacralizado do homem (pós) moderno, distanciado já do ideal heroico de outros tempos e textos.
Fui levado a essa conclusão por certos índices. O primeiro deles está no plano da enunciação. O traço distintivo imediato entre os três gêneros clássicos (lírico, épico e dramático) está na voz enunciadora do texto. Um poema com a dominância da terceira pessoa, que caracterizaria o narrador-observador, é típico da poesia épica; a “epopeia” de Chagas, porém, está em primeira pessoa. Com isso, observamos o deslocamento do peso do texto para o plano lírico e a transfiguração dos acontecimentos narrados em experiências subjetivas. Claro que “subjetivo” não quer dizer “pessoal”, ou somente isso. É no nível mais profundo da subjetividade que se encontra a universalidade, o que faz da leitura de poesia lírica não um jogo diletante, mas uma autêntica vivência. Importante frisar que a experiência da esfera subjetiva e sua problematização aprofundam-se no período moderno. Tal processo, que tem raízes na Renascença (afirmação das capacidades humanas), do pensamento cartesiano (a subjetividade como ponto de partida para a reflexão filosófica), da Reforma (o livre-exame das Escrituras), entre outras manifestações do espírito, pouco a pouco constrói as redomas que haverão de isolar o homem, fazendo-o confrontar seu próprio céu e inferno. No século XIX, Baudelaire, para muitos o pai da lírica moderna, oferece-nos a figura do poeta já destituída de qualquer “aura” – não mais legislador, não mais profeta, não mais vidente, mas o albatroz cujas asas gigantescas levam-no a se arrastar penosamente no chão. Da mesma forma, o romance moderno, cujo ancestral é a epopeia, já não tem como heróis semideuses, mas homens e mulheres enleados na trama das próprias misérias.
Em seguida, observei, ainda no plano da forma, a projeção de algo da estrutura d’Os Lusíadas, o épico por excelência da língua portuguesa. Como o poema de Camões, Epopeia menor...possui dez cantos. Os versos portugueses são decassílabos, enquanto os brasileiros raras vezes não repetem esse metro (apresentando, em tais casos, 11 sílabas). A estrofação e o esquema de rimas, porém, são diferentes. Camões imortalizou as estrofes de oito versos, com rimas alternadas nos seis versos iniciais e uma rima emparelhada nos dois finais (ABABABCC). Chagas trabalha quartetos com rimas alternadas (ABAB). Esse equilíbrio entre semelhanças e diferenças marca o ponto médio a partir do qual o distanciamento irônico pode se estabelecer. O distanciamento fica explícito no próprio texto. Logo no primeiro canto, é o eu-lírico que afirma, diante do mar:
“Não há passado a que eu não me reporte
Olhando agora para o tombadilho
Sobre este mar que me conduz pro norte
E me embala nos braços como a um filho.
Até desejo recitar um poema
Que tenha um pouco da água deste oceano.
Alguém me sugere a “Morte de Moema”
- Puxa, meu caro, é tão camoneano!” (p.38)
Interessante notar que a sugestão feita ao sujeito lírico é um episódio do “Caramuru”, épico brasileiro que toma os mesmos esquemas formais de Os Lusíadas. Ao rejeitar a recitação do trecho, por julgá-lo “tão camoneano”, o eu-lírico mostra-se consciente da disparidade de sua situação com a dos personagens épicos, preferindo, portanto, um prudente silêncio.
O texto de Chagas retoma o tema da viagem, que é de Homero, de Virgílio e de Camões. Peço perdão ao leitor por não continuar este ensaio sem fazer algumas paráfrases e resumos. A Epopeia menor de um poeta muito mais traça os episódios da viagem que o eu-lírico faz, de navio, do Rio de Janeiro ao Recife, para, daí, viajar de aeroplano para São Luís do Maranhão. O percurso é marcado pelos acontecimentos prosaicos na embarcação, que contrastam com a intensa carga reflexiva e emocional dos versos. Tal contraste serve de suporte à tese que há pouco levantei; não se trata de uma volta para Ítaca, nem da fuga de Troia, nem tampouco de uma busca pela glória nas Índias. É a viagem de um homem comum, premido de dramas íntimos, envolvido por mediocridade, mas ansioso por maiores voos:
“Por que motivo é que eu tão cedo acordo?
E o que será que este acordar encerra?
Talvez o sonho de que a vida a bordo
Seja melhor que a que ficou em terra.
Talvez o sonho de uma vida exata,
Sem “siga e pare”, sem monotonia,
Com uma paisagem para cada data
Com um dia novo para cada dia.” (pp.38-39)
A vida mecânica, para a qual se busca uma alternativa, também está presente na embarcação:
“ A vida preocupada com a sineta
Que chama os passageiros para o almoço
E no jantar é cheia de etiqueta,
Me exigindo gravata no pescoço.” (p.39)
O terceiro canto, um dos mais narrativos do poema, apresentará o desconforto do eu-lírico ante as situações que o convívio com os outros passageiros o coloca. Distanciada, embora não arrogante, a voz poética tecida por Chagas assume o humor com uma ponta de amargura em passagens como esta:
“Nas amuradas em que me debruço,
Veio um doutor que vai pra Maceió
Fala inglês,alemão,francês e russo.
Quatro povos comigo. E eu sempre só.”(p.39)
Lendo o terceiro canto sou tentado a fazer, em prol da tese que defendo, algumas associações inevitáveis. A principal delas é entre a Epopeia menor e a Odisseia. Ambos são textos de viagem – uma viagem de retorno; em ambos, o protagonista é marcado por solidão essencial; e nos dois poemas, finalmente, o “herói” encontra diversas personagens que constituem verdadeiras provações. Mais uma vez, o caráter irônico do poema moderno mostra-se com alguma crueza: Ulisses encara entidades mitológicas e seu correspondente, contemporâneo espiritual nosso, vê-se metido com figuras que lembram as de Homero somente se as tomarmos como paródias.
É assim que, a meu ver, podemos interpretar a aparição das três jovens na oitava estrofe como uma variação melodramática do tema das sereias:
“E agora, coração, por que balouças
Mais que o navio, se esta tarde é calma?
(Vão chegando mulheres, e três moças
Fumam, jogando cinzas na minha alma)
Por que cresces assim, por que te expandes,
Por que te encheste do que tu não és,
Se estás sempre pequeno aos olhos grandes,
Das três moças que fumam no convés?”(p.40)
Circe, a feiticeira que transforma os companheiros de Ulisses em porcos, encontra uma versão “pin-up” na figura da noiva do major. Se Ulisses escapou à sina infeliz dos companheiros, nosso herói, a bordo do Ita, percebe que a “marilinmonroidica” personagem nele desperta clamores que bem gostaria de ignorar:
“A noiva do major vem seminua
e toda no decote se revela.
A alma da gente sem querer flutua
sobre a alta maré de seios dela.
Jogo os olhos no mar, faço que cismo
que estou alheio a colo tão desnudo.
Mas penso mesmo é no sensualismo
que escorre da mulher e inunda tudo.
E a mulher passa, mas não toda. Passa,
deixando-se em desejos sobre a gente.
Em mim desperta o instinto de uma raça
de antropófagos. Isto. Exatamente. (p.40)
É claro que um paralelo com Circe e com as sereias não é, de forma alguma, suficiente para se afirmar que o texto de Chagas compõe uma ampla paródia da Odisseia no modo como, por exemplo, alguns críticos veem o Ulysses, de James Joyce. As analogias são incidentais e percebidas sobre o pano de fundo de outros elementos, que apontam não apenas para o poema homérico, mas para o gênero épico em geral.
Já se escreveu que todas as epopeias são uma imagem exterior das batalhas e viagens que o homem trava em si mesmo para encontrar sua verdadeira essência, obscurecida pelas malhas de ilusão do mundo. Segundo essa visão quase mística, o retorno de Odisseu a Ítaca é o reencontro da alma humana com sua mais profunda identidade, após vencer as bestas, potências e tentações interiores que a retardam. Tal interpretação radica-se no “método quádruplo” de leitura da Bíblia, desenvolvido na Idade Média. Nesse método, o raciocínio por analogias permite que vejamos níveis de compreensão hierarquicamente sobrepostos, cuja base é factual (histórica) e cujo estrato superior é a interpretação espiritual (anagógica). Um exemplo, repetido em vários manuais, mostra que o livro do Êxodo seria não apenas sobre a saída dos judeus do Egito (este é só o primeiro nível de interpretação), mas também sobre a redenção humana por obra de Cristo (nível analógico), a conversão, da miséria para a Graça, vivida pela alma humana (nível tropológico) e, por fim, a alma que, definitivamente, liberta-se do reino da corrupção para viver na eterna glória (nível anagógico).
Por essa linha de raciocínio, a viagem no poema de Chagas é também a busca por um sentido superior para a vida. Ao lado de cada confissão de miséria, de cada situação prosaica, de cada admissão de tédio, pulsa a inclinação para a transcendência. Creio que o trecho a melhor atestar isso é a prece de Natal que encontramos no canto 4. O leitor nada perderá com sua transcrição integral:
E este canto festivo, de onde nasce?
Vem do céu, vem do mar, chega no vento,
esta alegria nova em cada face,
de que nem eu pude ficar isento?
As estrelas penduram-se na noite,
numa fulguração de expectativa.
O céu parece instar a que me afoite
sobre a amplidão que me liberta e priva.
E eu tão vago em mim mesmo, eu tão vazio,
eu tão sem fé, tão diluído em mágoas
que até preciso ainda de um navio,
para manter-me em pé por sobre as águas.
Paira no abismo o pássaro da crença
e o céu é tão ali que ouso tocá-lo.
Que notícia de aurora se condensa
toda, no canto estrídulo de um galo?
No ventre desta noite um Deus se gera
(desta noite-alvorada, noite-luz)
Lá longe um sol se aquece à minha espera,
mas em que porto encontrarei Jesus?
Sinto uma força que de mim me arranca,
me faz rei mago de um longínquo oriente.
E eu sigo a estrela branca, magra e branca,
que me aproxima desse Deus nascente.
Sigo ou serei seguido pela estrela?
Que horizonte a criou furtiva e estranha,
para às vezes eu não saiba, ao vê-la,
se ando a segui-la ou ela me acompanha?
Ó, noite em que a amplidão se revigora,
e onde o Cristo se plasma renovado
acende-me no sol de tua aurora
queima-me o pó que trago do passado.
Estou sujo de mim. Lava-me agora
que o mar é grande e o céu está mais perto.
Lança-me em tua paz larga e sonora,
porque minha alma é cheia de um deserto.
Fecha-me em ti, noite de amor e graça.
Põe a verdade nos meus olhos nus.
Mata-me agora. E que eu de novo nasça
com o Deus-criança que vais dar à luz!
Ó Deus, tão Deus, que desces a ser gente,
que vens ser meu irmão em carne e osso,
que estás a me evocar constantemente
mesmo sabendo que eu não sou bom moço;
Ó tu que vens mostrar como se é homem
em meio aos homens que não sabem sê-lo,
e te dás em perdão aos que te tomem
por louco e riem sobre teu apelo;
Ó tu pobre, tu bom, tu carpinteiro,
que bêbedo de amor,cego de luz,
não percebes que amando o mundo inteiro
trabalharás tu mesmo a tua cruz;
Por ti, que tão menino, és grande e podes
reter nas frágeis mãos todo o infinito,
por ti um dia eu trairei Herodes
e asno serei pra te levar pro Egito. (pp. 41-42)
Entre as vastidões do mar e do céu, invadido pela sensação do sublime, o eu -lírico, timidamente no início, abertamente no fim do canto, fixa na fé sua possibilidade de redenção. A “epopeia” moderna, em Chagas, abdica do caráter “prometeico” e retorna, então, ao solo cristão de que se afasta o espírito da época? Talvez esta pergunta encerre uma ingenuidade ou um falso problema.
As relações entre o caráter da modernidade e a teologia cristã são mais estreitas do que se supõe. Se tomarmos, por exemplo, um dos aspectos mais salientes da modernidade, o chamado “desencantamento do mundo” – processo através do qual a natureza despe-se dos mantos mitológicos e mágicos, para mostrar-se ao olhar da ciência como um feixe pulsante de matéria e força, é possibilitado pela ideia de um Deus que abandona a transcendência para penetrar a História em um corpo de carne. Ora, se no paganismo os deuses se escondem sob pedras e habitam rios e giestas, com o cristianismo, já que o Supremo assume a forma humana, resta à natureza a casca material a ser quebrada e inspecionada pelos cientistas.
Da mesma forma, o caráter libertário da modernidade e sua aversão a hierarquias têm a índole democrática da mensagem do Cristo. As regras e títulos submetem-se à interioridade, e todos os homens nivelam-se como filhos de Deus.
Finalmente, a própria dignidade humana rebrilha na imagem da Encarnação. Deus, assumindo a forma de um homem, e de um homem plebeu, carpinteiro, amigo de pescadores e prostitutas, desvia o curso das luzes do céu para a terra e acende nos olhos da humanidade a chama da confiança em si.
Não quero, evidentemente, afirmar em poucas linhas que o mundo moderno é uma consequência do cristianismo, mas salientar essas relações instigantes, porque Chagas, ao desenhar o eu-poemático da Epopeia menor, mostra-se pouco à vontade com a condição de abandono metafísico do homem moderno. Ao poeta cabem as escolhas que a experiência histórica nos legou: a assunção orgulhosa da solidão cósmica da humanidade; o cinismo; a ataraxia; o desespero; a fé. Ficando com esta última, parece-me que ele procura superar o drama moderno mergulhando em uma das fontes da modernidade, o cristianismo. É Jesus de Nazaré um emblema heroico que se grava na “epopeia lírica” do poeta: o divino homem comum, o paradoxo que é uma esperança.
São Luís, dezembro de 2011/janeiro de 2012