A divisão do trabalho
As primeiras construções humanas, feitas com pedras de cantaria, indicavam que o espírito gregário do homem estava já bastante desenvolvido, implicando que a humanidade havia entrado em uma fase onde a socialização se tornara inevitável, até como estratégia de sobrevivência. E junto com ela a necessidade de dividir o trabalho, já que as exigências de um grupo, vivendo em comunidade, superam em muito às que requer uma existência individualizada.
A divisão do trabalho foi uma das primeiras e principais estratégias da espécie humana na sua ação civilizatória. Como bem observou Durkheim em sua obra fundamental, a sociedade que então se formou a partir da fixação do homem ao solo, dividiu o fundamento de sua subsistência em dois tipos de solidariedade: a mecânica e a orgânica, que foi associada a dois tipos de lei, que ele chamou de direito repressivo e direito restitutivo.[1] Essa divisão, segundo esse autor, ancorava-se nos dois tipos de consciência desenvolvida pelo homem gregárioː a consciência coletiva e a individual. É nesse sentido a observação de Durkheim, de que o desenvolvimento de uma é exclusivo em relação à outros primitivos estágios de desenvolvimento social, e que no princípio ocorreu a predominância de uma consciência coletiva em relação à individual, por força do próprio processo que levou os grupos a se reunirem em sociedades. Esse processo tinha como principal motor de sua realização a necessidade de prover a subsistência do grupo e a defesa dos bens públicos que suportavam essa demanda. Daí o processo de evolução das sociedades, e da sua complexificação, com o desenvolvimento dos sistemas nos quais se amparam a vida social, quais sejam, a política, o governo, o sistema legal e a economia.
A complexificação das relações econômicas e sociais define uma mudança em que os diversos corpos sociais, primitivamente indiferenciados no seu interior, fragmentam-se, estabelecendo trocas com outros grupos e definindo diferentes funções executivas no seu interior. As sociedades primitivas são aquelas em que a consciência coletiva se encontra desenvolvida de modo absoluto. Não há, nesse estágio de desenvolvimento social, uma noção de acumulação de bens como forma de proteção social, noção essa que viria a ser, num estágio futuro, a semente intelectual do capitalismo.
Na primitiva sociedade, todos os indivíduos que a compõem encarnam as mesmas representações coletivas, as mesmas finalidades e comungam os mesmos valores. O trabalho necessário para atender as necessidades coletivas é realizado indistintamente por todos os indivíduos, diferenciando-se, apenas em relação aos sexos. Neste estágio, a consciência individual é mitigada pela consciência coletiva, desenvolvida pelo grupo como forma de defesa e de sobrevivência mesmo.
Isso foi se modificando naturalmente em função do próprio desenvolvimento das sociedades e da ascensão dos grupos dentro dela. As diferenças biológicas e intelectuais, que a própria natureza faz nascer entre os indivíduos começou a fazer o seu papel. A predominância do mais forte sobre o mais fraco, do mais talentoso sobre o menos versátil, do mais esforçado sobre o preguiçoso logo começaria a promover uma mudança no estrato social, acentuando as diferenças e gerando uma consciência individual que logo provocaria uma profunda mudança na estrutura das sociedades humanas.
No entanto, a divisão do trabalho, mesmo nas sociedades modernas, que optam pela individualidade como núcleo da sua produção econômica, é mantida como fundamental à própria existência da sociedade e principalmente do seu bem estar. Essa característica pode ser observada na estrutura das cidades antigas, como bem salienta Fustel de Coulanges em sua obra, na qual a divisão do trabalho social se dá em função da idade e do vigor corporal das pessoas, destacando-se o fato de que às mulheres cabe principalmente o labor manual para a manutenção do lar e a criação da prole, enquanto que aos homens atribui-se a tarefa de prover os alimentos e a defesa da família e do grupo, sempre necessária em função do meio hostil em que as cidades antigas se formavam.[2]
Mas se a divisão do trabalho, na moderna sociedade, deu nascimento aos grupos econômicos específicos e gerou, no seio dessas sociedades, a estratificação que nela se observa até hoje, dela não se pode dissociar a espiritualidade crescente que à própria função exercida pelos indivíduos, em sua diferenciação, foi sendo acrescida, à medida em que às profissões adquiriam um caráter tecnológico cada vez mais sofisticado.
Não só pelo valor econômico que os produtos tecnologicamente mais elaborados adquiriam, mas principalmente pelo destaque social que eles conferiam aos seus produtores, em termos de poder econômico, a divisão do trabalho foi o grande motor da distinção que formou entre os grupos sociais a partir de certo momento da vida das sociedades.
Pode-se dizer que espirito das sociedades, e também dos indivíduos foi construído a partir da divisão do trabalho. Porque uma sociedade, na sua estrutura social e econômica se ancora na forma pela qual as pessoas ganham a vida. O moinho de vento produziu o suserano e o vassalo, enquanto que o moinho a vapor produziu o capitalista e o proletário, como sugere Marx em sua obra fundamental, e esse pressuposto tem se confirmado através dos séculos..[3]
Porque toda a cultura humana, que Marx chamava de superestrutura, nascia de uma infraestrutura que se assentava sobre o trabalho e sua forma de execução. Isso significa que as próprias crenças humanas, a sua religiosidade, as suas leis e todos os arquétipos que informam a consciência social e individual do homem, são profundamente influenciados pela forma como ele ganha a vida.
Assim, se o espírito gregário do homem implicou na sua socialização e consequentemente, na construção de cidades, tudo isso resultou, como é lógico, numa crescente espiritualização da sua consciência, pois, na medida em que ele ia operando concepções cerebrinas cada vez mais elaboradas, ele ia adquirindo, concomitantemente, um sentimento de transcendência da sua própria condição de ser humano.
A ideia que o homem foi feito à imagem de Deus nem de perto passou pela cabeça dos nossos primitivos ancestrais. Essa é uma concepção bastante recente, se a situarmos numa escala de tempo em que os fatos históricos podem ser recenseados e datados. Sua origem está na religião de Israel, e esta, como acredita a maioria dos historiadores, nasceu por volta da metade do segundo milênio antes de Cristo, provavelmente inspirada por cultos praticados pelos povos da Mesopotâmia.
Destarte, a noção de que o homem teria um parentesco com as criaturas do mundo sagrado, sendo ele próprio feito à imagem daquele que ele acredita que o criou, é contemporânea da sua consciência desenvolvida e do momento em que ele mesmo se tornou um criador. Ou seja, quando ele descobriu que tinha a capacidade de criar objetos, formatando com as próprias mãos formas que sua mente lhe sugeria e que ele fabricava com a matéria prima fornecida pela Natureza. Nascia, dessa forma, a Arte, e com ela, o homem tornava-se forjador de mundos, à semelhança do seu próprio Criador.
Daí a sacralização do ofício, que quanto mais impregnado de Arte, mais espiritualidade conferia ao seu executor. E nessa noção, o trabalhador ganhava um status de Iniciado, uma pessoa eleita dos deuses, em que o Manifestado se fazia presente para refletir a própria presença divina nos objetos manufaturados, que assim confirmavam o poder da própria divindade que os inspirava.
O ofício do construtor, um dos mais antigos do mundo, juntamente com a medicina, foi o que talvez, melhor se prestou à essa mágica transcendência que a crescente espiritualização da consciência humana chumbou ao exercício de uma profissão. Porque nele, desde as mais primitivas formas de abrigo construído pelo homem, observa-se a evolução de uma técnica que, senão inspirada pela própria arquetipia universal, tinha, em seus meandros, uma estreita relação de parentesco com as fórmulas usadas pela Deidade Suprema na construção do universo. Nota-se, pois, no desvelo com que as construções eram feitas, na sua estrutura e na suas formas cada vez mais estilizadas, a busca de um parentesco entre o divino e o humano, que se realizava na prática de uma Arte que integrava a Ciência com a Beleza e a Harmonia, e no seu resultado final, a exaltação do próprio Espírito do Construtor.
Da madeira à pedra, as construções evoluíram, no uso da matéria prima e na sua confecção como verdadeiras obras do espírito. Não apenas como matéria bruta, usada para a edificação de paredes, mas, em um estágio já bem mais avançado, como representação do próprio espirito do homem nas suas concepções mais sutis, a pedra tornou-se “o barro” pelo qual o homem imitava o seu Criador na sua Arte de construir mundos. As pedras, formatadas pelos cinzéis dos “rough maçons” nas pedreiras da antiguidade, formavam, pelas mãos dos “freestones”, ou seja, os pedreiros profissionais, o desenho lógico dos templos, edifícios, palácios, pontes, monumentos e outras obras que glorificaram seus construtores e seus patronos. Nascia, dessa conformação operativa, o substrato corporativo que daria nascimento à chamada Arte Real. E da sua prática, aliada à motivação religiosa que a acompanhava, germinava uma tradição que iria atravessar os séculos e impressionar os espíritos humanos de uma forma tão misteriosa quanto contundente. Tinha nascido a maçonaria operativa.
[1] Emile Durkheim - A Divisão do Trrabalho Social, Ed.Edipro, São Paulo, 2015
[2] Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga, Martin Claret, 2009. Observe-se que o próprio instituto da escravidão está ancorado nesse fato social. O escravo, nas sociedades antigas, eram aqueles que fisicamente, ou por força de uma inferioridade tecnológica acabavam sendo conquistados na guerra ou reduzidos à escravidão em razão de um fracasso econômico, ou algum outro fato social desfavorável, como o cometimento de um crime, uma dívida não paga, etc. Essa condição não mudou nas sociedades modernas, onde a escravidão continuou a ser praticada, sempre pela sujeição do mais fraco pelo mais forte. Praticamente toda a colonização do Novo Mundo foi feita pela divisão do trabalho distribuída entre mão de obra escrava e homens livres, os primeiros realizando o trabalho produtivo e os segundos administrando o processo de produção e os resultados.
[3] Karl Marx- O Capital-Tomo II- Ed. Boitempo, SP, 2011.