Trabalho e Maçonaria são duas instituições que se confundem na história da humanidade. Houve um tempo na história da espécie humana, em que toda sua habilidade profissional era dominada pela preocupação que o homem tinha em agradar os seus deuses. O trabalho, especialmente aquele que envolvia certa tecnologia para o seu desempenho, fazia parte de um plano sagrado que a divindade patrona do grupo que o praticava, concebia e administrava. Era, pois, uma determinação que já vinha de um plano superior, tal como a própria Bíblia Sagrada sugere em dos seus mais conhecidos preceitos: “ ganharás o teu pão com o suor do teu rosto”.
Esse preceito bíblico, tomado ao pé da letra, implicava, não só numa determinação taxativa de que o homem foi posto na terra para fazê-la produzir, como também que o trabalho exercido nessa produção devia funcionar como uma constante de integração entre a terra e o homem, no sentido de que o ser humano trocaria o fruto que dela viria pelo suor despendido na sua produção. Homem e terra, dessa forma, se uniriam em um pacto sagrado, cujo resultado poderia ser observado, tanto do ponto de vista material quanto do espiritual. Dessa forma, a sacralização do ofício era uma necessidade do espírito, e este, além das técnicas desenvolvidas para o seu bom desempenho, tinha que integrar, no seu desenvolvimento, um rito próprio que lhe conferia características quase religiosas.
Essa a razão de, numa fase em que a religiosidade dominava os espíritos, cada ofício ter desenvolvido um ritual próprio de admissão para os seus iniciantes e uma regulamentação iniciática para os seus praticantes. Essa disposição fazia de cada profissional desses ofícios um recipiendário da influência espiritual que a profissão lhe conferia. Pois que cada ofício, na sua capacidade de gerar uma forma, um produto, uma imagem, que eram, na sua essência, uma projeção do Espírito Criador, tornava-se uma forma de ascese, cuja prática elevava seu praticante, de início, um mero profano, ao território sagrado do iniciado.
Assim, a prática do ofício era um prolongamento do exercício espiritual. Não se trabalhava somente para a obtenção dos proventos necessários à vida, mas também, e principalmente, para a elevação do espírito às esferas mais sutis da existência.
Nesse sentido, todas as profissões que integraram, em seu exercício, o aporte de alguma tecnologia, acabaram caindo no domínio do esoterismo. Todas tinham sua divindade padroeira e seus ritos de iniciação, bem como regras de conduta e obrigações solenes, que envolviam, primordialmente, a prática do silêncio e do espirito da fratria, ou seja a confraria. E, como estrutura de desenvolvimento e estratégia de formação, a graduação seletiva de seus membros, onde a passagem de um grau para outro (ou seja, a aquisição gradativa dos conhecimentos e das técnicas do ofício) eram transmitidas por repetidas elevações, cada uma com seus próprios elementos ritualísticos.
Sucedia, assim, que muitos eram iniciados, mas muito poucos se tornavam verdadeiros mestres no ofício. E mesmo aqueles que, por meio de suas qualidades profissionais conseguiam atingir o degrau mais alto na escada se podia dizer que tivessem atingido o êxtase espiritual que a sua Arte prometia aos seus praticantes. De forma que a eles podia-se aplicar um outro preceito bíblico: muitos eram chamados (iniciados); poucos eram escolhidos, ou seja, tornavam-se verdadeiros mestres.
Para toda profissão havia pois, um regulamento, uma tradição a cumprir e um ritual de iniciação e de passagem de grau. A iniciação, bem como as elevações graduais eram feitas por meio de simbolismos, cuja teatralização incorporava, quase sempre, um sentido religioso que visava, no escopo de sua essência, atrair as graças da divindade acreditada pelo grupo. Era, no seu sentido mais profundo, uma forma de religação do iniciando com o primitivo estado de beatitude que o seu espírito comungava antes da Queda, estado esse perdido em consequência do pecado original, ou seja, o pecado de Adão.[1]
O trabalho metódico, ritualizado e sacralizado foi, pois, uma forma encontrada pelo homem para mitigar a maldição divina sobre a terra. Se a aquisição de uma consciência (comer o fruto da Árvore do Conhecimento) causou a perda da inocência por parte do homem, urgia então, que esse processo (o de obtenção dos frutos da terra com trabalho das mãos) se tornasse uma fórmula capaz de purgar essa violação. Daí a sacralização do ofício, onde a Sabedoria aplicada na obtenção da Obra, se aliava à Força que possibilitava sua realização efetiva e integrava em sua confecção o Amor com que o artesão a ela se dedicava. E a ele, ao mesmo tempo, proporcionava Conhecimento, ajudando-o a se despojar do homem velho, vestido com a sua pele de pecador, para se tornar um homem novo, agora não mais uma criatura passiva no processo de construção do universo, mas um parceiro ativo nesse processo. [2]
O novo homem, então nascido dessa iniciação, o homem consciente, técnico, revestido de Sabedoria e Conhecimento, seria o forjador do novo mundo, um mundo feito de Harmonia e Beleza.
A sacralização do ofício foi, pois, a fórmula encontrada pelo homem desperto para reconciliar-se com seus deuses, e em razão disso integrou nela uma ritualística própria que vêm sendo mantida através dos séculos. Não há profissão, no sentido próprio do termo, que não tenha sua ritualística própria e sua linguagem particular. E na prática desses comportamentos cristaliza-se uma tradição que faz dela uma espécie de kitch cultural, que não raras vezes, acaba perdendo a sua identidade.[3]
Na primitiva essência desses ritos, a iniciação em cada ofício integrava o sentimento religioso de que todo iniciado pertence a um mundo unificado que perdeu o elo de ligação com o divino, quando o homem dele se descolou por força da aquisição da consciência. Esse sentimento encontrava eco na antiga crença de que o homem era o Filho da Terra, e sendo ela a sua Mãe, importava imitar o rito primordial pelo qual a Terra dava nascimento aos seus frutos. Nasceram desse sentimento os rituais conhecidos como Mistérios, que nada mais eram que festas populares teatralizadas com a intenção de reproduzir, simbolicamente, os ciclos naturais de produção.
Nesse sentido, a Mãe Natureza era a mais prendada de todas as artesãs, pois dela saiam todas as formas, produtos e realidades do mundo manifesto. Honrá-la com ritos imitativos da sua fertilidade, na pessoa das deusas que a simbolizavam, eram a garantia de que as produções de seus artífices, em todos os ramos que a sociedade humana havia desenvolvido, seriam prósperas e sadias.
O ofício do construtor, pela sua característica operacional e pela sua própria destinação social foi um dos primeiros a ser desenvolvido pelas sociedades estabelecidas em sua forma gregária. A fixação do homem à terra, pelo exercício da agricultura, levou-o naturalmente à construção de um abrigo permanente, a partir do qual ele pudesse cuidar do seu roçado, da sua horta, e protegê-la das invasões. Daí o nascimento de um sentimento de posse e uma consequente noção de propriedade, que desde o início da socialização da espécie humana, tem sido um motivo para os conflitos que, ainda hoje, cobram o sangue de Abel nas terras palestinas.[4]
Mas foi desse espírito gregário desenvolvido pelo homem primitivo em volta da sua plantação que nasceram as primeiras construções e depois as primeiras cidades.
[1] E disse em seguida ao homem: "Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Gênesis 3:17
[2] O Senhor Deus fez para Adão e sua mulher umas vestes de peles, e os vestiu. E o Senhor Deus disse: "Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal” Gênesis 3:21,22
[3] O termo kitsch é de origem alemã e designa a vulgarização de uma ideia, uma tradição, um objeto. Alguns autores definem o termo kitsch como uma atitude, ou um espírito geral de complacência e supressão do senso crítico, que pode se estender aos campos da arte, da política, da religião, da economia, e praticamente toda a esfera da cultura humana. O kitsch acaba se tornando uma ferramenta de modelagem na psicologia das massas, e muitas vezes é usado por formadores de opinião para modelar a opinião pública, na forma de publicidade comercial, educação escolar, propaganda partidária ou proselitismo religioso, .
[4] Referência á metáfora bíblica dos filhos de Adão, Cain e Abel, na qual Cain mata seu irmão pelo fato de Deus ter se agradado mais da oferenda pastoril (gordura de ovelha) que lhe foi feita por Abel, do que da oferenda pastoril(produtos agrícolas) que lhe fez Cain. Essa metáfora, na verdade, tem um sentido político. Ela foi desenvolvida pelos rabinos israelenses para justificar a pretensão do povo de Israel de ser “o povo eleito de Deus”. Abel, no caso, é o povo de Israel e Cain os povos palestinos. Daí os primitivos israelitas chamaram os palestinos da cainitas. Isso porque, enquanto Israel era um povo pastoril (vivia da criação de cabras e ovelhas), os povos palestinos já praticavam uma próspera agricultura. Assim, o pastoreio seria uma atividade econômica abençoada, enquanto a agricultura não era vista com bons olhos. Essa visão seria modificada com os tempos, porquanto, já na época em que Israel se torna uma nação, a agricultura passa a ser uma importante atividade econômica praticada pelos israelitas. Mas nos primórdios da organização dos israelitas como povo, o que se observa é uma acentuada preferência pelo pastoreio em oposição à agricultura. Essa é uma visão bastante natural porquanto o primitivo povo de Israel era nômade e viviam deslocando seus rebanhos para onde os pastos eram favoráveis. A história de Abraão e seus descendentes é um retrato fiel dessa conjuntura.