Falácia da Narrativa
SE NÃO MINHA NARRATIVA, ENTÃO QUAL OUTRA?
No fim do expediente, enquanto processávamos uns envelopes discutia amigavelmente com um amigo conservador (o Edinho). Lembro que ele defendia que os índios deveriam, antes de se integrarem ao nosso capitalismo brasileiro, passar por um feudalismo. Fiquei surpreso por ele compartilhar uma ideia adotada por Marx - de que a sociedade deve passar por determinadas etapas evolucionárias. Discordei veementemente. Então Edinho me questionou, “Se não o feudalismo, qual etapa as sociedades indígenas devem passar?”.
Esta circunstância me lembrou minha infância: a minha afirmação de que sou ateu sempre dava origem à mesma pergunta: “Então quem criou o mundo?”. Esta pergunta me deixava estarrecido. Ante minha mudez o interlocutor se sentia como se tivesse me dado um cheque-mate argumentativo, eu deveria admitir a existência de Deus! O ensaio que escrevo agora é a reprodução do raciocínio que usei para responder meus amigos. Espero ter mais sucesso do que tive à época. Nem todas as crianças têm paciência para debater filosofia.
AFIRMAÇÕES ESCONDIDAS
Tanto a pergunta “Então qual a etapa civilizatória que os índios devem passar?” como a pergunta “Então quem criou o mundo?” têm pressupostos, ou seja, têm afirmações escondidas. A primeira tem o pressuposto de que existem grupos que são identificados como indígenas, tem o de que as civilizações passam por etapas e tem o de que todos os índios estão na mesma etapa e, portanto, passarão por uma próxima (segundo o Edinho seria o feudalismo). A segunda pergunta tem o pressuposto de que existe um mundo e de que alguém o criou.
O SIGNIFICADO DA MUDEZ
As pessoas com quem eu debatia (professor de religião e colegas) interpretavam a minha falta de resposta como a evidência derradeira de seu ponto de vista: se ninguém mais criou o mundo, ele foi criado por Deus! Ou seja, na falta de uma narrativa alternativa a alternativa predominante é verdadeira.
O QUE É INCLUÍDO PELA FALÁCIA DA NARRATIVA
À primeira vista fica claro que a conclusão ‘Deus existe’ é falaciosa: não é porque uma criança de dez anos ignora quem criou o mundo que Deus existe. Entretanto o ponto mais interessante é outro. Em lógica partimos de pressupostos consensuais (admitidos como verdadeiros pelos participantes da conversa) e depois seguimos às conclusões. O artifício usado na falácia da narrativa é incluir os pressupostos sub-repticiamente, às escuras, malandramente. Se os pressupostos são verdadeiros já outra história, mas eles foram introduzidos à minha revelia! Ou seja, a falácia nos força a acreditar como verdade: 1 - Deus existe; 2 - mundo existe; 3 - alguém criou o mundo. Em outras palavras, a falácia força a conclusão (como é usual em falácias), mas também força a aceitação dos pressupostos!!!
ALÇAPÃO ABERTO
Aristóteles, Platão e Sócrates, quando inventaram a lógica, deixaram um chão firme: as premissas! Se elas estão corretas e as regras lógicas são obedecidas as consequências são verdadeiras. A Falácia da Narrativa abre um alçapão subitamente! Ao empurrar as premissas (sem que tenhamos consciência disto) acabamos aceitando todo um universo como verdadeiro. Não são apenas as premissas que entram, são também as premissas das premissas e as premissas das premissas das premissas. Logo estaremos acreditando não apenas em Deus, mas em um Deus personificado e crucificado e em toda a cosmologia cristã sem nem sequer pensar a respeito!
O DESEJO DE EXPLICAÇÃO
A Falácia da Narrativa nasce do conforto cognitivo de acreditar na própria narrativa que explica o seu mundo. Ante um questionamento a pessoa formula um questionamento a partir de sua perspectiva teórica - sem se dar conta de que a pergunta em si já carrega sua visão de mundo (sua cosmologia). É este o mecanismo que faz com que a pergunta já traga diversas afirmações implícitas.
ACEITANDO A IGNOR NCIA
Nós sempre vemos o mundo a partir de nossa perspectiva, naturalmente formulamos perguntas a partir de nossas crenças. A falácia nasce da percepção de que a existência de uma narrativa é evidência de suas proposições. A maneira de fugir da Falácia da Narrativa é aceitar que as narrativas que compõem nossa visão de mundo podem estar incorretas e que, no caso de uma delas se mostrar inadequada talvez demore um pouco a conseguirmos reordenar nossa visão de mundo para contemplar a parte que nos falta. Ou, pelo menos aceitar que é possível alguém recusar nosso ponto de vista sem oferecer outro em troca.