DA PASSAGEM E DA CONTINGÊNCIA DA ESTADIA NO VAGÃO
Ora, sempre temos saudade. Às vezes de coisas que jamais fomos. É claro que um dia sentirei falta do mimo dos pais; mas ao mesmo tempo sinto a ausência de uma liberdade o oposto disso. Que mesmo se for sinônimo de passar fome eu não descarto. Quem senão eu para entender perfeitamente essas frases. “Eu estou aqui de passagem.” Esse é um argumento, em uma discussão afetiva, tão forte quanto se dizer que possui dois olhos e um nariz, que me perdoem os que não tiverem. Todos estão aqui de passagem. E dada a contingência de nossas vidas é estúpida qualquer previsão linear. Filhos morrem antes dos pais. Todo dia eu penso, ora melindroso, vez em quando eufórico, na ocasião e nas circunstâncias da minha morte. Seria extremamente entediante não estar de passagem, ser imortal. Qualquer evento mais duradouro que segundos torna-se desgostoso ao ser humano. Gostaria, ao menos, enquanto durar, de ser tão frio com as mulheres quanto sou com a mãe. Sou do tipo que dentro do hábito domina os objetos. Eis um que me pertence há vinte anos. Os outros me escorregam pelas mãos.
Sobre a passagem contingente da vida, tenho algo mais a declarar: não tenho vontade de ter filhos. Mas, mesmo se tiver, é o caso de pensar bastante. Não vejo esse discurso explícito, porém se subentende que os filhos são a continuação dos pais. Antes de tudo, um nunca pode ser dois. Claro que algo tão patente, reflexivamente, não carece demonstrar. Todavia, na automação diária, as individualidades se desmancham. Pensaria muito antes de um filho, porque é uma responsabilidade imensa gerar mais um passageiro. Depende mais de uma futura consciência que de mim, portanto.
Estava num rancho buscando o sossego que há meio decênio já não usufruía. Não obstante, meus planos não puderam com os reveses e contingências incontroláveis do convívio social. Achei mais tensão do que harmonia. Suportei dias seguidos, em quietude, choros de crianças anônimas, resmungos e intermináveis maledicências direcionadas a quem não estava para se defender. Mas se há dois discursos que funcionam como detonadores da minha dinamite são insinuações de pouco inteligentes a respeito da minha inteligência e um suposto desperdício desta, em primeiro plano, e apelos ao comentado discurso da passagem, usado covardemente por pessoas mais velhas, que se negam a reconhecer a não-linearidade da existência. Em resumo, parece que meu passeio familiar-filosófico não tem êxito porque sou tratado como a mera continuação de duas vidas, que vocifera sem motivos, que irá morrer só depois dos progenitores e que, então, ao se ver só, se arrependerá de confrontos tão edipianos nesta etapa da vida. O desgosto ainda tem destinatário indeterminado, devo outra vez, perturbadoramente, insinuar: pode ser qualquer um.
O fato é que tanto os fatos das viagens de janeiro quanto as especulações teóricas – sem cessar – me remetem a uma cadeia de questões relativas à morte. Cada dia é um dia a menos, afinal, e a névoa é menos densa. O que acharei de mim mesmo ao me olhar no espelho no dia da minha morte? Estarei desfigurado, num leito hospitalar, ou no – batizado socialmente como – auge?! Alguém contemplará minha transição ao nada? Nem me preocupo com a saudade que vou deixar – tudo deixa saudades, mesmo estando – ou com o dia do meu enterro, essas futilidades. Quero saber o preço que terei de pagar, fingindo que agora, na véspera dos meus vinte anos, ainda tenho tudo em minha conta, o valor zero em despesas. Cada vez mais perspectivas suicidas se afastam. Não só pela escassez de meios seguros mas pela completa e recente desmotivação promovida pela idéia. A tragédia, o sangue, fraturas de ossos, paralisias, vêm me comovendo de meses para cá. Ter conhecido um carro por dentro e ter lido e tido mais contato efetivo sobre e com a violência me tornaram num idiota tão cético quanto ao futuro quanto apegado à despropositada carne. Um misto de desinteresse mórbido e expectativa vazia me circunda. A combinação inusitada e reversa dos adjetivos com os substantivos foi proposital. Significa que eu sou humano, afinal. Descubro-me no paradoxo em que estão enredados o presidente da Coca-Cola Company e o caseiro aqui do rancho. Mergulhado na amargura diária, no nunca-vai-mudar ou no só-pode-piorar e simultaneamente naquela febre da bola-de-cristal. Morrerei de fome? E qual é a relevância disso? A passagem será consumada. Só que entramos no bonde de uma estação nula e descemos num vão amorfo, cagando, possivelmente, outros bilhetes sem destino ou origem.
Até que se esgote minha disposição de encerrar esta tomada devo puxar a orelha de alguém. De um passageiro que ditou certas coisas messiânicas e pulou pela janela, nem melhor nem pior do que outros. Jean-Paul Sartre mandou que dotássemos nossas vidas de sentido. Não existe a mínima possibilidade de “espíritos livres” (Nietzsche) como eu terem acesso à casa das máquinas, ou ao vagão do operador. Sacolejaremos aleatória ou fatalisticamente, até a descida. Pouco importa a bagagem de cada um. Este é o universal, o laço unidor, entre os seres humanos. O que me conforta, porque não temo a morte (só estou curioso sobre ela), e ao mesmo tempo rio de quem a teme e cuspo nos túmulos que vejo serem escavados. Ora, ora: quando o meu for, será ridículo demais imaginar, hoje, que eu pudesse acompanhar a cerimônia! A graça da vida é mesmo a contemplação. A Arte. O Dionísio. Enquanto se está vivo desdenha-se dos mortos. Em seguida... Não foi nada. Estamos sempre do melhor dos lados...
(7 de janeiro de 2008.)