NEM ISTO E NEM AQUILO
Em outras palavras, é necessário não sucumbir a qualquer um dos termos opostos. Contra a unilateralidade dos opostos, sob uma forma moral, o “neti-neti” (nem isto, nem aquilo) da filosofia hindu. (C.G.JUNG).
Trata-se de repudiar com veemência preconceitos e discriminações a amplos setores da sociedade. Por mais que se lute contra comportamentos regressivos, crescem cada vez mais as denúncias de casos que são comprovados por estatísticas oficiais. Por que não enxergamos as obviedades? Quais as razões que explicam a persistência, mesmo em nós que os condenamos? Por que por mais que se organizem os grupos, não conseguem eliminar os sinais evidentes de nosso atraso?
Uma hipótese seria a visibilidade da ideologia de extrema-direita que de forma direta ou subliminar alimenta a “raiva” dos grupos contrários aos governos populistas de esquerda. É uma onda internacional do século XXI que aparece na mídia no segundo mandato da presidente Dilma e seu impeachment. Já no governo Lula falava-se que “todos os partidos eram corruptos” e que “esquerda e direita eram farinha do mesmo saco”. É nesta conjuntura que surge a palavra de ordem de combate às polarizações políticas. Criou-se a metáfora da sociedade polarizada aumentando o medo coletivo de um possível plano conspiratório dos “Esquerdopatas”. O vídeo canal púrpura (You Tube) denuncia o cerco a tais grupos que estariam sendo alvo de “Estigma e preconceitos”.
E, o que isso tem com preconceitos, tabus, discriminações? Tem tudo a ver como tem tudo a ver com as contradições entre classes sociais, mesmo que hoje se negue a luta de classes. Porém, é impossível negá-las frente ao efeito avassalador do crescimento da miséria mundial.
Em 1983, um filme italiano dirigido por Frederico Fellini –E LA NAVE VA- que se passava na explosão da Primeira Guerra Mundial, é todo ambientado em um navio ocupado pelas elites e artistas famosos que vão prestar uma homenagem a uma soprano que morrera. Essa elite acaba por se confrontar com náufragos sérvios resgatados pelo capitão do navio. É um filme contemporâneo que analisa as contradições provocadas pela onda migratória do Oriente que assola a Europa Ocidental e os USA. Há uma clara alusão às clivagens entre classes e o choque cultural entre Ocidente e Oriente. Esse cenário confirma que continua um “círculo vicioso” que alimenta as polarizações até os nossos dias. Ou seja, há sempre um atrito entre contrários, que pode provocar conflitos. Para reverter em “círculo virtuoso” não é o consenso, mas a síntese das oposições que levaria a um novo patamar na sociedade.
Essas duas vertentes – do avanço da extrema direita e dos preconceitos e discriminações – se intercruzam atingindo o mundo atual. Há uma queda vertiginosa do “cosmopolitismo” com a volta das posições “chauvinistas” no Primeiro Mundo contra a onda de refugiados imigrantes que chegam ao velho mundo fugindo de guerras provocadas pelos mesmos. Antes, esses países já exerciam o papel de colonizadores, frente aos povos colonizados. É uma contradição contínua que só tende a aumentar...
Esse contexto que contribui para que os grupos sociais aceitem a sua condição de dominados tem explicação no conceito de “Estigma”, que reforça a manipulação da identidade atribuída por um grupo social dominante a outro grupo social dominado. O grupo dominado recebe a marca ou o sinal que designa os seus portadores como desqualificados. Assim os indivíduos se sentem inabilitados para uma aceitação plena, sentindo-se com grau inferior de status social (Herving Goffman). Os grupos incluídos como estigmatizados são em geral, os negros, os índios, os ciganos, os pobres e os imigrantes. Mas podemos ampliar para os velhos, os grupos LGBTs, os mendigos e os criminosos de baixa-renda (“bandido bom, é bandido morto”).
Essa formação da identidade de grupo considerado inferior, com relação a outros segmentos, faz com que o sujeito se sinta despreparado e inseguro para enfrentar ambientes diferentes do que vive, e acaba por absorver o sentimento de inferioridade que é vital para neutralizar o seu potencial de luta. Há muitas maneiras de fazer perdurar o “Estigma” pelo preconceito e pelas formas diferenciadas de discriminação que passam despercebidas pelas pessoas, pois são mais inconscientes que conscientes, como no verbo judiar que vem de Judeu. Outras formas são mais óbvias como quando usamos a palavra para ferir, e quando inventamos outras para humilhar. Costumamos achar que os “velhos” estão no fim de linha e associamos a eles palavras pejorativas: “decrépito”, “caduco”, “senil”, ”gagá”, “esclerosado”, ”gasto”, ”acabado”. A desqualificação é tão corriqueira que os idosos acabam por interiorizar a inferioridade, e os jovens e maduros sequer percebem, muitas vezes, que a pessoa a seu lado está tão em forma quanto eles.
A dificuldade em olhar de fato para o outro, e se desligar do “Estigma” é tão comum nos dias de hoje que o Estado teve de propor políticas públicas que beneficiassem financeiramente o idoso, mas que incluíssem normas de atenção à condição vivida pela terceira e quarta idades. Se tivéssemos mais sensibilidade e cortesia bastava ceder nosso lugar nos veículos às pessoas necessitadas dele. Estas regras impostas de respeito aos cidadãos revelam a ausência de solidariedade, e mesmo com boa intenção, formam uma cortina de fumaça que ajuda a rotular pessoas e que impede de ver o outro como semelhante em “gênero, número e grau”.
A crise econômica mundial que aumenta o desemprego e corta as atividades assistenciais e políticas públicas amplifica a “raiva” contra o próximo reduzindo o viés humanista no convívio coletivo. Os velhos podem estar ocupando o lugar dos jovens no trabalho, e isto só fará aumentar a hostilidade contra eles; os mendigos enfeiam, sujam e atrapalham o tráfego das pessoas nas ruas; os LGBTs afrontam os pedestres quando se tocam em público; as mulheres são assediadas porque andam com roupas apelativas. É o famoso FEBEAPÁ como dizia o cronista Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
O que há por traz dos estereótipos, preconceitos, discriminações é mesmo o “Estigma”. Mas qual seria o fator determinante na depreciação das identidades destes grupos citados? O que aproxima os grupos de velhos e LGBTs é que tanto um como o outro não contribui para a reprodução da espécie, e os moradores de rua são considerados os párias da sociedade, potencialmente arruaceiros e perigosos.
Quanto mais o sistema tenta combater o pensamento crítico mais se utiliza dos “Estigmas” e do medo que temos do desconhecido, e daqueles que são considerados diferentes, indesejáveis, inúteis, criminosos, via de regra desestabilizadores da ordem e dos bons costumes. Quanto mais nos envolvemos em regimes políticos autoritários e antidemocráticos mais nos tornamos rancorosos, intolerantes e propensos às manipulações do poder instituído. Um documentário francês “Au bord du monde”( À margem do mundo) de Claus Drexel, 2013, trata da situação dos moradores de rua de Paris evocando a crítica ao abandono destes setores desempregados e sem teto. Foram selecionados cerca de quinze mendigos que descrevem com clareza e consciência crítica o seu cotidiano. Um deles declara: “as pessoas passam e ficam tão incomodadas que desviam olhar ao nos ver. Em muitos anos morando nas ruas posso falar que o mundo deixou de evoluir”.
Lembrando a citação de Jung quando questiona a unilateralidade dos opostos, quer dizer que não se deve tomar posição maniqueísta, do bem contra o mal. Esta dimensão linear (ou isto ou aquilo) impede o uso do raciocínio dialético em busca da síntese das polaridades. Mesmo que se mantenha a opção linear é importante lembrar que as sociedades não caminham sempre para frente, para o progresso. Em entrevista para rádio MVS diz o professor de Budismo, Tony Karan: ”o homem tem potencial infinito para evoluir ou para involuir quando comparado aos outros animais” (México, pod casts, 18 de maio de 2019).
ISABELA BANDERAS