Heurística da Finalidade - O que é arte

ESCOLHA CONFORTÁVEL

Em um natal há muitos anos a minha prima mais obesa disse que quando eu tivesse a idade dela teria o mesmo peso que ela. Uma a uma as pessoas da sala foram concordando. Até hoje lembro das pessoas dizendo, cada uma a sua vez, “Também acho.” Foi uma experiência marcante. Daí fiz minha primeira dieta - por conta própria e sem orientação, como todas as decisões envolvendo minha saúde. A dieta consistia em deixar de comer chocolate. Minha mãe ficou impressionada. Até pouco tempo atrás ela ainda falava comigo a respeito daquela época. Fui rigoroso e a dieta deu resultado. Teria sido muito bom se eu tivesse a mantido para sempre. O cuidado com minha forma física oscilou, mas a alguns anos tenho estado atento a exercícios e a excessos em alimentação. Fiquei relativamente em forma. Ficava irritado quando atribuíam minha forma à minha genética. De vez em quando eu saía com um colega do banco e ele dizia, assustado com quanto eu comia, “Nossa, Chico, não entendo como eu (não você) é que sou o gordo. Olha o tanto que você come!”. Expliquei muitas vezes a ele que eu só como nas horas das refeições (ele sempre come o que tiver ao alcance de suas mãos) e que eu escolho com critério o que como. Só virei vegano anos depois desta conversa, mas mesmo àquela época eu fugia de creme de leite, só comia alimentos completamente industrializados em momentos especiais (por exemplo, ao ver filme com a namorada ou aos domingos na casa da vó) e procurava comer proteína. Ele acreditava que era obeso e eu em forma por condições biológicas, especialmente por idade e por genética. Custei a fazê-lo entender que minha forma física é fruto das minhas escolhas e da minha disciplina. Atualmente sou três anos mais velho do que quando tivemos estas conversas, também sou quase dez quilos mais leve. Alguns fatores estão fora do nosso controle, outros são frutos de nossas decisões. Nem sempre é fácil distinguir uns dois outros. Meu colega achava que era gordo principalmente por fatores que estão fora do seu controle. É uma crença confortável.

HEURÍSTICA DA FINALIDADE X CONFORTO COGNITIVO

Aqui se faz necessário afirmar que o conforto ao qual me refiro no parágrafo anterior é diferente do conforto cognitivo (conceito usado pelo Daniel Kahneman no livro Rápido e Devagar). O conforto de escolher uma crença com o critério de ela chegar à conclusão que me favorece é a heurística de finalidade. O conforto cognitivo, do Kahneman, se refere à familiaridade da crença. Ao nos depararmos com uma crença familiar, habitual, a aceitamos sem esforço (o que é o conforto cognitivo). Para Kahneman o desconforto cognitivo vem ao nos depararmos a um pensamento novo, tal pensamento demanda esforço para ser analisado criticamente. O conforto cognitivo é o sentimento que nos faz optar por uma crença que já temos em detrimento a uma nova. Ou seja, tanto na heurística da finalidade como no conforto cognitivo a pessoa está escolhendo sua crença por mecanismos diferentes do pensamento racional. O que distingue as duas é que na heurística da finalidade o critério para escolher o argumento como verdadeiro é sua conclusão ser favorável ao que eu quero; no conforto cognitivo o critério para escolher um argumento como verdadeiro é ele manter intacto meu sistema de crenças.

PENSAMENTO LÓGICO

Através do pensamento lógico partimos de premissas e chegamos a conclusões. Se as premissas forem verdadeiras e o cálculo seguir as regras lógicas (ou seja, se o cálculo for válido) a conclusão será verdadeira. Todas as vezes que a Luciana se serve de café com a garrafa azul ela derrama umas gotas na mesa. Luciana se serviu de café com a garrafa azul. Logo Luciana derramou umas gotas de café na mesa. No pensamento lógico as regras que levam das premissas às conclusões são claras, decodificadas em regras explícitas. O pensamento lógico é um spitz alemão adestrado: um cãozinho de madame que faz o que lhe é ensinado a fazer, mas que seria de pouca ajuda para sobreviver na floresta. Em contraste existem maneiras de pensar pouco adestrados e selvagens, mas que em situações da vida prática são mais úteis.

PENSAMENTO RACIONAL ENGLOBA PENSAMENTO LÓGICO

O pensamento lógico é racional, parte de premissas e segue regras claras para chegar à conclusão. Entretanto usando estritamente as regras lógicas é impossível acessar o mundo empírico. A regra lógica-matemática é clara, um mais um igual a dois. Mas no mundo empírico, se somarmos uma gota de água a outra gota de água o resultado será apenas uma gota de água (com massa equivalente à soma da massa de cada uma das gotas originais). Depois de alguns minutos o resultado poderá ser zero gotas (se a gota evaporar). Farei um ensaio apenas para falar do pensamento racional em breve.

LIMITAÇÕES AO PENSAMENTO RACIONAL

No livro ‘Rápido e Devagar - Duas Formas de Pensar’ Daniel Kahneman defende que tomar uma decisão com bases racionais é algo muito trabalhoso. O esforço é tanto que as pupilas se dilatam, o coração passa a bater mais rápido. Entretanto é no livro do Dan Ariely que a descrição da dificuldade do pensamento racional se dá de maneira precisa. Ariely diz que a maneira racional de usar o dinheiro é comparando o preço do que vamos comprar com o valor de tudo que estamos deixando de gastar (custo de oportunidade). Ao decidir comprar um mamão que custa quatro reais devo pensar no valor que este dinheiro teria para minha aposentadoria, deveria pensar em quantas bananas eu poderia comprar, em quanto eu poderia estar economizando para comprar um imóvel ou na cerveja que eu poderia comprar na saída de sexta à noite. O esforço de tal comparação é proibitivo. Se a cada compra fizéssemos os cálculos referentes a tudo o que poderíamos fazer com estes quatro reais ficaríamos paralisados mesmo na compra das coisas mais baratinhas. E isto que falamos apenas do cálculo financeiro. Imagine se também computássemos o efeito de cada escolha na saúde, no tempo consumido, no prazer, ou seja, em todas as variáveis envolvidas em cada escolha! O cálculo seria infinito!

HEURÍSTICAS

Ao invés de fazer todos os cálculos que uma escolha racional demanda nos valemos de atalhos de pensamentos. Tais atalhos são as heurísticas. São os raciocínios que usamos (em detrimento do pensamento racional) para tornar nossa vida mais fácil. Por exemplo, na compra do mamão eu poderia (ao invés de pensar em todos os gastos que poderia fazer) pensar apenas no preço de um só produto: o mamão que comprei na semana passada. Outra artifício que posso usar (para ter algum controle sobre meus gastos sem ter que fazer todos os cálculos que o pensamento racional exige) é criar uma contabilidade mental. Por exemplo, posso gastar apenas 200 reais com alimentação por semana. As heurísticas são escolhas irracionais, mas viabilizam nossa vida ao nos poupar de cálculos dificílimos que uma escolha racional exigiria. Várias heurísticas foram estudadas, cada uma recebe seu próprio nome. Existem um livro de mil páginas que descreve diversas delas. Até pensei em ler o livro (Heurísticas e Viéses - Heuristics and Biases) antes de escrever este ensaio. Mas fiz a escolha (irracional?) de nunca deixar de escrever por não ter lido alguma coisa - sempre há algo importante a ser lido em cada campo em que escrevo!

ESCOLHENDO A CRENÇA COM BASE NO RESULTADO

Dan Ariely promoveu um experimento entre eleitores do Partido Republicano nos EUA: para metade das pessoas ele descreveu os problemas ambientais e ecológicos, depois disse que a solução seria a intervenção do Estado. Para a outra metade ele descreveu os mesmos problemas ambientais, mas disse que a solução seria a ausência do Estado, a livre iniciativa e o empreendedorismo. Depois perguntaram qual a importância do problema ambiental para a humanidade. Tenho certeza que este experimento foi realizado antes da eleição de Donald Trump, período em que os republicanos tradicionalmente eram ligadas ao Estado mínimo. Os republicanos a quem foi explicado que a saída para os problemas ambientais era atuação do Estado disseram que o problema ambiental era de pouca importância. Por outro lado, os republicanos a quem foi dito que a solução do problema ambiental passava por empreendedorismo e por menos Estado disseram que o problema ambiental era de grande importância. Ou seja, um critério forte para decidirem acerca da existência de um problema (no caso o problema ambiental) é o tipo de solução que ele implica. Se a solução vai de acordo com os próprios valores (no caso o Estado mínimo) então o problema existe. Caso a solução seja contrária aos próprios valores então o problema não existe. Vários médicos me proibiram de jogar futebol, continuei jogando (e me contundindo). Um dia um fisioterapeuta me disse que o meu problema era que eu jogava pouco futebol. Eu deveria jogar ao menos três vezes por semana (para fortalecer os músculos envolvidos). Segui este fisioterapeuta, ele certamente sabia do que estava falando!

TABUS

As conversas às vezes levam a assuntos em que emitir alguma opinião faz com que o nosso interlocutor nos veja como o demônio encarnado. Sabendo desta reação, por medo da retaliação social (geralmente implícita) evito o tema. Nestas situações estou incorrendo em um tabu. Claro que o tabu se dá de acordo com o grupo com o qual conversa. No primeiro grau aprendi que devo evitar falar que sou ateu, as consequências sociais são pesadas. Na faculdade o grande tabu que me inculcaram foi o da responsabilidade fiscal. Quando eu o defendia meus amigos e colegas (todos de esquerda) me olhavam como se eu fosse o próprio agente do imperialismo americano encarregado de destruir o SUS (Sistema Único de Saúde). Outro tabu forte é o papel da genética na constituição das pessoas. Tente conversar sobre as correlações entre a biologia e a constituição da pessoa. Por exemplo, qual o papel da genética no QI? Qual o papel do gênero biológico na constituição das pessoas? Outro tabu: qual o papel da educação superior no desenvolvimento social e econômico de um país? Será justo o Estado financiar o ensino superior? No meu meio as pessoas assumem como pressuposto que o ensino superior gratuito e de qualidade é um direito de todos. Já vi diversas críticas a ideia de que o Estado deve financiar o ensino superior. Uma das críticas é de que este se torna um mecanismo de transferência de renda do pobre para a classe média - pois o ensino superior é frequentado pela classe média, mas quem paga proporcionalmente mais impostos são os mais pobres. No livro do Nassim Nicholas Taleb (Antifrágil - Antifragile) vi uma sugestão radical, a de que o ensino superior não leva ao desenvolvimento de um país. Taleb diz que correlação nem sempre é causalidade. Para descobrir se uma variável é causa da outra basta ver qual variável vem primeiro. Taleb diz que países desenvolvidos são educados. Entretanto Taleb defende que o desenvolvimento vem antes da educação superior, portanto a riqueza é causa da educação (o inverso do que somos educados a acreditar). É uma hipótese que merece ser investigada, mas quem a investigará? As universidades tradicionalmente se encarregam deste tipo de pesquisa, mas serão elas suficientemente isentas para fazer uma pesquisa que possivelmente ameaça os investimentos que ela recebe? A leitura do livro do Taleb me levou a pensar a educação superior de uma maneira diferente e foi a motivação para escrever este ensaio. Sou um artista e um filósofo da arte, sempre parti do pressuposto que a arte traz benefícios. Agora me pergunto, quais serão os efeitos colaterais da arte? Será que eles suplantam os efeitos benéficos?

HEURÍSTICA DA FINALIDADE

O pensamento racional obedece a regras claras. As premissas vem primeiro, a partir de uma série de etapas (que devem obedecer a uma sequência pré-estabelecida) elas levam a uma conclusão. A heurística da finalidade se caracteriza por inverter este processo. Ao invés das premissas levarem à conclusão a conclusão leva às premissas. O único profissional da saúde em que confiei foi aquele que deu o prognóstico que eu queria, jogar mais futebol! Amo queijo. Quando virei vegetariano (antes de virar vegano) vi uns estudos que defendiam a gordura saturada como benéfica e concluí: queijo é o melhor substituto da carne!! Heurística da finalidade consiste em atribuir a verdade de uma crença com base na sua consequência (jogar mais futebol, comer mais queijo). O racional seria escolher uma crença em função da verdade das premissas e da validade do cálculo que leva às conclusões. Os exemplos que dei (e que vivi) são de escolhas em crenças que favorecem meu conforto como indivíduo. O conforto cognitivo vem de acreditar que o que eu gosto é o melhor para mim. Entretanto diversas heurísticas são em função do meu grupo a que pertenço, neste caso o conforto cognitivo vem em acreditar em algo que reforça o que os valores do grupo a que pertenço.

HEURÍSTICA DA FINALIDADE - AUTOCENTRADA X COLETIVA

Somos indivíduos, como tal a heurística da finalidade pode ser orientada pelo conforto cognitivo pessoal. Entretanto somos também parte de uma família, de um grupo de amigos, de uma classe profissional, de uma igreja… Assim, da mesma maneira que o conforto cognitivo pode vir orientado por desejos pessoais, pode também ser orientado por desejos coletivos. Digamos que você faça parte de uma comunidade feminista. Talvez venha a aceitar qualquer estudo que mostre as similaridades biológicas entre os gêneros e venha a descartar qualquer estudo que mostre diferenças biológicas entre os gêneros. Se o critério para a aceitação de um estudo é o seu resultado (ao invés de suas premissas e consistência da argumentação) então o que se dá é a heurística da finalidade. Caso o conforto cognitivo se dê por conciliar a crença a um resultado que me traga conforto pessoal (comer queijo, jogar futebol) então a heurística da finalidade é do tipo autocentrada. Caso o conforto cognitivo se dê por conciliar a crença a um resultado que traga conforto à minha comunidade (aceitar apenas resultado científicos que mostrem as similaridades entre os sexos) então temos a heurística da finalidade coletiva.

HEURÍSTICA X FALÁCIA

Como David Hume deixou claro o pensamento completamente racional é impossível - escreverei um ensaio a respeito da racionalidade possível em breve. Daniel Kahneman mostra que mesmo a racionalidade possível é extremamente custosa (em termos de tempo e esforço). Assim nos valemos de desvios da racionalidade possível para tornar nossa vida possível. Tais desvios são as heurísticas. Ao tomar uma decisão temos um objetivo consciente (mesmo que hajam diversos objetivos inconscientes, às vezes mais poderosos do que o consciente). Quando as opiniões decorrentes do nosso pensamento nos levam ao mesmo sentido que a nossa intenção racional o pensamento é heurístico. Quando as opiniões decorrentes do nosso pensamento leva a um sentido contrário à nossa intenção racional o pensamento é falacioso. A falácia pode ser um mero erro de cálculo, mas também pode ser um artifício intencional para manipular outros a se posicionarem de acordo com o interesse de quem proferiu a falácia.

A RAZÃO DA ARTE

Um artista pode até estar preocupado em passar determinada mensagem, pode até usar as regras da sintaxe e da ortografia para escrevê-la literalmente. Mesmo que a mensagem literal esteja na obra de arte (em um livro, por exemplo) a pessoa que aprecia a obra pode recusar a mensagem e ainda assim gostar da obra. A arte (tal qual a defino) tem uma face dupla, por um lado, para ser entendida, é necessário intersubjetividade (regras comuns entre quem produz a arte e quem a consome); por outro lado, para promover a experiência artística (ahá artístico) é necessário que haja também elementos subjetivos (novos para quem consome a obra). A arte é rebelde ao pensamento racional, mas afeita ao pensamento empático. No livro Hit Makers seu autor, Derek Thompson, defende que através de repetições artistas conseguem fazer com que uma ideia seja mais facilmente aceitas como verdade. Assim torna-se o veículo perfeito para criar heurísticas (que são pensamentos orientados pela emoção).

CONCLUSÃO

Em regra o nosso pensamento é heurístico (guardamos o pensamento racional para situações extremas). Ao usá-lo há o risco de escolhermos a maneira de pensar (a heurística em particular) com o objetivo de nos manter no nosso conforto. Uma das maneiras de isto acontecer é através da heurística da finalidade, em que o critério para a aceitação da verdade é de acordo com as consequências do pensamento me favorecerem. Quando o favorecimento é pessoal (me permitir jogar futebol) é a heurística da finalidade autocentrada. Quando o favorecimento é do meu grupo (aceitar apenas resultados científicos que favoreçam a minha crença) a heurística é da finalidade coletiva. Os tabus, neste sentido, são uma pressão coletiva no sentido de obedecermos a heurística da finalidade coletiva. A arte, com sua lógica empática, é um bom veículo para transmitir conhecimentos heurísticos.