O que nos faz Humanidade
Quando rompemos a animalidade pura e nos tornamos humanos?
Biologicamente, o ser humano é um animal. Animal político, zoo politikon, conforme Aristóteles, animal econômico, poderíamos deduzir do pensamento de Marx, animal marcado pela autocompreensão da finitude, da condição mortal, do ser-para-a-morte, como nos diz Heidegger. Há inúmeras formas de tentar dar conta desse problema que nos parece insolúvel: O que é isto, o humano?
O ensaio de hoje, embora filosófico, não tem a pretensão da antropologia filosófica, nem da metafísica, e nem seguirá pelo caminho da biologia ou da arqueologia. Defenderemos uma ideia simples, embora sublime: É a cultura que nos faz humanos. Evidentemente o que é cultura é uma questão complexa que pode ser exaustivamente discutida com rigor. Mas isso tem seu espaço e sua hora, que não cabe em um artigo de poucos parágrafos. Reconhecendo a importância das abordagens complexas, busquemos nessa ocasião a fórmula simples e verdadeira, a síntese elegante, a unidade fundamental.
Em recente entrevista no Brasil, o escritor português Valter Hugo Mãe analisou com perspicácia o difícil momento político no Brasil e no mundo. O cenário brasileiro, em que milhões de pessoas foram seduzidas por um discurso simplório, empobrecedor e que ameaça os valores humanísticos mais básicos, nos convida a repensar a questão da humanidade. A terrível constatação de Hugo Mãe é que o que nos faz humanos são justamente os valores agora atacados.
A cultura, o pertencimento a uma tradição com um mundo simbólico rico, as ciências, artes e letras, são esses elementos que nos fazem humanos. Sem a cultura, sobra apenas o animal, o ser biológico, o ente que nasce, cresce, trabalha e morre, sem produzir sentido, sem criar valores, sem parir mundos, sem ressignificar a vida.
Nenhuma sociedade sobrevive na História, a não ser pela cultura. Não há fundamento que não seja espiritual. A julgar pelas armas e pelas conquistas bélicas, pela glória militar e pelo heroísmo nas batalhas, já não há Grécia, nem Roma, nem Pérsia, nem Arábia, nem China, e nem Índia, Egito. “Estados” poderosos dizimados pelos moinhos do tempo. Seus exércitos foram esfarelados nas moendas da História, triturados, socados, pelos pilões dos séculos.
Mas o Édipo de Sófocles permaneceu. Permaneceram Homero e Eurípedes, Platão, Aristóteles e Hipócrates. Permaneceram Cícero e Sêneca…Letras e números, traços, estilos e ideias. Os mais terríveis e combativos exércitos foram esmagados, os mais “sólidos” impérios desmoronaram, mas ficaram seus filósofos e arquitetos, seus poetas e inventores, ficaram os homens de espírito, os criadores em ciências, artes, letras e ofícios. Ao longo da história, o que nos fez humanos foi o universo simbólico e material criado por homens e mulheres que devotaram a sua vida à cultura.
O embrutecimento e a intolerância, a idiotia e a estupidez, o proselitismo da ignorância e o elogio do tosco e do grotesco, nos desumanizam. O amor familiar, os laços sociais, os trabalhos conjuntos, a comunhão da caça, da coleta e da pesca, o cuidado comum, a partilha da casa, nos fazem comunidade. Mas o que nos faz Humanidade, e aqui falo de Humanidade não em referência à condição humana, mas ao melhor, ao mais criativo e mais perene que o humano pode ser, falo da Humanidade enquanto realização humana na História, o que nos faz Humanidade é partilharmos o Logos, o que os gregos consideravam como a linguagem, o discurso, a discursividade articulada, racional, capaz de comunicar para muito além das necessidades utilitárias, permitindo-nos o pensamento abstrato e a abertura para a esfera do ideal, do imaginário, e paradoxalmente, do inefável.
Quanto ao animal, um visitante futuro de outro rincão do cosmos diria apenas que “aqui houve vida” e poderia constatar que essa vida se organizou em comunidades. Mas a Humanidade o forçaria a dizer mais. Que aqui a vida foi dotada de ímpeto criativo e sofisticação intelectual, e que produziu obras de grande sensibilidade e ideias de profundidade notável, que aqui a vida não se bastou à subsistir, não se contentou em estar-no-mundo, ela transbordou em busca por transcendência, aspirou ao sagrado, imaginou mundos, teceu significados no tear da criação. Vida que ultrapassou os estreitos limites da busca cotidiana por alimento e abrigo, e criou leis, governos, códigos, arquétipos, símbolos, fábulas, pinturas, cálculos, vida que elevou aos céus as torres das mais belas catedrais, que esculpiu templos em pedras, que fez aparecer acrópoles e ágoras, que criou cidades, que reuniu a sabedoria produzida em magníficas bibliotecas e museus, que criou universidades, como cidades do espírito, para preservar e aumentar a herança intelectual da humanidade, vida que se desdobrou em cultura.
A existência biológica nos fez animais. A fraqueza, a precariedade, o abandono-no-mundo, e outras razões mais sutis, nos fez gregários, comunitários. Mas o que nos faz Humanidade é a Nona de Beethovem, o Hamlet de Shakespeare, o Fausto de Goethe, a Bíblia de Lutero, as Cartas de Paulo, os Vedas, as aventuras do engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, o Davi de Michelangelo, a tensão entre as ideias de Marx em “O Capital” e as de Adam Smith em “A Riqueza das Nações”, as discussões entre Einstein e Bohr, et caetera. E se há milhões de pessoas sábias e magníficas que não podem conhecer, contemplar e desfrutar tais heranças que a cultura preserva e acumula para nós, é por que nesse mundo terrível a maior parte dos humanos está mais preocupada em sobreviver do que em viver plenamente, e muitos que já alcançaram a base material que lhes permitiria desfrutar dessa herança comum, ou que receberam a educação formal que lhes possibilitaria usufruir a condição de herdeiros caso desejassem, foram seduzidos e brutalizados demais, e estão entorpecidos demais para fazer qualquer outra coisa que não seja se embriagar com o espetáculo do qual participam como figurantes apequenados.
O que nos faz Humanidade é o sentimento profundo dos negros escravizados nas Américas, que explodirá em Blues, Jazz e Samba, são os poemas de Camões e Pessoa, os manifestos de Oswald de Andrade, as teorias de Galileu, os trabalhos de Heisenberg, os padrões geométricos carajás, as cores e mitos iorubás. O que nos faz Humanidade é o fato de habitarmos um universo que nós mesmos criamos, um cosmos tecido por letras e números, cheio de significado e pleno de valores. Não são as armas e as guerras, nem a brutalidade intolerante dos cândidos e rudes, mas as curvas de Niemayer e as cores de Tarsila, os suaves contornos de Camille Claudel, o fado sofrido, chorando ainda, presente ainda, em uma saudade inefável, na viola caipira do outro lado do mar, em algum sertão cheio de sonhos e perigos.
A glória militar teve sua importância histórica inegável. Garantiu a permanência de algumas sociedades, promoveu a expansão sanguinária de outras, revelando o quanto civilização e barbárie podem se confundir. Mas não nos lembramos da glória de Aquiles pela força de Aquiles, nem da fibra de Heitor pelos feitos de Heitor, mas por que foram cantados por Homero, não nos lembramos de Alexandre por sua fúria, ou grandeza, mas por que nos foi contado por Plutarco. E se Canudos nos marca a ferro e fogo, não é por que a atrocidade do genocídio nos inspira, ou por que o feito dos soldados cruzam as décadas por si mesmos, mas por que na pena de Euclides da Cunha há uma espécie de redenção, por meio da qual a morte se transforma em arte. Sem as ideias e os números, não existem exércitos. E sem as letras, nenhuma batalha se torna símbolo, nenhum guerreiro se transforma em herói.
As grandes religiões já não tem a influência política formal que tiveram. Mas suas ideias permanecem vivas, pelo mesmo motivo. Pensemos no catolicismo romano ou no protestantismo germânico. Não são instituições, apenas. São ethos, estéticas, metafísicas, formas de pensar e sentir o mundo. E, além disso, seria possível de imaginar até que, quando já não houvessem padres, pastores e ministros sob a face da terra, continuaríamos a nos unir para contemplar e nos deleitar com o mais puro sentimento religioso que emana dos salmos de Davi ou das cantatas de Bach. A lacrimosa, de Mozart, sempre nos abrirá a possibilidade do transcendente, a experiência do sagrado. Os vagabundos de Kerouac e Steinbeck também, assim como os versos simples de Manoel de Barros.
Em recente entrevista à Veja, Pérsio Árida faz questão de pontuar sua total falta de afinidade, apreço e relação, com a extrema direita que cresce como onda no Brasil. O economista liberal, ou quiçá neoliberal, como o mesmo deixa a entender, faz questão de pontuar seus motivos: Não pode compactuar com um movimento tosco, intelectualmente paupérrimo, anti-ciência, que ataca as artes, as universidades, os saberes, enfim, a cultura.
Não há humanidade fora de um rico e complexo universo simbólico, que resulta de uma longa e variada ancestralidade. Universo povoado por modos cotidianos de ser e agir, mas tecido com letras e números, poesias e hinos, equações e esculturas, tragédias e sinfonias. Sem esse universo, resta a animalidade pura e a luta distópica pela sobrevivência. Resistamos. Lutemos pelo humano.