O que é arte - Todo Incognoscível
INTRODUÇÃO
No dia a dia há um enorme consenso que viabiliza nossa vida. Há um consenso sobre se há ou não uma mesa à nossa frente, há um consenso de que dinheiro tem valor, há consenso de que uma determinada frequência de radiação eletromagnética leva o nome de cor vermelha. Isto nos leva à ilusão de que o mundo real é necessariamente o mesmo a cada um de nós e à ilusão de que as coisas têm existências objetivas. Neste ensaio mostro uma perspectiva diferente: cada um de nós existe, existe também algo fora de nossa individualidade. O que está fora da individualidade nem sequer é possível referenciar, visto ser absoluto, assim temos apenas acesso indireto ao Todo Incognoscível. A cognição tem acesso apenas indireto a eles, através dos sentidos ela constrói o que entendemos por Mundo Real. Assim temos um problema: vivemos no Todo Incognoscível (e toda a ação se dá nele) mas percebemos apenas o Mundo Real (que existe apenas em nossas cabeças). Nesta circunstância, como é possível a ação?
FATOS FRIOS
Eu, minha namorada e outro casal de amigos fomos sábado a tarde - após o trabalho de uma de nós - para a Chapada dos Veadeiros e voltamos domingo. Viajamos com calma e segurança, nos alojamos, jantamos e fomos à primeira quebra: águas termais. Passamos umas duas horas de carro até chegar à quebra, ao chegarmos ela estava fechando. Fomos a mais duas águas termais próximas, também estavam fechadas. Voltamos no escuro total. Chegamos à casa que alugamos e jogamos um jogo de investigação. No dia seguinte acordamos, tomamos café da manhã. Passamos um tempinho na varanda apreciando a paisagem, ouvindo o Daniel tocar violão e procurando araras. Tiramos algumas fotos com os ETs que enfeitam um hotel e fomos - sem guia - à minha cachoeira favorita. Nos perdemos e passamos horas na estrada de terra. Chegamos a pensar em desistir também desta segunda cachoeira, mas chegamos nela e a desfrutamos.
FATOS: INEVITAVELMENTE ESCOLHIDOS
Ao contar os fatos da maneira mais isenta possível evito me colocar no texto. Isto é, evito colocar interpretações e julgamentos. Mas a mera escolha dos fatos já é fruto do que valorizei na minha experiência. Deixei de fora o tucano que vimos enquanto esperávamos a dona do alojamento, não contei que passei a manhã preparando sanduíches para o almoço e café da manhã do dia seguinte. Não contei intimidades que alguém poderia achar invasivo. Não contei trivialidades que considerei irrelevante: havia previsão de chuva, entretanto fez sol. Não contei o medo que senti de não conseguirmos ir à nenhuma cachoeira e, portanto, a viagem (que eu planejei) virar um fracasso. Não contei a explosão de felicidade que sentimos ao ver que chegamos à Catarata dos Couros. Não contei que ganhamos de presente dois panetones veganos artesanais (e que só levamos um que devoramos à margem do rio). Os fatos já são frutos de escolhas, as escolhas são devido à minha experiência e devido à minha intenção. Ou seja, a individualidade que faz a narrativa (no caso eu) através de escolhas.
FATOS: MOLDADOS PELA VEICULO DA NARRATIVA
O processo de transformar minha experiência em uma narrativa parte de minha intenção (sem a qual eu nem começaria a escrever). Posso escrever uma infinitude de coisas a respeito da minha experiência, esta infinitude é possibilitado pelas características do meu veículo de comunicação. Entretanto este infinito tem limites (que são muito dilatados através da arte). Escrevi os fatos em português, caso tivesse escrito em espanhol certamente seria uma descrição bem similar. Mesmo escrevendo em alemão a descrição provavelmente seria semelhante (assim como o português o alemão é uma língua indo-europeia). Se eu fizesse a descrição em chinês ela provavelmente seria um pouco mais diferente. Entretanto uma descrição em um veículo extremamente diferente transformaria radicalmente a descrição de fatos: pense uma descrição em uma linguagem de programação, uma descrição em um filme, uma descrição em uma pintura, em uma música, em uma coreografia de dança. Cada veículo permite uma infinidade de possibilidades. Entretanto as infinidades possibilitadas por cada veículo são diferentes entre si. Todas as descrições, independentemente do veículo (texto em português, narração em chinês, pintura expressionista, filme) são necessariamente diferentes da experiência que vivi em minha viagem à Chapada.
O TODO INCOGNOSCÍVEL É INACESSÍVEL À INDIVIDUALIDADE
A individualidade vive cercada por algo que é fora dela: a cadeira em que sento, o ar que respiro, a tela de computador em minha frente - tudo isto e muito mais está fora da minha individualidade. O que chega aos meus sensores (ouvidos, olhos, pele…) é muito menos do que o que está ao meu redor. O que me cerca é infinito. E mesmo que me chega pelos meus sentidos não são cadeira, ar, tela. O que chega são ondas eletromagnéticas (luz), ondas de pressão (som), vibração das moléculas (temperatura). ‘cadeira’ , ‘ar’ e ‘tela’ são interpretações elaboradas pela minha cognição. O que está fora da minha cognição é o que chamo de ‘Todo Incognoscível’. É impossível fazer referência a qualquer aspecto do Todo Incognoscível, pois só fazemos referência através da cognição. Ou seja, é impossível fazer referência ao que é externo à nossa cognição sem usar a cognição. Inclusive, mesmo nossa cognição tem acesso apenas indireto ao Todo Incognoscível. A individualidade tem acesso através dos sentidos (que já fazem um filtro do que chega à cognição) e através de códigos elaborados intencionalmente por outra individualidade (comunicação). A percepção da comunicação também é uma forma de acessar o incognoscível através dos sentidos, entretanto estas características (ser elaborada em código, ser orientada por uma intenção e ser elaborada por outra individualidade) conferem características especiais à comunicação.
PARADOXO EXTERNO/INTERNO À INDIVIDUALIDADE
O pensamento se dá apenas com elaborações internos à individualidade. Entretanto a ação se dá em uma interação com o que é externo à individualidade (o Todo Incognoscível). Como é possível esta ação? Eu, por exemplo, estou digitando em um teclado. A cada poucos minutos recarrego minha xícara de café. A ação da minha individualidade é com o mundo que me cerca (com o Todo Incognoscível). A xícara de café e o teclado só existem como construtos em minha mente. Em se considerando que toda a ação se dá em uma interação com o Todo Incognoscível e que o pensamento se dá internamente à individualidade, como é possível a ação?
MODELOS: A CRIAÇÃO DO MUNDO REAL
Os sistemas de processamento acessam as memórias e criam modelos, estes são o que percebemos como ‘Mundo Real’: uma elaboração muito abstrata que nos serve para guiar nossas ações. Um jogador que vê uma bola de futebol chegar do alto e se prepara para matá-la no peito é incapaz de perceber tudo o que está à sua volta (o Todo Incognoscível). O que ele faz é: usa sua atenção para guiar seus sentidos, através dos sentidos e da atenção o jogador coleta informações, as informações são processadas e usadas em sistemas de processamento (que já foram aperfeiçoados em anos de prática do esporte) e então ele cria um modelo do Todo Incognoscível, mas um modelo que contém apenas informações específicas à sua intenção no momento (matar a bola no peito). Ou seja, o Mundo Real são modelos elaborados para guiar a ação das individualidades.
ARBITRARIEDADE DA INDIVIDUALIDADE
A percepção de que uma individualidade é aquela que se encontra em um corpo físico humano é arbitrária. Os sujeitos da comunicação podem ser pessoas, animais, instituições, computadores. Os sujeitos podem ser internos a outros sujeitos: órgãos em uma repartição pública, programas internos a um computador, sistemas de conhecimento internos a um humano. A comunicação se dá entre individualidades, mas um grupo pode ser uma unidade capaz de comunicação. Um banco, por exemplo, pode ter como um input um funcionário que escaneia documentos dos clientes e abre suas contas, os processos que transformam este input em informação são a burocracia interna. Um banco pode comunicar (por exemplo, que alguém está sem crédito). Já um computador, por exemplo, tem todos os elementos de comunicação governados por softwares. Dentro de cada indivíduo pode haver diversos indivíduos. Dentro de uma grande organização há departamentos, dentro de um computador há diversos softwares (alguns podem ser entendidos como indivíduos) e, dentro de cada um de nós (humanos) há diversas facetas de nossa personalidade. Individualidade, conforme a defino aqui, é qualquer entidade capaz de receber uma informação, interpretá-la e se alterar em função desta interpretação.
ORIGEM DOS PROCESSADORES QUE CRIAM MODELOS
Os processadores de informação (que, a partir de memórias, criam todo o nosso pensamento, incluindo os modelos que entendemos como Mundo Real) tem três origens: nascimento, aprendizado através de heurísticas e aprendizado via aquisição de modelos estruturados. Exemplos de processadores que nos acompanham desde nossa origem são, nos humanos (e nos demais animais) o instinto que permite aprendizado; nos países sua constituição; nos computadores a memória ROM. Exemplos de aprendizado através de heurística são humanos aprendendo a chutar uma bola, animais aprendendo a caçar, uma empresa refinando os produtos adequados a cada perfil de clientes, softweares de inteligência artificial aprimorando seus parâmetros. Exemplos de aprendizado via ensinamentos estruturados são aprendizados de regras de um jogo (em humanos), incorporação de novas regras trabalhistas (em uma empresa), download de um programa (em um computador). Cada um destes processadores é capaz de reagir a diversas variáveis as enquadrando em modelos:
1. em um jogo de futebol há infinitas possibilidades da bola cruzar a linha lateral do campo (variável, maneira com que a bola se movimenta), entretanto sempre que cruza a linha a bola está fora de jogo (modelo reduzido: fora/dentro do campo);
2. uma empresa pode contar com milhares de pessoas em diversas áreas, com diversas competências, diversos salários (variável: pessoas) mas ela os trata sob as mesmas leis trabalhistas (modelo: funcionários);
3. ao nascer um animal se depara com uma infinitude de experiências (variável, contato com o Todo Incognoscível) e a partir destas infinitas experiências ele afere padrões (modelo: detecção de padrões).
Observação: Me abstenho de nomear os ou exemplificar os processadores, visto que sua localização e nome são muito diversos. Em uma pessoa humana nem sequer o processo é absolutamente compartimentalizado. Onde começa o nosso pensamento? Embora áreas do cérebro tenham funções específicas o pensamento se dá mais pela interação entre elas do que isoladamente em determinada parte do cérebro.
MODELO DE COMUNICAÇÃO SIMPLES
Quando comunicamos passamos uma informação de uma individualidade para outra em um processo complexo, aqui um modelo de uma comunicação básica:
0. Pressuposto para a percepção: A existência de uma individualidade e a existência do incognoscível. O contato entre a individualidade e o incognoscível é a experiência.
1. Contato com o incognoscível: Através de inputs (sentidos nos animais, um teclado em um computador, atendimento por um burocrata de em um Estado) há o primeiro filtro do incognoscível. O input possibilita acesso ao incognoscível, mas apenas em uma fração finita do incognoscível. Os olhos permitem o reconhecimento apenas de ondas eletromagnéticas (deixa de fora, por exemplo, ondas de pressão - som).
2. Atenção: O que chega pelos sentidos em sistemas analógicos (por exemplo, um input orgânico, como o ouvido) ainda é infinito. Exatamente o que o input faz em relação ao incognoscível a atenção faz em relação ao sinal que chegou do input. Enquanto escrevo ouço música. Só percebo a guitarra, o vocal gritado. Ao escrever sobre som comecei a prestar atenção aos sons, percebi algumas palavras (quando presto atenção apenas ao texto que escrevo não distingo palavra alguma). Comecei a prestar atenção aos passarinhos, agora deixo de distinguir as palavras da música, mas percebo a algazarra que os passarinhos fazem.
2.1 Atenção guiada: Interessante notar que a atenção é orientada por uma intenção. Se eu prestar atenção apenas às minhas ideias posso ignorar tudo o que chega pelos inputs. Da mesma maneira posso me concentrar em um input (como uma imagem, um livro ou uma música) em detrimento de todo pensamento que gero autonomamente.
3. Pensamento: O que foi selecionado pela atenção é guardado na memória (mesmo que uma memória de curto prazo). Dependendo do interesse esta informação é acessada e processada. O processamento da memória armazenada é o pensamento.
3.1 Origem do pensamento: Interessante notar que a memória a partir do qual o pensamento se faz pode ter origem neste caminho: incognoscível - input - atenção - memória. Mas a memória pode vir de outros caminhos. Pode vir da própria divagação do indivíduo: memória - sistemas de informação - memória - sistemas de informação - memória - sistemas de informação (quantas vezes o loop entre memória e sistemas de informação pode ocorrer é indefinido).
4. Elaboração para outra individualidade: Rigorosamente a elaboração para outra individualidade faz parte da etapa 3 (pensamento). Mas tem uma particularidade: aqui se faz necessário que a informação seja elaborada para a compreensão de outra individualidade.
4.1. Início em códigos próprios: A individualidade A tem uma informação que deseja passar. Esta informação está em códigos próprios ao seus sistema de informação.
4.2 Imagem do Receptor: A individualidade A tem uma imagem a respeito da individualidade que irá receber a informação (individualidade B). Ou seja, a individualidade A supõe que a individualidade B tem capacidade de receber sua informação. A supõe que B possui sistemas de informação capazes de processar determinados códigos.
4.3 Tradução: Individualidade A traduz a informação de seus próprios códigos para os códigos que a individualidade B possa entender.
4.3.1 Tradução é uma revisão crítica: O processo de tradução do próprio pensamento para o código que o próximo irá entender - assim como todos os processos - não é um processo inerte. Ao traduzir de um código para o outro (ou seja, ao traduzir de um código específico a um sistema de pensamento para o código específico a outro sistema de entendimento) sou obrigado a processar a informação para os sistemas de informação que pressuponho que o receptor tem. Ao fazê-lo posso me dar conta de erros no meu pensamento que haviam passados despercebidos ao elaborá-lo originalmente. Da mesma maneira ao traduzir de um sistema para outro posso me dar conta de possibilidades que não ocorreram originalmente.
5. Mensagem altera o todo incognoscível: o Todo Incognoscível é tudo o que está fora da individualidade. A comunicação se dá por intermédio do som (fala), de imagens (texto escrito), enfim, a comunicação se dá por intermédio de algo que está fora da individualidade. Portanto a comunicação se dá através do Todo Incognoscível.
6. Outra individualidade recebe a mensagem. Através de seus próprios sensores o Todo Incognoscível é recebido por uma segunda individualidade. Caso ela tenha interesse para guiar a atenção, a segunda individualidade pode perceber a mensagem. Caso tenha sistemas apropriados a segunda individualidade pode decifrar a mensagem.
CONCLUSÃO
Este modelo de entender o conhecimento tem três grandes elementos (Todo Incognoscível - Mundo Real - Individualidade) mostra porque temos a sensação de que cada objeto (como a cadeira) ou conceito (como a gravidade) tem uma existência objetiva. Cada individualidade vive imerso em algo absoluto e impossível de se apreender, o Todo Incognoscível. A impossibilidade de apreensão do meio em que cada um de nós vive cria um problema: como é possível qualquer ação? Cada individualidade cria modelos que simulam o Todo Incognoscível, mas apenas em aspectos de interesse imediato. A ação se dá pautada nestes modelos, os quais chamo Mundo Real. A sensação de que o Mundo Real é o mesmo para individualidades diferentes se dá primeiro porque tais modelos são criados, em grande medida, intersubjetivamente (ou seja, são criados coletivamente). O segundo motivo é que uma segunda individualidade que teste o modelo em condições análogas terá um mesma mesma resposta vinda do Todo Incognoscível. Tais modelos são possíveis por sistemas de processame, alguns dos quais nascem conosco (como o instinto e a memória ROM), alguns são aprendidos. Os modelos que são aprendidos podem ser aperfeiçoados (por exemplo, através da prática de jogar futebol) ou mesmo substituídos por modelos que sejam julgados mais pertinentes pela individualidade em questão (por exemplo, quando alguém muda de religião). Em suma, a ação é possível porque temos modelos que simulam o Todo Incognoscível, tais modelos são aperfeiçoáveis e intercambiáveis. A sensação de que cada um de nós vive no mesmo Mundo Real se dá porque vários destes modelos são criados intersubjetivamente. Pelo mesmo motivo é possível a comunicação, pois os Mundos Reais de cada um dos que se comunicam são, em grande medida, muito parecidos.