O trágico do humano
O trágico do humano
Por Pe. Jorge Ribeiro
www.pjribeiro.blogspot.com
jorgeribeiroribeiro@gmail.com
Qual o sentido e o valor da existência humana? Ela tem um significado por si mesma ou precisa estar escavando razões? Toda essa inconsistência e descontinuidade da condição humana aporta um “que” de trágico, de provocador, de instigante, de emocionante, de depredador. O descontrole do futuro, a incerteza da vida, a dramaticidade da morte. Nesse terreno movediço pode se ver algo além da permissividade da própria vida? Estava lendo uma meditação sobre o Evangelho, na morte dos inocentes, encontrei uma frase que me inspirou ensaiar esse texto, o qual dizia entre outras coisas: Onde aparece o trágico do humano, Deus está ensaiando a manifestação de sua glória (Padre OTACIO GUEDES, Reflexão 28.12.2018). Como reconhecer nas vicissitudes drásticas algo que possa se revelar como positivo? O trágico se configura quando a pessoa se dá conta que o existir é indomável e ai se declara: Isso é a vida! Afirmação trágica e ao mesmo tempo inexorável da existência humana. Por um lado pode se cair no marasmo e na mesmice e não lutar mais e deixar as coisas acontecerem ou viver na tensão entre o tangível e as possibilidades que se abrem.
É inegável e também inexplicável as regiões sombrias do destino humano, assim como coisas que se advém sem aparentes causas. Interrogativos que localizam a condição humana entre o humano e o divino, no meio, entre as trevas e a luz. O trágico de ser e não-ser, de pertencer a dois mundos, ter de conviver como cidadão que sonha e não ver realizar seus sonhos. Essa ferida na condição humana é o trágico do existir, que foi delineado e cantarolado pelos antigos gregos: quando a vida se apresenta como exuberância, ai a morte faz sua visita! No mundo contemporâneo, ocidental, em que a liberdade aparece como maior dom e conquista e sinal da dignidade da pessoa, essa também é trágica, onde cada escolha livre requer compromisso e responsabilidade. A sonhada autonomia não pode conviver com acordismos ou comodismos, quer dizer que “vivemos numa civilização na qual o ser humano troca suas possibilidades de liberdade por uma segurança ancorada na ordem social” (TESE: Silva, p. 308), onde a recusa da tragicidade se coincide com a negação da própria estrutura humana. Querer aniquilar o trágico da condição humana é usurpar da existência o imprevisível que lhe garante autotranscedência, mistério e felicidades.
O poeta da perplexidade torneou em um dos seus textos essa realidade complexa e constitutiva da condição humana. Afirma entre relampejos de sabedoria que: “Temos que aprender a desaprender para afinal, talvez muito mais tarde, alcançar ainda mais: mudar de sentir. Os maiores acontecimentos e pensamentos são os que mais tardiamente são compreendidos: as gerações que lhe são contemporâneas não vivem tais acontecimentos, na sua vida passa por eles. Aqui acontece algo como no reino das estrelas. A luz das estrelas mais distantes é a que mais tardiamente chega aos homens; e antes que chegue, o homem nega que ali – haja estrelas. De quantos séculos precisa um espírito para ser compreendido?” (Friedrich NIETZSCHE Para Além do Bem e do Mal (1885-1886/ 1983). Compreender o porque da vida? Apenas com a experiência de aprender a aprender ou descontruir manias de estabilidade e segurança, a vida é incerta. A felicidade, se essa é possível, cabe somente a quem seja capaz de ultrapassar o formalismo e codificador sistema que impõe trajetos e delineia rotas do permitido e do aceitável.
A deseducação ou banalização de conceitos e realidades invertem muitos dos integrantes da estrutura da pessoa e do mundo. Pode se dizer que: “Nos dias de hoje, “tragédia”, em seu conceito vulgar (senso comum), remete a uma “coisa ruim” a um “desastre” sempre presente nos noticiários televisivos e nos jornais e revistas: uma espécie de banalização da experiência cultural do trágico, em seus primórdios. O significado do fenômeno trágico é bem outro: ele envolve a compreensão da existência humana em toda sua profundidade e complexidade, bem distinta da superficialidade inerente ao conceito vulgar (Tese: O TRÁGICO COMO CONDIÇÃO DO HUMANO: Ressignificação da tragédia na história da civilização ocidental. Francisco da Cunha Silva. Florianópolis: UFSC, 2009, p. 21). O trágico não é o malévolo da condição humana, mas o que lhe oferece densidade e arrojo. A vida sem o seu bojo trágico é incompreensiva, pois seria desenhada, arduamente planejada e sem surpresas. Diversamente, o trágico que inculca torturas pela sua inconsistência e revela o caráter fugidio da existência humana, ao mesmo tempo carrega consigo entusiasmo, vontade de superação e constante desejo de ser o que se pretende.
Essa reflexão quer expressar que apesar de que “o homem trágico vive na tensão extrema entre os contrários, eleva-se do sim e não confusamente misturados ao sim e não claros e claramente mantidos na sua oposição” (Maurice BLANCHOT, apud FIGUEIREDO, V. A permanência do trágico. In: ALVES JÚNIOR, D. G. (org.) Os destinos do trágico: arte, vida, pensamento. Belo Horizonte: Autêntica/FUMEC, 2007, p.141). Essa fragilidade e inconstância não são defeitos e nem sinais de bipolaridade, mas incidência de uma estrada que deve ser construída e percorrida sem pretensão de chegada. É o próprio caminho o motivo do caminhar. Constatando que toda pessoa enquanto lógica é paranóica, essa paranoia, devido aos desastres dos tempos modernos isso é ainda mais acentuado, pois isso vem vinculado às ideologias, ao pessimismo, ao masoquismo, ao sadismo, dai a dificuldade num quadro assim efetivado para permitir que o trágico seja sua referência existencial. O mestre Nietzsche afirma categoricamente que “o homem prefere ainda querer o nada, a não querer"; e aqui está a tragicidade e a dramaticidade da condição humana, querer e querer. E ele acrescenta no seu Para Além do Bem e do Mal, a "imbecil inadvertência e venturosa confiança das 'idéias modernas'", bem como "toda a moral cristã - européia” que ele satiriza como uma "moral de animal-de-rebanho (NIETZSCHE, F. W. O nascimento da tragédia no espírito da música. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 7-28. Coleção Os Pensadores). A subserviência não é serenidade de espírito e nem estabilidade dos dias vindouros, mas a negação da condição humana como tal.
Para finalizar esse ensaio, cabe a pergunta: a fé não tem esse teor de aplacar a tragicidade da condição humana, prometendo uma solução para seus dramas? A fé se configura como submissão ou alienação somente quando reduzida a moral de rebanho. Do outro lado, “a Fé como um sentimento que pode ser acossado pela dúvida e permeado por uma inquietante indagação sobre o sentido da dor, do sofrimento e da morte” (TESE: Silva, p.304), reelabora a dramaticidade da condição como situação da pessoa no mundo. A explicação pode ser outra, mas a intensidade da experiência é carregada pela mesma tensão.