e se tudo fosse diferente (ou como salvar o que resta de humano)

Há um quê de incertezas, meu caro, quando se postam, às nuvens, reticências, sem que se chegue a algum destino. Não no-lo direi, escusas eu peço, que tamanha impertinência só pode ser por causa da refustada pouca idade. É lícito que pessoa ainda não inclinada às matreiras contingências da vida, possam, elas, em nome da sua pouca idade, tecer presságios, ou mesmo, sentenças vaticinosas. É lisonja da vida, bem sabemos, já fomos jovens. Diga-me, meu caro, já andaste por essas ruas à noite? Por ventura, já se permitiu andarilhar por esses becos e fendas incrustadas nas paredes, para ver o que se passa do outro lado? E olha que nem estou a dizer para se arriscar a escalar o escadão. Pois bem, meu caro, é sabido que quem aponta a praticidade da solução, garanto, nem de longe, nem mesmo tomado de um súbito reconhecimento que isso existe, tem noção do quanto se luta para se ver o sol do outro dia. Ademais, não nos enganamos, há - e sem que com isso, prego o extermínio daqueles a quem sabemos, riem-se do sofrimento que causam -, o flagelo que assistimos desde que nos ponhamos a não tapar os olhos, é fruto imediato do que eles planejam há muito. Sejamos francos um com outro, aliás, não posso me furtar de mencionar, franqueza e empatia tornaram artigos valiosíssimos, não é? Mas...retomemos o que eu ia dizendo. Sei que você, meu caro, provém de família antiga. Que trespassa, pelo menos, 200 anos. Tem tio bisavô que serviu as guardas nacionais ainda no segundo reinado. Também não me é ignorado, que seu avó serviu no começo da República, enfim, tu vens de uma família que se mistura com a história do nosso país. Assim, não será engano dizer que essa tradição - ela mesma, um nó, nessa corda em que estamos - tem ligações profundas com o que estamos assistindo. Não se pode negar a história. Compreendê-la, e não escondê-la, escamoteá-la, é o primeiro passo para sabermos quem somos. Não quero, com essas palavras, pregar o fim das tradições, longe disso, mas, não dá para ignorar que o futuro está diretamente ligado ao passado. Ação e consequência, simples assim. Cada ação gera sua consequência. Assim, se há becos e morros, é porque agiu-se para fosse assim. Então, como não admitir - a menos que se subverta o sentido de responsabilidade - que o que vivemos hoje é parte, senão o único, projeto de uma parcela da sociedade que não se vê como pertencente ao conjunto dela mesma. É como se minhas ações afetassem somente a você. E você, impedido por forças e mecanismos que eu ajudei a implementar, fosse o culpado por tudo que acontece. Você não acha que não é assim que se deve proceder? Você não acha que a responsabilidade é daquele que contribuiu, tijolo por tijolo, com esse edifício que está prestes a ruir? Não estou dizendo que devemos apontar o dedo. Estou querendo dizer que se a coisa continuar desse jeito, todos serão soterrados. E se isso acontecer, a espécie humana terá sido apenas um lampejo do que poderia ter sido.