O que é arte - autocomunicação

APENAS

Só sou (só)

Só somos (juntos)

Só somos juntos!

E sós? Somos?

Quem somos sós?

Chico Acioli

FRAGMENTOS DE NÓS MESMOS

Eu ia a um bar em que jogava ping-pong todas as quartas. A combinação cerveja + jogo era perfeita para conhecer gente. Naturalmente uma das primeiras perguntas na apresentação é, “O que você faz?” Minha resposta era: “Sou jogador de ping-pong!”. A pessoa logo me perguntava sobre a vida de atleta. Entretanto sou bancário, formado em ciências sociais. Mas eu achava a resposta que dei muito mais informativa da minha personalidade - embora eu jogasse só às quartas e apenas bebendo cerveja.

Desde que o Balaio fechou nunca parei de jogar. ‘Jogador de ping-pong’ realmente é quem sou? Esta pergunta, “Quem eu sou?”, tem uma afirmação escondida: ela pressupõe que eu tenha uma identidade única. Mas sou inconstante, ora doce, ora impaciente, ora perceptivo, ora tapado: sou fragmentado. Minha sugestão é que todos somos e todo o pensamento é uma conversa entre aspectos de nós mesmos.

ME ESCREVENDO

Você escreve para você mesmo no futuro? Já escrevi diários, é incrível que algumas vezes mal me reconheci no texto que escrevi há anos. Em retrospectiva alguns dramas são frívolos e outros eu nem sequer lembrava. De vez em quando faço lista de compra, ela é uma mensagem para o eu futuro. Poderia se supor que a lista serve para suprir uma deficiência de memória. Entretanto o tempo que leva do meu apartamento para o mercadinho é dez minutos e a lista nunca tem muitos itens, certamente tenho capacidade de armazenar esta pequena informação por pouco tempo. Muito mais do que para suprir uma eventual incapacidade de armazenamento a lista de compras é uma mensagem do o meu eu de casa para o meu eu de compras. São dois “eus” diferentes, o primeiro compenetrado nas necessidades da semana, o segundo distraído por uma rica variedade de produtos e pessoas que frequentam o mercadinho.

Risco textos e escrevo em suas bordas. Antigamente eu tinha muito cuidado com livros, atualmente acredito que a maior riqueza que posso deixar é o livro todo escrito para ser visitado pelo meu eu futuro. Será mesmo? Uma vez abri um livro, li os comentários que escrevi e simplesmente o texto estava incompreensível. Certamente tinha sentido em relação ao que se passava na minha cabeça no momento em que escrevia, mas quando fui revisitar a falta de contexto me desnorteou. Sendo franco escrever nos rodapés dos livros é um pouco uma mensagem para meu eu futuro, mas é muito mais uma mensagem para o eu presente. Ao escrever estruturo o pensamento, entendimentos que me pareciam adequados se mostram inconsistentes e percebo que é necessário parar um pouco mais sobre o texto até ter um entendimento mais adequado. Além disso, dada a eventualidade pouco provável de revisitar o livro, tento escrever em sua borda um contexto mínimo que resgate o pensamento que tenho no momento. Escrevo apenas para mim, se escrevesse para outros faria um esforço maior de contextualizar as anotações e teria preocupação com sintaxe, talvez até com o estilo.

Em suma, os textos que escrevo para mim mesmo servem como um registro de informação, servem como uma memória física (mais constante que a minha memória fisiológica). Mas servem também como uma ponte entre diversos eus que vivem em contextos e tempos diferentes e que, por isto, pensam diferentemente. O texto que já escrevi, seja uma memória em um diário antigo, seja uma lista de compras, ao ser lido, é uma ponte entre duas individualidades diferentes, mesmo que ambas habitem um único corpo físico.

MEU PRÓPRIO PÚBLICO

Além de escrever ensaios já escrevi poesias, crônicas e roteiros. Também desenho e faço filmes. Cada obra de arte faço para o público, isto é, tenho a preocupação de passar algo com meu texto, meu desenho, meu filme. Mas o processo criativo é surpreendente, diversas vezes descubro algo enquanto escrevo, uma imagem se revela enquanto desenho ou um ritmo se revela enquanto edito. O sentimento, às vezes, é de que o verdadeiro autor é a caneta que seguro, não a cabeça que pensa.

Artistas da idade média negavam a própria autoria e a atribuiam a Deus - creio que eles sentiam algo semelhante ao meu deslumbramento com minhas próprias obras. A origem que atribuo a este sentimento é mundana: cada um de nós é um ser múltiplo. O encantamento que tenho ao produzir se deve a um aspecto de mim conhecer algo que outro aspecto de mim desconhece. Assim como ao escrever para o meu eu futuro também escrevo para o meu eu presente, quando escrevo para o público escrevo também para mim. Em outras palavras, em grande medida sou meu próprio público. O reconhecimento geral da qualidade de alguma obra é muito satisfatório. Mas às vezes o próprio reconhecimento é suficiente para nos fazer continuar produzindo.

QUANTOS CADA UM DE NÓS É

As antigas civilizações (gregos, indianos, hindus, hebreus, vedas) desconheciam o azul. Ao descrever os mares e os céus na Ilíada, Homero tinha que se virar com as cores que tinha, (como o verde) e se valer das mais diversas metáforas. Atualmente a maioria das pessoas considera o azul uma cor. Quem trabalha com arte, entretanto, reconhece naquilo que um leigo chama de “azul” um grande conjunto que inclui diversas cores (azul da prússia, azul royal, azul índigo, azul turquesa, azul celeste, azul bebê).

Tal qual o limite entre quando começa uma cor e termina outra é arbitrário, também o é o limite de quando começa e termina cada uma de nossas individualidades. Em relação às cores já está bem estabelecido que o nome delas se dá em relação à frequência de uma onda eletromagnética. Entretanto é impossível isolar uma frequência exata, os nomes das cores se referem a intervalos de frequências. O azul, por exemplo, vai de 620 THz até 680THz. Qual o critério que para determinar quando termina uma individualidade e começa outra individualidade? Um critério é físico: uma individualidade corresponde exatamente a um corpo. Aceito este critério, mas, assim como a cor azul, é um critério muito amplo. O azul pode ser visto como um conjunto de diversos tipos de azuis; o corpo físico, da mesma forma, pode ser visto como um conjunto de diversas individualidades.

Outro critério que podemos adicionar ao do corpo físico para ajudar a distinguir cada uma das individualidades é o tempo. Cada um de nós é muito diferente do que fomos ao nascer. Ou seja, o ‘eu’ recém nascido é muito diferente do ‘eu’ com idade de 37 anos. O critério do corpo físico mais o critério do tempo já tornam o conceito do ‘eu’ mais apurado, entretanto ainda é possível mais refinamento: será que o ‘eu’ sóbrio é o mesmo que o ‘eu’ bêbado? Um critério pertinente para ajudar a apurar o conceito de ‘eu’ é o estado fisiológico do pessoa, bêbado sou um, sóbrio outro. Vale lembrar que estados emocionais também alteram o estado fisiológico, portanto o ‘eu’ raivoso é diferente do ‘eu’ concentrado. Falando em concentração, será que o ‘eu’ concentrado no jogo em uma partida de futebol sou o mesmo ‘eu’ concentrado desenhando? Portanto nosso eu também varia conforme o assunto em que direcionamos nossa atenção.

Claramente cada um destes parâmetros que usei para refinar o conceito de individualidade é simultânea às outras. Portanto posso ser um Chico concentrado, bêbado, de 17 anos, jogando futebol. Como posso ser um Chico concentrado, sóbrio de 37 anos escrevendo nesta bela manhã de sábado. As variáveis se cruzam, o resultado é que existe uma infinidade de Chicos. Tal qual, se formos suficientemente precisos há uma infinidade de azuis. De maneira que a definição de individualidade deve ser suficientemente precisa para atender os objetivos do momento. Em nosso dia a dia chamar ‘Chico’ (usando apenas o critério do corpo físico) é suficiente.

AUTO ARTE

Este ensaio faz parte de uma série em que defino arte. Em minha definição arte é uma comunicação em que o mais importante é o canal da comunicação. Em ciência a tese, o ponto que se quer provar, é o mais importante. Ao pedirmos um copo de água o mais importante é que o pedido seja entendido (independentemente do pedido ser feito apontando o copo, verbalizando ou escrevendo em texto). Da mesma forma em filosofia o autor espera que as teses que está passando sejam compreendidas. Em arte mais importante do que a mensagem é o veículo. Antes de aprender inglês eu ouvia uma música do Led Zeppelin e a achava muito feliz. Um amigo (que sabia inglês) as achava triste. Entender a letra, entender a mensagem que o artista quer passar, certamente pode potencializar a Experiência Artística. Entretanto o mais importante é o veículo da mensagem. A letra (e a compreensão racional) é um meio para a Experiência Artística que experimentamos através da obra de arte - é o inverso do que ocorre na ciência. Neste ensaio apresento uma maneira de ver a individualidade em que em um corpo físico diversas individualidades convivem, se transformam e se comunicam. Desta forma é possível fazer uma obra de arte que encanta a nós mesmos, é possível alcançar a Experiência Artística através da nossa própria arte. Pois ela é novidade para nós mesmos.

COERÊNCIA INTERNA

Em um dia de trabalho extraordinário (agência fechada para trabalhos internos) cheguei antes sequer do gerente que abriria a agência. Um colega desconhecido já estava lá, ele se apresentou para mim. Mesmo sido extremamente simpático tive uma má impressão dele, ele me pareceu dissimulado - como ser tão simpático com um desconhecido?! Com o tempo descobri que minha birra era a toa, meu temor de que fosse um psicopata se revelou infundado. Às vezes desgostamos de pessoas sem que elas tenham nos causado nenhum mal, às vezes gostamos de pessoas que nos fazem mal. Tanto eu como ela como as afetividades envolvidas podem mudar, vivemos relações dinâmicas. Internamente se dá o mesmo: gostamos e desgostamos de algumas de nossas facetas. Este auto afeto nem sempre se justifica em função dos benefícios que esta faceta traz para a pessoa como um todo.

Alguns aspectos de nós mesmos são tão assustadores que nem sequer temos coragem de admitir que existem, os escondemos, os enclausuramos atrás de grossas portas de aço. Através da arte temos oportunidade de conhecer aspectos de nós mesmos que, de outra forma, permaneceriam escondidos. Talvez seja terrível demais admitir algum desejo proibido, mas é aceitável criar um personagem maligno com tais características. O ensaio ‘O que é arte - Riqueza cultural’ se aprofunda neste tema: a arte pode ser usada para refletirmos sobre características de nós mesmos que tememos ou que meramente não se apresentam no nosso dia a dia.

CANAL DE COMUNICAÇÃO

A arte, como a defino, é uma mensagem em que o que é importante é o canal de comunicação. Se difere de um artigo científico ou filosófico, de um livro de história ou de matemática, de uma matéria de jornal. Neles o importante é a mensagem a ser transmitida, o estilo importa na medida em que torna o conteúdo mais preciso, mais fácil de ser entendido (didático) ou mais gostoso de ser consumido. Ou seja, em outros campos do conhecimento o estilo importa na medida em que favorece a apreensão do conteúdo. Após ler o artigo minha visão de mundo muda porque as informações em que acredito mudam (as variáveis no meu sistema de processamento de informação mudam).

Na arte a mensagem importa à medida em que favorece a apreensão da obra. Ao ver uma pintura que retrata diversos girassóis a informação de que existem girassóis é redundante - eu já sei que existem girassóis. Ao ler um livro em que uma líder se vale de dragões para construir um império a informação de que existem dragões é inócua - eu sei que aqueles dragões só existem naquele mundo ficcional. O conteúdo em obras de arte importam na medida em que favorecem a Experiência Artística. Ela aperfeiçoa, o público muda pois a maneira que interpreta as informações muda (os sistemas que processam as variáveis mudam). O aprendizado que implica no aperfeiçoamento do sistema de informações (que na arte se dá através da Experiência Artística) é muito mais complexo do que o aprendizado de dados (que se dá, por exemplo, ao aprendermos algum fato em um jornal).

A arte é uma uma maneira de aprendizado. Então uma pergunta questão se levanta: é possível aprender com a própria arte? Reformulando: é possível uma individualidade aprender consigo mesma? O primeiro passo para responder a esta questão é lembrar que cada um de nós é composto por diversas individualidades. Proponho que uma obra de arte, mesmo quando feita por apenas uma pessoa, é uma contribuição de diversas individualidades (internas à pessoa). Isto explica porque temos tanto encantamento com uma obra que nós mesmos fizemos. Inclusive acredito que em regra temos mais encantamento pela obra que criamos do que o público geral, pois temos acesso às motivações das diversas individualidades que produziram à obra - ou seja, o entendimento da obra é, normalmente, maior na pessoa que fez a obra do que no público geral.

CONCLUSÃO

Nós somos seres diversos, cada um de nós é uma conjunto de individualidades, algumas emergem com frequência, outras temos o prazer (ou o desprazer) de experimentar só em situações muito específicas. Através da arte temos oportunidade de, por um lado, reconhecer alguns aspectos de nós mesmos (que vemos na arte). Por outro lado a arte é uma oportunidade de uma individualidade ensinar a outra um ensinamento bem especial. Através da arte uma individualidade não ensina o conteúdo (isto é papel para a ciência, filosofia jornalismo). Na arte o conteúdo é uma meio para a individualidade ensinar o que é mais íntimo a ela: seu modo de processamento de informações (seu estilo).

Quando alguém vê meu corpo físico assume que nele há uma pessoa. Esta percepção é adequada à maioria das situações do dia a dia, entretanto é uma percepção que dá a ilusão de que somos um todo consistente e coerente. Na nossa vida, entretanto, somos diferentes de acordo com o contexto em que vivemos pois somos diferentes de acordo com os sistemas que governam nossa ação a cada momento. É por isto que escrevemos para nós mesmos, é um ‘eu’ (uma individualidade) escrevendo para outro ‘eu’ (outra individualidade). O Chico do presente escreve um diário para diversos Chicos futuros - que por ventura venham a se interessar por um Chico que outrora existiu. O Chico que faz a lista de compras (compenetrado com as necessidades da semana) é diferente do Chico distraído pelas diversas pessoas e itens em um mercado - um Chico escreve ao outro. Ao ler um texto faço anotações, mesmo ao escrever me dou conta de que meu entendimento muitas vezes era insuficiente. A necessidade de elaborar para mim mesmo é um recado para o um outro Chico - as individualidades que convivem em um mesmo corpo físico nem sempre são separadas por lapsos temporais.

Como deixo claro no ensaio ‘O que é arte - riqueza cultural’ a pluralidade que cada um de nós é é muito diversa. Diversos aspectos de nós mesmos só temos oportunidade em conhecer em circunstâncias diferentes da do nosso cotidiano. Alguns aspectos de nós, infelizmente, são repulsivos e ficam escondidos, trancafiados. Através da arte temos oportunidade de reconhecer no outro aspectos bons e ruins de nós mesmos, que passariam despercebidos na nossa rotina (em que vivemos sempre as mesmas circunstâncias).

Uma obra de arte, ao contrário de um artigo científico ou em uma matéria jornalística, é uma comunicação em que o que importa é o canal da comunicação. Em um artigo o que importa é comunicar o conteúdo, o estilo importa na medida em que ajuda a propagar o conteúdo. Na arte o que importa é o estilo (farei um ensaio especificamente sobre estilo) e o conteúdo é um recurso para a apreensão do estilo. Assim sendo uma pergunta se apresenta: é possível auto arte? É possível a Experiência Artística? É possível aprimorar um sistema de informações a partir de nós mesmos? Sim, é possível, pois nós somos seres plurais. Arte pode ser uma auto pedagogia do sistema de processamento de informações. Ela torna possível uma individualidade interna a nós mesmos ensinar o processamento de informações a outra individualidade interna à nós mesmos. Cada um de nós é um ser plural, em cada circunstância em que vivemos os sistemas de processamento que criam e interpretam o Mundo Real* são diferentes, por isto somos individualidades diferentes a cada momento. Uma individualidade pode ensinar à outra: por isto uma arte criada por uma pessoa pode proporcionar a Experiência Artística a esta mesma pessoa. Auto arte é possível!

*Conceito criado no ensaio ‘O que é arte - o todo incognoscível