O que é arte - Envelopando o Espírito do Tempo

“Desde pequenos nós comemos lixo

Comercial e industrial

Mas agora chegou nossa vez

Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês

Somos os filhos da revolução

Somos burgueses sem religião

Somos o futuro da nação

Geração Coca-Cola”

Renato Russo

DO ROCK PARA O SERTANEJO

Quando eu era adolescente Brasília ainda era a capital do rock. Os bares e quase todas as alternativas de diversão fechavam cedo. Tudo bem, sempre havia a alternativa de irmos tocar violão e tomar vinho na Esplanada dos Ministérios. O Hideki já deixava uma garrafa no carro, às vezes íamos sem violão. Havia uma boa chance de encontrar uma roda e nos enturmarmos. Aos poucos esta tradição foi morrendo. Conspirou para isto o medo de assalto, de sequestro; antes a violência não apresentava ameaça a um grupo de adolescentes tocando na rua às duas da manhã. Mas certamente há outras causas mais fortes: as tradições mudaram. Boates ficam abertas até tarde, festas criadas por empresas especializadas viram várias noites seguidas à beira do lago Paranoá. Mas especialmente: o rock perdeu lugar para o sertanejo. Antes se ouvia sobre busca de sentido (Geração Coca-Cola, Ideologia), sobre os valores que um jovem vai assumir ou questionar, falava-se da jornada da vida (Faroeste Caboclo, Melô do Marinheiro). Atualmente se fala em diversas abordagens sobre desilusões amorosas: sobre a causa da desilusão, a partir da perspectiva de quem traiu (Traí Sim), de quem foi traído, sobre a conciliação de um casal (Tô Voltando). O que cria o sucesso? O que faz da arte atual?

OBRA DE ARTE PERTINENTE

Uma obra de arte pertinente nos atinge. O que atinge a cada um de nós varia, entretanto a obra pertinente a cada um de nós tem dois elementos. Um deles é algo novo, algo que desconhecemos e que a obra nos apresentará. O outro elemento é algo que conhecemos. Este lado familiar é o que permite que a obra seja inteligível. Precisamos ser alfabetizados para entender como as letras se associam para formar palavras, como as palavras se associam para formar frases, como as frases criam sentido. Este primeiro elemento de familiaridade é essencial, mas insuficiente para uma leitura rica de um texto. Ao lermos um romance nossa capacidade de apreensão da obra é muito maior se conhecemos alguma das emoções que a protagonista vive. Se já vivemos uma paixão é mais fácil nos identificarmos com a protagonista perdida de amor. O conhecimento que nos permite desfrutar de uma obra pode ser da história toda. Ao concorrer no concurso Sófocles uma vez contou a história ‘Édipo Rei’. Todo ateniense conhecia a história, uma lenda famosa. Ainda assim (ou por isto mesmo) a obra ficou em segundo no concurso de teatro. Neste caso o enredo da história é o elemento comum para a apreensão da obra. O espectador pode usar o elemento que conhece (a história) como veículo para prestar atenção à narrativa. É o que acontece quando estamos envolvidos em um texto e nos deparamos com uma palavra desconhecida, apenas pelo contexto apreendemos o seu significado. Ou seja, pela história (elemento conhecido) aprendemos um semântica da palavra.

NICHO CULTURAL

No meio ambiente, ao invés de se distribuírem uniformemente as espécies se concentram em lugares propícios às suas características: um peixe ficará em um rio, uma orquídea nascerá no alto de uma árvore e uma onça caminhará vários quilômetros em terra em busca de alimento. A um conjunto de variáveis que impactam a existência de determinada espécie chamamos nicho ecológico. O nicho de uma espécie inclui alimentos disponíveis, pH da água, acessibilidade à luz, predadores, competidores, polinizadores, parasitas, disponibilidade de oxigênio…. Enfim, qualquer variável que se relacione com a existência da espécie faz parte de seu nicho ecológico. Da mesma maneira as intersubjetividades, chamadas pelo biólogo Richard Dawkins de memes, se distribuem de maneira díspare pela sociedade. Algumas se concentraram os adolescentes das décadas de 1970, 80, 90 de Brasília e tornaram o ambiente propício ao rock popular no período.

ESPÍRITO DO TEMPO (ZEITGEIST)

Aquilo que identifiquei como o espírito do tempo da minha adolescência foi uma cultura de tocar rock em rodinhas em lugares públicos. As letras que cantávamos na década de noventa (a maioria composta na década de oitenta) diziam respeito à falta de sentido que sentíamos em relação ao que a vida adulta oferecia. As músicas a um só tempo refletiam um sentimento comum aos adolescentes como moldavam o que sentíamos. Este sentimento comum é o espírito do tempo, é o conjunto de intersubjetividades populares em uma determinado nicho cultural.

ARTE COMO IDENTIDADE DO GRUPO

É necessária intersubjetividade para atribuição do significado a uma obra de arte. Os elementos que constituem a subjetividade comum às pessoas está espalhada de maneira desigual na sociedade. Da mesma maneira que é comum alimentos serem consumidos por crianças de determinada idade, existem séries populares a determinada idade, existem intersubjetividades comuns à pessoas de determinada idade. Existem intersubjetividades comuns à nichos mais específicos também: roqueiros, motoqueiros, esqueitistas, marxistas… Assim é de se esperar que determinados grupos, por terem muita intersubjetividade, tenha um senso estético semelhante; por coincidência de gostos, usarão roupas semelhantes, ouvirão músicas semelhantes, consumirão cultura de maneira semelhante. Uma pessoa que tenha auto consciência desta agrupamento de gostos pode decidir se identificar com o grupo; assim passará a comprar roupas com o intuito de mostrar que está associado àquele conjunto de intersubjetividades.

ESPECTRO DE SIGNIFICADOS

A nossa comunicação, seja através de uma foto, de um poema, de uma melodia remete a experiências e emoções - isto a que se remete são os significados. A comunicação pode ser elaborada de maneira a ser ampla e dar margem a diversas interpretações, como também pode ser específica e dar margem a interpretações restritas e bem específicas. A comunicação só é possível através de um conhecimento comum compartilhado (ou seja, só é possível através da intersubjetividade). Para que o emitente tenha um controle preciso sobre a mensagem que sua informação vai passar é necessário que ele compartilhe a intersubjetividade da sintaxe com o recebedor da mensagem. Em uma tese de mestrado de matemática há intersubjetividade de toda a sintaxe, assim uma dupla interpretação é evitada. Em uma obra de arte é possível um espectro de significados mais amplo. Caso o emissor compartilhe bastante subjetividade com o receptor (ou seja, caso eles tenham uma grande intersubjetividade) é possível que chegue a calcular os duplos sentidos, as ambiguidades e as mensagens nas entrelinhas que o receptor irá receber. Mas a obra de arte pode ser elaborada de maneira mais vaga, de maneira que o emitente tenha a intenção de mandar uma mensagem imprecisa. A obra pode dar margem a diversas interpretações, nem sempre o artista tem controle sobre a precisão da interpretação da sua obra. Mas a precisão da comunicação demanda intersubjetividade, e a precisão da comunicação demanda uma alta intersubjetividade.

CAMADAS DE SIGNIFICADO

Podemos nos comunicar usando diversas meios diferentes: um poema, uma foto, um filme, uma tese de mestrado, uma simples fala. Em uma tese de mestrado de física há um grande esforço em ter um espectro de significado muito restrito, há um esforço para evitar ambiguidade e interpretações escondidas atrás da interpretação principal (informação nas entrelinhas). Em um filme meta textos são aclamados pela crítica; Robert McKee defende que o filme se escreve através de subtextos. Segundo ele a matéria de um escultor é o mármore (com o qual se faz uma escultura), a do pintor são as tintas (com a qual ele faz uma pintura) e a matéria da história são os textos (a partir do qual o escritor faz os subtextos). Os subtextos podem ser chamados de textos de segunda camada de entendimento. Com a segunda camada de entendimento também é possível um subtexto, que é a terceira camada de entendimento. A quantidade de camadas de entendimento é possibilitada pela intersubjetividade. A intersubjetividade deve ser muito grande para que seja possível uma comunicação tão profunda (segunda ou terceira camada de entendimento) e o que se comunica em camadas de entendimento elevadas é difícil de ser posta em palavras. Exemplo do caso das letras e de metáforas que deixam de ser metáforas.

IMAGEM ASSOCIADA

As intersubjetividades não se distribuem uniformemente independentemente do período pela população de um país. A cada época há intersubjetividades comuns a determinadas faixas etárias, escolaridades, religiões, ideologias. Por coincidência de gostos as pessoas com algumas intersubjetividades em comum podem ter hábitos comuns, alguns destes hábitos podem se refletir visualmente (como alguma vestimenta em comum). Ao perceberem que existe uma associação entre determinadas roupas e determinados conjuntos de subjetividades algumas pessoas optam por usarem roupas que remetem a este conjunto de intersubjetividades - assim algumas pessoas deliberadamente se vestem de motoqueiros, de marxistas, de roqueiros, de sertanejos. Certamente a opção de se identificar com determinado grupo é associado à imagem que a pessoa quer transmitir. Desta forma alguma imagem que seja vista com bons olhos (glamour) passa a ser procurada mesmo por pessoas que não detém aquele determinado grupo de intersubjetividades. De maneira avessa uma imagem uma imagem que seja vista negativamente passa a ser recusada mesmo por quem detém aquele grupo de intersubjetividades - a poucos anos pouquíssimos partidos se identificavam com a direita, apesar da maioria dos políticos serem pessoas conservadoras. Atualmente o estigma de ser de direita está menor. Há poucas décadas a adolescência se identificava com rebeldia, com questionamento aos valores das gerações anteriores. O rock capturou o espírito do seu tempo da cidade, as intersubjetividades mudaram, o rock ficou para trás.

CONCLUSÃO

Apresento aqui uma maneira específica de ver a cultura a partir das intersubjetividades. Uma intersubjetividade é qualquer percepção compartilhada. As intersubjetividades se distribuem de forma díspare, ou seja, elas se concentram em determinadas populações. As intersubjetividades comuns a mórmons americanos do século XVIII são diferentes das intersubjetividades comuns poetas concretistas brasileiros do século XX. Um conjunto de intersubjetividades perceptíveis podem se constituir na identidade do grupo, especialmente se elas são vistas de maneira positiva e seus integrantes querem ser associados a este grupo de intersubjetividades. As variáveis relevantes à sobrevivência das intersubjetividades (ou memes) são seu nicho cultural. Conjuntos de intersubjetividades possibilitam que uma mensagem seja passada de uma pessoa a outra. A leitura de uma mensagem (como uma música) depende destas intersubjetividades. Significado é o que a mensagem remete. O significado pode ter um amplo espectro (muitas interpretações possíveis). Também pode ter um espectro muito reduzido (de apenas uma interpretação possível). Para uma mensagem mandar apenas uma interpretação as intersubjetividades necessárias à mensagem devem ser idênticas entre o emissor e o receptor da mensagem. Caso haja muita intersubjetividade é possível escrever um texto a partir de um texto (ou seja, um subtexto). Ou mesmo escrever um sub-sub-texto. O rock se tornou popular porque haviam artistas capazes e sensíveis que criaram uma obra forte e significante, mas também porque havia um ambiente (nicho cultural) favorável à sua disseminação.

“O tempo passou, passou

Tudo mudou, mudou

Da sua boca, eu já nem lembro do sabor

Mundo girou, girou

Girou, rodou, rodou

Desaprendi a te chamar de meu amor”

Marília Mendonça

Chico Acioli Gollo
Enviado por Chico Acioli Gollo em 26/12/2018
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