Caixa preta

Caixa preta

“Tudo bem. Nenhuma pista sobre tua morte. Tipo crime perfeito. Precisa ver. Os perplexos seguem as pegadas duma tal fama assassina que devora seus filhos. Os nascidos nos anos 40 já acham que tá é passando um flautista, convocando a geração “da gente” (Ri! Ri! Ri!). Os legistas shibatam tuas vísceras à cata de comprimidos e tóxicos.
Tu despistou todo mundo. Mas eu, eu encontrei a caixa-preta. E vou abrir: Nós homens te matamos, mulher. Você dobrou tua voz e venceu. Dobrou teus negócios e venceu. Dobrou tua consciência política e venceu. Quis ser mulher livre e perdeu… Nós homens te exigimos alta, linda e gostosa. Nós homens te espancamos a murros e pontapés uma, duas, dez vezes. Nós homens te obrigamos a lavar roupa e cozinhar pra nos sustentar. Nós homens te forçamos a se humilhar diante do teu povo, cantando de joelhos o hino nacional. Aí, nós homens, sem perguntar, te enterramos no cemitério dos mortos-vivos do Caboco Mamadô. Nós homens te exibimos em churrascarias. Nós homens te vestimos de azul, vermelho, branco, roxo, amarelo, preto e cortamos teu cabelo curtim feito Joana d”Arc. E você só queria namorar nós homens. Mas nós homens não conseguimos namorar uma mulher livre. Perplexos, quarentões e médicos-legistas! Podem suspender as diligências. Tá na caixa-preta: fomos nós, homens.”
Henfil Sreet

Segundo o artigo 7º da Lei nº 11.340/2006 são formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;


Abrir ou achar a caixa preta. Uma metáfora perfeita para muitas das respostas para o que a mulher ainda, em pleno século 21, enfrenta. Acima, lê-se a carta escrita por Henfil, o famoso cartunista, irmão de Betinho, uma das muitas vítimas da ditadura militar.
Terminando de assistir à minissérie global “Viver é melhor que sonhar” sobre a vida da grande e monumental cantora brasileira Elis Regina e vivida pela talentosa atriz Andreia Horta, o que fica é uma mensagem a nós mulheres.
Abomino julgamentos em qualquer circunstância.
Vivi essa morte e ela não é mais triste do que qualquer outra, especialmente em idade tenra como foi a dela. Chorei sua morte. Senti seu calvário como mulher que sou. Ela não viveu a época da Lei Maria da Penha. Ela gritou um grito abafado pela ignorância de quem com ela se relacionou.
Entre tantas Marias, ela foi uma, como há muitas ainda, infelizmente.
Ainda lemos todos os dias tristes notícias de feminicídio. Na maioria das vezes quem mata é o companheiro que não aceita a rejeição. Não aceitam um não de mulher.
Elis era artista, tinha notoriedade, fama, e não soube lidar com o machismo, com a censura social, além da censura política. Lutou para ser ela mesma, contra tudo e contra todos. Deixou um recado: mulher, seja você mesma! Abra a boca e se se sentir ultrajada, humilhada, grite, denuncie, imponha-se, empodere-se!
Quis mostrar, em anos de chumbo, que mulher tem seus direitos. Foi pioneira midiática ao tentar refrear a censura e falar com sua voz de princesa. Foi pimentinha, ardida e saborosa. Foi e sempre será Elis.
Silvinhapoeta
Enviado por Silvinhapoeta em 12/01/2019
Código do texto: T6548926
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