Da Tirania da Beleza
I
24.07.19
Eu já havia escrito algo no que diz respeito à beleza, mas sinto que parte do que eu gostaria de ter falado ficou ausente nesses ensaios anteriores. No que eu havia escrito há muitas ideias que já foram superadas, principalmente no que diz respeito à arte, portanto a sexta parte do ensaio Considerações sobre a Beleza e uma boa parte do ensaio Considerações sobre a Arte apresentam ideias com as quais meu pensamento atual já não corrobora.
Ao reler o ensaio que diz respeito à beleza eu disse que “Pretendo desenvolver melhor meus pensamentos sobre a sociologia e a tirania da beleza em ensaios posteriores.” e aqui estou para fazer isso.
Com esse ensaio pretendo responder a perguntas como: “Por que eu posso chamar a Beleza de uma tirania?” “E se a beleza é uma tirania, ela é danosa?” “Por quê?”. Falemos pois da beleza e de como ela se manifesta socialmente, vale ressaltar que aqui não discorro sobre a metafísica da beleza ou a beleza “estética” como pode-se ler em Kant, Tomás e Burke, não pretendo adentrar nesse assunto, não é algo que me interesse ou que me convenha tanto. Aqui irei falar, como eu disse, da beleza em sociedade, aquilo o que chamei de Beleza Sujeito-Sujeito no ensaio anterior sobre o assunto. Antes de responder as perguntas supracitadas precisamos antes entender, ou ao menos refletir em como se dá a beleza em sociedade e como esse conceito age no psiquismo das pessoas. Vale lembrar que para uma melhor compreensão do que está escrito aqui, é importante ler os ensaios “Considerações sobre a Beleza”, “A (aparente) Metafísica do Belo” e “Dos Tipos de Satisfação”
Como de praxe tentemos observar esse assunto pelo seu início. Quando foi que o homem começou a achar o mesmo de sua espécie bonito? E imagino eu, que só possa responder que a beleza se dá pelo prazer. Perceba, o homem primitivo, no coito com a sua parceira alcançava o êxtase, e sua mente associava o sentimento de prazer à parceira que o proporcionava e daí surgia um interesse primevo, um conceito embrionário do que viria a ser a beleza, como visto no ensaio A (aparente) Metafísica do Belo, a beleza está intimamente ligada ao prazer, e o conceito da Beleza Sujeito-Sujeito tem sua gênese no âmbito sexual. Pode ser um tanto estranho e até soar um pouco “freudiano” dizer que o conceito de Beleza tem haver com o sexo, mas a verdade é esta. Achamos um outro indivíduo bonito não por nenhum outro motivo além do desejo da cópula, quando vemos “beleza” em alguém não estamos diante de nada que é metafísico ou inexplicável, a beleza, nos sujeitos, nos atrai porque vemos nisso um prazer em potencial, a beleza é a nossa(ou uma das nossas) medidas de prazer. Voltando à ilustração que estávamos construindo, podemos perceber que até mesmo na arte a Beleza apresenta um certo apelo sexual, a beleza sempre esteve ligada à idealização do corpo, e a beleza é isso, um ideal. A beleza não existe em si e não é um conceito que antecede o Ser, a beleza só existe através da apreensão. Os gregos apresentavam os deuses não pela forma de homens quaisquer, mas sim apresentados através de corpos esbeltos, que provavelmente eram o ápice do corpo naquela sociedade, os romanos representavam seus imperadores não como homens quaisqueres, mas como ideais de homens, sempre em posições que remetem à reflexão e temperança, sempre trajando armaduras e vestimentas de batalha, e corpos sempre esbeltos. Mais tardiamente, os europeus, como italianos e franceses por exemplo, passaram também a representar a beleza e com o advento do cristianismo, a beleza agora tinha um apelo não necessariamente ao corpo, mas sim ao santo. As mulheres eram extremamente idealizadas, quando personagens bíblicas, sempre tinham uma tez branca e corada, olhavam para cima ou não fitavam diretamente o observador, a posição das mãos representava uma apelo ao divino ou ainda representava temperança, e quando não eram personagens bíblicas, apresentavam corpos esbeltos, de seios fartos e redondos, poucos pelos, longos e volumosos cabelos... Ao nos depararmos com a história da arte podemos notar esses ideais citados, a objetificação do corpo acompanha a história das sociedades, e é algo assim tão presente pois é justamente no corpo e no prazer em potencial do mesmo que o indivíduo enxerga a beleza, então consciente ou inconscientemente busca-se o prazer, e sempre um prazer maior no que diz respeito à Imagem do corpo e é aí que nasce a sua objetificação. Tornar o corpo um Objeto é um acalanto ao desejo e à pulsão do prazer. E nisso podemos ver outro viés da beleza, que é o da idealização.
Como observado, a beleza tem sua gênese no prazer e na idealização, no prazer pois a intenção do indivíduo no julgamento do belo se define pelo desejo do corpo e portanto pelo prazer em potencial de realizar esse desejo, e na idealização pois o indivíduo tende a objetificar o corpo já que inconscientemente o deseja, e a consciência coletiva tende a criar seu ideal próprio de beleza, que muitas vezes tende a ser a do indivíduo já que este está sujeito à consciência do coletivo.
Agora, retomando ao título e ao intuito do ensaio, por que a beleza seria uma tirania?
II
31.07.19
Não falo aqui que a Beleza é um tirano, não ponho a beleza num trono, mandando e desmandando nas pessoas, matando quem discorda de seus ideais, perseguindo inimigos ou monopolizando a violência(bem, é assim que eu imagino um tirano). Não, a beleza de fato não é um “tirano” a rigor da palavra. Mas a beleza tiraniza. E a beleza também realiza uma monopolização.
Somos obrigados a seguir padrões de beleza, estes, que surgem pelo ideal de belo através da consciência coletiva. O padrão de beleza é um construto social, presente na consciência da sociedade e não na consciência do indivíduo, porém, sendo o indivíduo sujeito à sociedade, ele acaba por aderir e incorporar padrões de beleza que muitas vezes não lhes são próprios. Com toda certeza você já se deparou com alguém com qual a maioria das pessoas ao redor julgava como belo, e por que essa pessoa, para a maioria das demais, seria uma pessoa bela? Teria ela uma beleza intrínseca e seria a beleza então uma metafísica? Pode-se dizer que não, Quando a maioria das pessoas de um grupo social vê uma pessoa em específico como bela, essa beleza não se dá pela pessoa em si ou pelo grupo em si, mas sim pelo ideal de beleza presente na consciência coletiva daquele grupo, isso é, um ideal de beleza antecede o grupo, um conceito do que é socialmente aceito como belo existe antes do julgamento do belo das pessoas do grupo e essa pessoa específica, da qual estamos falando, encaixa-se nesse padrão de beleza pré-determinado, e, sendo portanto o grupo sujeito ao padrão de beleza da consciência coletiva(seja do próprio grupo ou da sociedade como um todo) é natural que as pessoas do grupo se inclinem a achar aquela pessoa específica como bela. Contudo, você pode dizer ainda que nem todas as pessoas do grupo acham essa pessoa bela, e isso acontece devido à individualidade(ou subjetividade) pois, mesmo havendo um padrão de beleza vigente o indivíduo através de sua própria apreensão e significação da realidade, pode apresentar conceitos próprios daquilo o que é belo, aprazível ou desejável, e esses conceitos que o indivíduo constrói podem entrar em conflito com os conceitos vigentes do que julga-se por belo, e mesmo a partir da tendência de corroborar com o conceito vigente de belo, o indivíduo não consegue concordar com o julgamento de que aquilo é belo. Com isso conclui-se que a beleza não é intrínseca, a priori ou metafísica, a beleza é na verdade um construto puramente social e cultural e o indivíduo, mesmo tendendo a acatar o que a sociedade aceita por belo, pode através de sua subjetividade apreender uma outra coisa como bela. O que é belo em um lugar não é belo em todos os lugares, o que é belo para a maioria das pessoas não é belo para todas as pessoas. Portanto, a beleza não existe objetivamente e não se dá objetivamente, ela existe na subjetividade e principalmente na consciência coletiva de um determinado grupo de indivíduos ou sociedade.
Na sociedade estão presentes padrões de beleza, julgamentos pré-existentes ao indivíduo que são construídos sócio-culturalmente, antes mesmo do indivíduo vir ao mundo a sociedade lhe guarda mil exigências, a sociedade quer que ele produza capital, que seja cívico e adepto da religião vigente, se for do sexo masculino que aja de acordo com o que se espera do gênero masculino, e se for do sexo feminino, que aja de acordo com o que se espera do gênero feminino. Para que o indivíduo seja socialmente aceito e abraçado pela sociedade e para que, portanto, não seja visto com estranheza ou que seja excluído, a sociedade exige que todos esses padrões sejam atendidos, e não obstante, exige ainda, e de modo não menos importante, o padrão da beleza. Falar de beleza, num contexto social, não é falar dos belos, e por que falar dos belos afinal? Não. A problemática da beleza não atinge os belos, afinal, eles detém o monopólio da beleza não é mesmo? Falar da beleza em sociedade é, na verdade, falar dos feios, e não dos belos. Isso pois, se a beleza exerce, em algum nível, uma tirania então ela tiraniza os feios, e se exerce, em algum nível, um monopólio, então este é o monopólio do belo que pertence aos belos, e esses, e tão somente esses, são aqueles cujos quais convém o julgamento de belo e aprazível. Esse último discurso pode ter parecido um tanto confuso mas tentarei explicar melhor. A sociedade exige que todos sigam aos seus padrões de beleza, para que sejam então, socialmente aceitos e que se sintam socialmente inseridos, e o que acontece quando algo ou alguém não atende ao padrão de beleza vigente? Isso mesmo, ela é julgada como uma pessoa feia. O belo é somente o que a sociedade aceita como belo, e tudo aquilo o que distancia desse conceito de belo é considerado feio, desprezível e desvirtuoso, e a Beleza(em sociedade), portanto, exerce uma tirania por exigir que todos sigam a um padrão de beleza que na verdade nem todos podem, ou querem seguir. E numa tirania, quem não segue a ideologia vigente é punido, e não é diferente com a tirania exercida pela beleza, os feios(temos “feios” aqui como qualquer pessoa que tenha características que desviem do que a sociedade tem como ideal de beleza e virtude) são punidos, são punidos por meio da exclusão, do desamor e do preconceito, e, sendo todos os indivíduos de uma sociedade sujeitos aos seus padrões sociais de beleza o próprio indivíduo pune-se a si mesmo em nome da tirania da beleza, pois ele, não se vendo como belo acaba por muitas vezes por desprezar-se a si mesmo e é nesse âmbito que surge a baixa autoestima, o auto-desprezo e o auto-desmazelo.
Como antes dito, a Beleza exerce um monopólio no sentido de que uns poucos são belos e portanto dignos do julgamento de beleza e o julgamento de beleza, muitas vezes, está atrelado ao julgamento de virtuosidade, então ocorre de que as pessoas belas sejam vistas como virtuosas, grandiosas ou exemplares simplesmente por serem belas, quando na verdade elas nada mais são do que pessoas comuns que atendem a padrões. A sociedade tende a idealizar a beleza, a idealizar o corpo e portanto a idealizar as pessoas belas.
III
Em algum momento a beleza se tornou muito mais importante do que deveria. Não vou discorrer sobre a história ou a gênese dos padrões de beleza e da beleza em sociedade pois, mesmo sendo conveniente a este ensaio, não é o meu objetivo. Quem tem um olhar atento percebe que, agora, e mais do que nunca, a beleza exerce sua tirania. Os casos crescentes de jovens desenvolvendo quadros de ansiedade e até mesmo quadros depressivos em sua parte está ligado à extrema exigência de que sejam seguidos padrões de beleza. O jovem dessa época cobra em demasia a si mesmo, e muitas vezes, cobram em demasia deste jovem. É perceptível que a sociedade está cada vez mais doente, e portanto torna-se cada vez mais comum o uso de medicamentos fortes ou de escapismos danosos para “tratar” essas doenças da alma. A baixa autoestima está intimamente ligada a isso, claro, pois, é no âmago do auto-desprezo e do desamor de si mesmo que o jovem, o indivíduo, adoece. E nesse quesito, a beleza é uma culpada e uma cúmplice. A exigência do padrão de beleza, claro, não é a única causa dos crescentes casos de baixa autoestima, mas sem dúvidas é grande aliada a isso, a estima é a ferramenta da beleza, e a baixa autoestima, sua consequência. E, percebendo toda essa danosidade que a beleza pode causar ao indivíduo levanta-se uma questão que uns poucos costumam levantar(mais adiante falarei sobre isso): Qual é a necessidade ou a função da beleza? E eu diria que é aí que a beleza entra em xeque.
Ressalto mais uma vez que não falo de nenhum outro conceito de beleza que não da beleza em sociedade, claro que é importante ver beleza na vida e no mundo, a pergunta levantada visa questionar somente a necessidade da existência de uma exigência tão vigorosa para padrões sociais de beleza, visto que esses são tão danosos.
Qual é a necessidade ou a função da beleza? Isso é, por que é que diabos alguém tem que enxergar beleza em mim para que eu seja aprazível, desejável e aceito? E, tão importante quanto, por que EU tenho que enxergar beleza no outro para que ele seja aprazível, desejável e aceito por mim? A verdade é que a beleza não carrega nenhuma necessidade ou função em si, a beleza é ilógica e contraintuitiva. Não é como se as relações humanas e a perpetuação da espécie dependessem de que os indivíduos vissem uns aos outros como belos ou feios, esse conceito não carrega objetividade ou discernimento, simplesmente não faz nenhum sentido exigirmos que as pessoas tenham beleza para que gostemos dela, de mesmo modo que não faz sentido as pessoas exigirem de nós que sejemos belos para que gostem de nós, o que direi a seguir é um enorme clichê, mas o indivíduo é muitíssimo mais do que um “rostinho bonito”. Podem dizer ainda que a beleza é um mediador de interesse e de relação, e que é por meio do julgamento da beleza que o indivíduo se interessa por um outro. E de fato, isso acontece, as pessoas se atraem umas pelas outras por sua beleza, por julgarem a beleza no outro, mas levanta-se a pergunta: é realmente necessário que alguém seja belo para que eu me interesse por ela? Ou ainda, é necessário que a pessoa seja bela para que eu tenha prazer com ela? A verdade é que não. Como dito, a beleza é um ideal, nos atraímos pelos outros através do julgamento do belo porque idealizamos a identidade da outra pessoa através da beleza que julgamos que ela tenha, estamos atrelados a um padrão de beleza e a uma exigência de beleza, mas se quebrássemos ou se nos afastássemos desse padrão e desse ideal de beleza isso pouco importaria nos nossos relacionamentos. Sim, nós exigimos que o outro atenda ao nosso ideal de beleza para que nos interessemos por ela, mas as pessoas nos trazem prazer independente da beleza e do julgo da beleza. Como dito no início do ensaio, a beleza é um mediador do prazer pois ela idealiza o indivíduo e o corpo, a verdade é que a beleza mais atrapalha no prazer e na satisfação do indivíduo do que ajuda, pois a beleza limita aquilo o que pode me dar prazer ou não. Pense: Por que eu só teria prazer com uma pessoa X e não com uma pessoa Y? Por que eu me obrigo a correr atrás das pessoas que julgo belas mesmo existindo tantas outras pessoas que não julgo belas, mas que, na totalidade da relação, me traria o mesmo nível de satisfação? Percebe? O indivíduo pode encontrar prazer com qualquer outro indivíduo, independente de este ser julgado como belo ou não, mas o ideal de beleza faz ele pensar que só pode encontrar prazer, felicidade, conforto ou satisfação com as pessoas que ele julga serem belas e, portanto, a beleza, na verdade, mais limita e atrapalha o prazer do que corrobora para o tal.
IV
03.08.19
A exigência exacerbada de padrões rígidos de beleza é, em seu âmago, totalmente irracional. Irracional pois não faz sentido e não tem finalidade prática e em sua totalidade mais causa danos ao indivíduo do que lhe trás benefícios. A exigência da beleza faz as pessoas adoecerem e os jovens, imagino eu, são quem mais sofrem por isso. A sociedade cria padrões irreais e inalcançáveis de beleza, ideais propriamente ditos, e o indivíduo na sua servidão voluntária aos caprichos da consciência coletiva, procura irremediavelmente seguir esses padrões, e dificilmente consegue alcançá-los. Esse indivíduo, frustrado por não conseguir alcançar os padrões de beleza,(que, no fundo, ele não quer alcançar, mas é obrigado a alcançar, ou se obriga a alcançar) e dando uma importância imprópria a esse julgo, decai num auto-desprezo, isso porque, dá-se muita importância a beleza, como que se a pessoa só fosse ser aceita ou amada se ela fosse bela, e, o indivíduo, não conseguindo atingir os (inatingíveis) ideias de beleza se frustra, e por fim, adoece.
Isso faz algum sentido? Isso é realmente necessário? Não existe necessidade ou finalidade nisso, não existe racionalidade nisso. E por que as pessoas não questionam qual a finalidade da beleza? Por que ninguém percebe a extrema irracionalidade que sonda os padrões de beleza na sociedade? Por que a beleza é um tirano, e como visto em La Boetie, a tirania se estabelece através do hábito. Estamos extremamente habituados aos padrões da sociedade, de forma tamanha que chega a ser difícil dissociarmo-nos destes. Você consegue imaginar uma sociedade sem padrões de beleza? Provavelmente não, isso porque você(nós) convivemos toda a nossa vida com esses padrões e essas expectativas que nos são extrínsecas, estamos tão habituados a isso que sequer conseguimos imaginar uma vida SEM isso.
Porém, pasme, uma sociedade sem padrões de beleza é possível, afinal, um padrão de beleza não é predicado ou fundamento de uma relação social. Lhe convido portanto, a alguns exercícios, pergunte-se: Por que você precisa da beleza? Na totalidade de suas relações, é a beleza que prevalece? Se a resposta for positiva receio que você terá que rever algumas de suas ideias. Convido o leitor, finalmente, a um exercício de niilismo estético. Procure enxergar as pessoas(incluindo a si mesmo) para além do seu filtro de beleza, tente ignorar os padrões de beleza, finja que eles não existem, faça isso por uma hora, uma semana ou um mês se bem quiser, conviva com a ausência da beleza em sociedade e por fim, me responda: A beleza é realmente necessária para o convívio social e para as relações humanas? E se, portanto, a beleza não for em suma, necessária, não seria um tanto mais racional e conveniente uma sociedade cuja qual os padrões de beleza não afetem de forma tão negativa os seus indivíduos?
“E se a beleza, enfim, é um Deus,
Então é um Deus que precisa ser abolido!”
Raul Brasil