ENSAIO AO REDOR DE MIM
NUMA CERTA TARDE de minhas andanças, ao dobrar a esquina de uma rua qualquer, vi pelo reflexo de uma vitrina um senhor vestido de um azul cinzento, com fisionomia gasta e ombros encurvados. Como ia desprevenido, quase lhe disse boa tarde, respeitosamente, como em menino fazia vendo passar um professor do ginásio. Mas logo percebi, assustado, que era eu mesmo que levava, debaixo da roupa azulada e sob os ombros encurvados, o peso de ter setenta anos. Sabia perfeitamente que chegara àquela idade e tinha também uma consciência nítida da figura que fazia meu rosto, com meus bigodes embranquecidos.
DA IDADE SABIA de um modo repetido, constante, pelo habitual joguinho de gracejos a propósito da velhice. Até hoje não atinei com a razão de certas idades serem consideradas sob a ótica da pilhéria. Quando somos crianças, todo mundo nos acha jocosos e os adultos trocam risinhos cheios de cumplicidade. Na adolescência, encontramos novamente as gozações em torno de nossos modos desengonçados e sobretudo por causa de nossos pobres ensaios amorosos. Agora, na velhice, mais uma vez somos atingidos pela pilhéria. Eu tenho, pois, consciência vigilante de meus 70 anos. Isso eu sei hora por hora, minuto por minuto. Na rua, nas escolas, nas festas, nas casas de amigos, nas minhas viagens, em toda parte eu carrego a idade. Estou impregnado dela até o incômodo. Mas... Qual foi então o motivo daquele espanto súbito diante de uma vitrina?
CONSULTEI-ME ATENTAMENTE. Queria a explicação, não da tristeza, que seria fácil, mas do espanto. Procurei investigar os momentos imediatos antes do susto. Não me ocorriam os pensamentos que naquela ocasião levava comigo e mal me recordava que estivera assobiando baixinho uma canção antiga. Voltei atrás; repeti a experiência; tornei a passar diante do espelho assobiando baixinho, mas só vi então uma imagem familiar, tendo nos olhos um ardor inquieto de investigação. Pouco tempo depois, em outro lugar, descia por uma alameda, com o intuito de me espairecer após o jantar, quando numa casa clara e com amplo jardim na frente, abriu-se uma janela e do alto veio uma voz moça: “Marcelo, vem para dentro, olha o sereno!”
TAL FATO TROUXE impetuosamente a lembrança de minha meninice na rua Luiz Pereira, região da cidade que na ocasião era chamada de ‘Vila Querosene’, porque a rede elétrica ainda não havia sido instalada por aquelas bandas da minha querida Santana. Era um momento de magia numa noitinha assim; havia no ar brando e suave, uma repetição misteriosa, qualquer concordância sutil que me enchia o peito de ar novo e antigo. Uma janela se abrira com aquele ruído e do alto viera uma voz assim de mãe moça: “Meninos, olhem o sereno!” O sereno também ficara ausente de minha memória, porque hoje ninguém mais alude a esse gênio levemente úmido e um pouco malfazejo que fazia as crianças de meu tempo largarem suas brincadeiras de rua. Quem não terá encontrado por várias e várias vezes a sua infância, assim? Quem não andará, certas tardes, assobiando uma antiga canção pelas ruas, ou ziguezagueando na calçada para não pisar no cimento fresco?
NÃO BASTA DIZER que algumas associações nos fazem encontrar toda uma manhã de sol de uma meninice dentro de uma xícara de chá ou toda uma noitinha no perfume penetrante de um jasmineiro em flor. Essa brusca invasão da infância é mais do que uma evocação, uma espécie de experiência azul que fazemos na memória. De fato, parece que a infância persiste dentro de nós, enrolada como uma espiral de mola, e salta de repente, e assusta, e fere, e dói, quando vemos num reflexo de vitrina um senhor de longa idade. Temos vontade de prevenir em volta, envergonhados, que nosso eu não é aquele lamentável adulto encurvado e vestido de azul-cinzento; temos ímpetos de perguntar aos transeuntes por aquele menino da rua Luiz Pereira ou daquele da avenida Dona Tereza. Onde está ele? Quem o viu? Era um bom menino...
MINHA INFÂNCIA foi livre e feliz, em casa grande, antiga, pintada de azul-claro, com um belo alpendre e um córrego atravessando o quintal. Eu tive um amigo de infância, que era meu vizinho. Ele morava numa chácara, cujos limites davam para o córrego maior, que atravessava a cidade, onde fazíamos dele, o nosso clube de natação. Quase todos os dias, meu amigo e eu, catávamos folhas de bananeira e saíamos pela rua cantando em alto e bom som: “A bandeira de ‘gódia’. O pendão de Jesus Redentor” * Era o hino que cantavam as senhoras sérias de medalhões com fitas vermelhas, nas procissões que íamos com nossas mães. Como adorava aquelas procissões!...
APRENDI A LER nas matinês de domingo, naquela lousa grande e brilhante em meio à escuridão e silêncio. Tabuada, aprendi decorando, enquanto colocava os barquinhos com as folhas roxas que cobriam as flores dos cachos das bananeiras, para navegarem no pequeno córrego da minha casa. Felizmente, minha mãe não tinha lido Rousseau, que a teria talvez convencido de me mandar aprender com as galinhas que cresciam soltas no grande quintal. Meu aprendizado foi livre e gratuito, como os barquinhos a deslizarem pelas águas claras do córrego de minha infância. Mais tarde viriam as primeiras lições de coisas, quando o mundo começava a girar em torno de minha adolescência. Mas, entre todas as coisas havia uma imensa solidariedade porque tudo estava na casa de meu pai.
CADA COISA TINHA nesse tempo o seu próprio direito de existir. Por isso, o mundo, o meu mundo era vasto e muito seguro. O tempo também não existia; ou era uma espécie de dança de todas as coisas. E quando as pessoas dançavam, não deixavam de ser elas mesmas. Quando o teto vinha ao meu encontro, oscilando, crescendo também não deixava de ser teto. O tempo era a regra dum brinquedo enorme: fazia meu pai sair e depois fazia-o voltar. Aliás, o mais certo era dizer que a regra vinha de meu próprio pai. Bastava uma tosse sutil ou um simples limpar de garganta e tudo se tornava silêncio.
TUDO ERA ARBITRÁRIO, o que dava-me uma enorme segurança porque os árbitros eram pai e mãe. Não sentia nenhuma injustiça com as contradições dos adultos, mas um vexame de não ter aprendido uma certa regra, como nos brinquedos de pique ou de roda. Nas horas de estudo, minha mãe não se sentava no chão da nova pedagogia para me ensinar números jogando ‘bugalho’, mas apenas dizia que hora de estudar era hora de estudar. E tinha imensa razão, porque tudo tem seu tempo. Tempo para brincar, tempo para estudar, tempo para comer, e tempo para rezar na hora de dormir. Bicho é que dorme sem rezar. Padre nosso... Onde estaria aquele Pai do Céu?
NUM DOMINGO, à tarde, estávamos brincando debaixo de um caramanchão coberto de maracujás, um pouquinho antes do córrego. Meus dois irmãos juntavam pedrinhas e pedaços de planta. Não conseguia ver direito o que eles estavam fazendo e ficava plantado atrás, encabulado de ser tão pequenino. Quis ajudar, mas só consegui desmanchar o monte que estavam fazendo. Mandaram-me embora, porque eu era sem jeito; fiquei à toa. Então olhei para o céu e vi umas nuvens que pareciam algodão. Eram branquinhas, branquinhas. Com certeza, era atrás daquelas nuvens que estava o Pai do Céu.
“PRA QUE SERVEM AS NUVENS?” – perguntei ao irmão um pouco mais velho que eu e ele disse: “Que bobo! Nuvem não serve para nada!”. Então, o meu outro irmão, já mocinho, disse que tinha ouvido alguém dizer que nuvem serve para marcar hora. E assim o tempo passou... e trouxe você para compartilhar desse ensaio, enquanto eu imagino o espanto que teria ao se deparar com o fantasma que vi refletido naquela vitrina, de uma certa rua de minhas andanças...
Fantasia inspirada no conto “Era um bom menino”, de Gustavo Corção.
Nota - *Levantai-vos Soldados de Cristo!/Sus! Correi! sus! voai à vitória,/Desfraldando a bandeira de glória,/O pendão de Jesus Redentor!
Benevides Garcia – Maringá - PR, tempo atual
NUMA CERTA TARDE de minhas andanças, ao dobrar a esquina de uma rua qualquer, vi pelo reflexo de uma vitrina um senhor vestido de um azul cinzento, com fisionomia gasta e ombros encurvados. Como ia desprevenido, quase lhe disse boa tarde, respeitosamente, como em menino fazia vendo passar um professor do ginásio. Mas logo percebi, assustado, que era eu mesmo que levava, debaixo da roupa azulada e sob os ombros encurvados, o peso de ter setenta anos. Sabia perfeitamente que chegara àquela idade e tinha também uma consciência nítida da figura que fazia meu rosto, com meus bigodes embranquecidos.
DA IDADE SABIA de um modo repetido, constante, pelo habitual joguinho de gracejos a propósito da velhice. Até hoje não atinei com a razão de certas idades serem consideradas sob a ótica da pilhéria. Quando somos crianças, todo mundo nos acha jocosos e os adultos trocam risinhos cheios de cumplicidade. Na adolescência, encontramos novamente as gozações em torno de nossos modos desengonçados e sobretudo por causa de nossos pobres ensaios amorosos. Agora, na velhice, mais uma vez somos atingidos pela pilhéria. Eu tenho, pois, consciência vigilante de meus 70 anos. Isso eu sei hora por hora, minuto por minuto. Na rua, nas escolas, nas festas, nas casas de amigos, nas minhas viagens, em toda parte eu carrego a idade. Estou impregnado dela até o incômodo. Mas... Qual foi então o motivo daquele espanto súbito diante de uma vitrina?
CONSULTEI-ME ATENTAMENTE. Queria a explicação, não da tristeza, que seria fácil, mas do espanto. Procurei investigar os momentos imediatos antes do susto. Não me ocorriam os pensamentos que naquela ocasião levava comigo e mal me recordava que estivera assobiando baixinho uma canção antiga. Voltei atrás; repeti a experiência; tornei a passar diante do espelho assobiando baixinho, mas só vi então uma imagem familiar, tendo nos olhos um ardor inquieto de investigação. Pouco tempo depois, em outro lugar, descia por uma alameda, com o intuito de me espairecer após o jantar, quando numa casa clara e com amplo jardim na frente, abriu-se uma janela e do alto veio uma voz moça: “Marcelo, vem para dentro, olha o sereno!”
TAL FATO TROUXE impetuosamente a lembrança de minha meninice na rua Luiz Pereira, região da cidade que na ocasião era chamada de ‘Vila Querosene’, porque a rede elétrica ainda não havia sido instalada por aquelas bandas da minha querida Santana. Era um momento de magia numa noitinha assim; havia no ar brando e suave, uma repetição misteriosa, qualquer concordância sutil que me enchia o peito de ar novo e antigo. Uma janela se abrira com aquele ruído e do alto viera uma voz assim de mãe moça: “Meninos, olhem o sereno!” O sereno também ficara ausente de minha memória, porque hoje ninguém mais alude a esse gênio levemente úmido e um pouco malfazejo que fazia as crianças de meu tempo largarem suas brincadeiras de rua. Quem não terá encontrado por várias e várias vezes a sua infância, assim? Quem não andará, certas tardes, assobiando uma antiga canção pelas ruas, ou ziguezagueando na calçada para não pisar no cimento fresco?
NÃO BASTA DIZER que algumas associações nos fazem encontrar toda uma manhã de sol de uma meninice dentro de uma xícara de chá ou toda uma noitinha no perfume penetrante de um jasmineiro em flor. Essa brusca invasão da infância é mais do que uma evocação, uma espécie de experiência azul que fazemos na memória. De fato, parece que a infância persiste dentro de nós, enrolada como uma espiral de mola, e salta de repente, e assusta, e fere, e dói, quando vemos num reflexo de vitrina um senhor de longa idade. Temos vontade de prevenir em volta, envergonhados, que nosso eu não é aquele lamentável adulto encurvado e vestido de azul-cinzento; temos ímpetos de perguntar aos transeuntes por aquele menino da rua Luiz Pereira ou daquele da avenida Dona Tereza. Onde está ele? Quem o viu? Era um bom menino...
MINHA INFÂNCIA foi livre e feliz, em casa grande, antiga, pintada de azul-claro, com um belo alpendre e um córrego atravessando o quintal. Eu tive um amigo de infância, que era meu vizinho. Ele morava numa chácara, cujos limites davam para o córrego maior, que atravessava a cidade, onde fazíamos dele, o nosso clube de natação. Quase todos os dias, meu amigo e eu, catávamos folhas de bananeira e saíamos pela rua cantando em alto e bom som: “A bandeira de ‘gódia’. O pendão de Jesus Redentor” * Era o hino que cantavam as senhoras sérias de medalhões com fitas vermelhas, nas procissões que íamos com nossas mães. Como adorava aquelas procissões!...
APRENDI A LER nas matinês de domingo, naquela lousa grande e brilhante em meio à escuridão e silêncio. Tabuada, aprendi decorando, enquanto colocava os barquinhos com as folhas roxas que cobriam as flores dos cachos das bananeiras, para navegarem no pequeno córrego da minha casa. Felizmente, minha mãe não tinha lido Rousseau, que a teria talvez convencido de me mandar aprender com as galinhas que cresciam soltas no grande quintal. Meu aprendizado foi livre e gratuito, como os barquinhos a deslizarem pelas águas claras do córrego de minha infância. Mais tarde viriam as primeiras lições de coisas, quando o mundo começava a girar em torno de minha adolescência. Mas, entre todas as coisas havia uma imensa solidariedade porque tudo estava na casa de meu pai.
CADA COISA TINHA nesse tempo o seu próprio direito de existir. Por isso, o mundo, o meu mundo era vasto e muito seguro. O tempo também não existia; ou era uma espécie de dança de todas as coisas. E quando as pessoas dançavam, não deixavam de ser elas mesmas. Quando o teto vinha ao meu encontro, oscilando, crescendo também não deixava de ser teto. O tempo era a regra dum brinquedo enorme: fazia meu pai sair e depois fazia-o voltar. Aliás, o mais certo era dizer que a regra vinha de meu próprio pai. Bastava uma tosse sutil ou um simples limpar de garganta e tudo se tornava silêncio.
TUDO ERA ARBITRÁRIO, o que dava-me uma enorme segurança porque os árbitros eram pai e mãe. Não sentia nenhuma injustiça com as contradições dos adultos, mas um vexame de não ter aprendido uma certa regra, como nos brinquedos de pique ou de roda. Nas horas de estudo, minha mãe não se sentava no chão da nova pedagogia para me ensinar números jogando ‘bugalho’, mas apenas dizia que hora de estudar era hora de estudar. E tinha imensa razão, porque tudo tem seu tempo. Tempo para brincar, tempo para estudar, tempo para comer, e tempo para rezar na hora de dormir. Bicho é que dorme sem rezar. Padre nosso... Onde estaria aquele Pai do Céu?
NUM DOMINGO, à tarde, estávamos brincando debaixo de um caramanchão coberto de maracujás, um pouquinho antes do córrego. Meus dois irmãos juntavam pedrinhas e pedaços de planta. Não conseguia ver direito o que eles estavam fazendo e ficava plantado atrás, encabulado de ser tão pequenino. Quis ajudar, mas só consegui desmanchar o monte que estavam fazendo. Mandaram-me embora, porque eu era sem jeito; fiquei à toa. Então olhei para o céu e vi umas nuvens que pareciam algodão. Eram branquinhas, branquinhas. Com certeza, era atrás daquelas nuvens que estava o Pai do Céu.
“PRA QUE SERVEM AS NUVENS?” – perguntei ao irmão um pouco mais velho que eu e ele disse: “Que bobo! Nuvem não serve para nada!”. Então, o meu outro irmão, já mocinho, disse que tinha ouvido alguém dizer que nuvem serve para marcar hora. E assim o tempo passou... e trouxe você para compartilhar desse ensaio, enquanto eu imagino o espanto que teria ao se deparar com o fantasma que vi refletido naquela vitrina, de uma certa rua de minhas andanças...
Fantasia inspirada no conto “Era um bom menino”, de Gustavo Corção.
Nota - *Levantai-vos Soldados de Cristo!/Sus! Correi! sus! voai à vitória,/Desfraldando a bandeira de glória,/O pendão de Jesus Redentor!
Benevides Garcia – Maringá - PR, tempo atual