QUADRO DA MINHA VIDA LEITORA
A velha estante de madeira, parte da decoração da sala, em desarmonia com o restante da mobília, não guardava nenhum paradidático. Havia, sim, alguns livros, mas nada que me despertasse o interesse, pois sequer me lembro do nome de qualquer um deles. Recordo-me, vagamente, de uma coleção de três livros de capas azuis, do tipo enciclopédia, para pesquisas escolares. Nesses, cheguei a ler alguma coisa superficialmente, mas o que eu gostava mesmo era de passar as páginas para ver as figuras, em especial as do corpo humano.
Diante da falta de livros em casa, o acesso ao primeiro que li se deu numa época em que eu convivia com a filha do patrão de minha tia, a empregada doméstica. Ali eu via um mundo distinto do meu, em que as condições dos habitantes da casa eram diferentes daquela em que vivíamos, minha família e eu. (Mas isso é enredo para outro texto, o importante é que a “sobrinha da dona Maria” teve sua primeira experiência leitora).
O livro era “Lúcia já vou indo”, de Maria Heloísa Penteado. Lúcia era muito lenta, levava demasiado tempo para fazer o que fosse. Quando chorava, derramava uma lágrima por hora. E foi devido à sua vagarosidade em tudo, que perdeu a festa debaixo do pé de maracujá, para a qual havia sido convidada pela libélula Chispa-foguinho. Como em toda boa história, a lesma teve um final feliz, quando, diante de sua tristeza, a amiga libélula teve uma ideia: organizar uma festa à qual ela não chegasse atrasada. A festa seria na casa de Lúcia!
Outro livro que me marcou foi “Dizem que os cães veem coisas”. Eu estava na tentativa de adquirir o hábito leitor. Gostava (gosto) muito de escrever, mas não tinha leitura suficiente, o que entendi bem depois, na idade adulta. A obra, de Moreira Campos, me pareceu ideal para meu recomeço leitor, por constar de contos curtos, e interessantes, o que facilitaria a leitura. Li e reli o livro. É fantástico!
“A mensageira das violetas”, de Florbela Espanca, escritora portuguesa, foi um livro de bolso que ganhei (de uma pessoa muito querida). Até então, não conhecia a autora. Conhecia o poema “Fanatismo”, mas pela voz do Fagner, só depois soube da autoria da composição magnífica. Do que li no livro, “Eu” foi o que mais me tocou, por me identificar muito com a autora. Na época, eu vivia um amor “impossível” e era mais dramática do que sou hoje, então me encontrei nos escritos de Florbela. Um trecho do poema diz: “Sou talvez a visão que alguém sonhou. Alguém que veio ao mundo pra me ver, e que nunca na vida me encontrou!”. Pois é.
Em momento posterior, li “O amor nos tempos do cólera”, do escritor colombiano Gabriel García Márquez (Gabo, para os íntimos), influenciada pela professora Benigna, que, ao sugerir a leitura, demonstrava todo seu encantamento pelo livro. A história do amor impossível de Florentino Ariza e Fermina Daza é um romance daqueles fascinantes. Devotamente apaixonado, Florentino, apesar dos desencontros, 51 anos, nove meses e quatro dias depois, reitera suas juras de amor a Fermina em sua primeira noite de viúva.
Na Universidade, aos 35 anos de idade, numa aula de Literatura, detida pela minha ignorância frente a um debate sobre a temática “traição” no “Dom Casmurro”, entendi o quanto eu havia perdido por falta dessa leitura. E falo de conhecimentos vários, além da oportunidade de participação e protagonismo. A leitura é inclusiva!
Até então, eu não conhecia Bentinho nem sua história. Já Capitu, eu só conhecia a personagem interpretada por Giovanna Antonelli, em “Laços de Família” (2000), filha de um intelectual que revisava livros para Miguel (Tony Ramos), dono da Livraria “Dom Casmurro”. Foi então que aprendi sobre intertexto e que quanto mais se lê, melhor se lê. Mas, apesar de ter citado esse livro, o interesse por Machado de Assis foi maior ainda pela necessidade de leitura de “Helena”, para apresentação do meu primeiro seminário na Universidade. Amei a leitura! Vivi todas as emoções da moça caprichosa, de 17 anos, protagonista da história, que acabou conquistando tia Úrsula e toda a família. A reviravolta é muito envolvente!
Aos poucos fui fazendo outras leituras e cada vez mais me envolvo com os livros, minha paixão. Hoje tenho meu próprio acervo, numa estante diferente daquela da infância, que guarda Machado, Florbela, Gabo, Moreira Campos, Cecília Meireles, Drummond, Cervantes, Neruda, Clarice Lispector, Saramago, Anais Nin, Voltaire, Vinícius de Moraes, e tantos outros.
Minha estante é meu patrimônio! E quero ler tudo e um pouco mais, para me sentir preparada para mediar leituras e contribuir com a formação de outros leitores, porque acredito no poder de transformação que a leitura promove.
Igualmente importante é minha estante interior, na qual guardo todas as experiências de leituras e as aprendizagens que me renderam, contribuindo de forma relevante para minha formação. Além do ganho na escrita, pois hoje me sinto mais confortável ao escrever.
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Esse texto é um exercício do Curso Formação de Mediadores de Leitura, cuja proposta era que voltássemos no tempo, na estante da memória, para montagem do “quadro da sua vida leitora”. Fica a sugestão para você, leitor!