O que é arte - Livre Arbítrio
“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique, não há ninguém que não entenda.” Cecília Meireles, vou explicar a liberdade. Você, tenho certeza, aprovaria minha ousadia.
HISTÓRIA DA FAMÍLIA: HERÓI COMUNISTA
Cresci ouvindo histórias do meu bisavô, Sebastião da Hora. Ele foi estivador, presidente do sindicato dos estivadores. Depois virou médico. Era adepto de hipnose, contrário a internações em manicômios, foi o primeiro a fazer cirurgia de coração no nordeste. Também era comunista. Como tal tinha um inimigo: o padre. Nas missas pregava contra Sebastião. Motivo pelo qual a minha bisavó largou a igreja católica. Entretanto o padre encaminhava doentes para o Sebastião - era o único médico que atendia de graça os pobres. Aos sete anos eu e viajei com minha família e amigos, inclusive um casal comunista a mulher era deputada federal pelo PC do B. O muro de Berlim ainda estava em pé. Ouvi que nós acreditávamos que o capitalismo estava melhor do que o socialismo porque estávamos no lado ocidental do mundo - sujeitos à propaganda americana. Se estivessemos no lado oriental acreditaríamos que a URSS estava melhor. Quando estudei capitalismo x comunismo no ensino médio me pareceu inexorável que o comunismo prevaleceria: que chance uma empresa privada tem, uma vez que uma parte de seus lucros vai para os acionistas??? A empresa comunista estava (aos meus olhos de 13 anos) em extrema vantagem: poderia reinvestir todos os seus ganhos! Cresci aprendendo sobre a injustiça da concentração de renda. Minha mãe trabalhava com crianças que viviam nas ruas. O perfil mais comum era terem sido abusadas sexualmente pela família e terem fugido para as ruas - onde foram educadas por outras crianças que também foram abusadas por seus parentes. Cresci aprendendo que a sociedade capitalista criou o mundo em que estas barbaridades são comuns. Aos poucos minha percepção foi se alterando, passei a gostar dos Keynesianos. Atualmente sou liberal. Ainda acredito que a miséria é um crime contra a humanidade. Ainda acredito que leva à consequências nefastas (como a exploração sexual). Meus valores básicos continuam os mesmos, o que mudou foi a fé no planejamento da sociedade nos moldes socialistas. Na minha infância, crescendo na mesma família em que cresci, eu poderia ter sido outra coisa diferente de comunista? É claro que sim! A família é uma grande influência. Mas temos diversas outras: amigos, livros, filmes… Então mudando um pouco a pergunta: na minha infância, crescendo na mesma família, conhecendo as mesmas pessoas, tendo exatamente as mesmas experiências, eu poderia ter não sido comunista aos 13 anos? Vou reelaborar a pergunta mais uma vez: eu, com meu corpo biológica, nascendo exatamente no mesmo dia em que nasci, tendo tido exatamente as mesmas experiências que tive, poderia ter sido - em qualquer coisa - diferente do que sou? Reelaborando a pergunta mais uma vez: somos produtos da nossa constituição e do nosso meio? Minha resposta é: sim! Com certeza! Ajo de acordo com as circunstâncias apresentadas pela vida, mas orientado pelas minhas crenças e desejos. Estes nascem da minha constituição biológica e histórica/cultural. Caso você acredite em Deus pode colocar espírito como parte da sua constituição, o argumento permanece intacto: somos formados por algo (como o corpo biológico e o espírito) e crescemos em interação com o ambiente. Tudo o que fazemos é o resultado da interação de quem somos com o ambiente que nos cerca. Esta interação vai nos alterando. Desde bebês imitamos, aprendemos, copiamos, refletimos. A nossa história e cultura passam a ser quem somos: evoluímos a cada instante.
OPACIDADE
Uma vez apresentei meu ponto de vista a um colega de trabalho, Maycoln. Ele discordou, disse que é impossível atribuir um resultado a uma causa. Ele deu o exemplo de um amigo que nasceu em um bairro pobre, teve determinados amigos que eram más influências e ainda assim cresceu como uma pessoa honesta. Bem ele está certo em um aspecto: às vezes é impossível detectar qual conjunto de causas leva a qual decisão individual. Cada ação humana é resultado de nossa rica história, diversas experiências, muitas das quais nem nos damos contas que vivemos, mas deixaram sua marca. Muitas decisões são tomadas sem reflexão racional, baseadas no impulso e em heurísticas (leia o livro ‘Rápido e Devagar’ do Daniel Kahneman). Por ser incapaz de identificar a conexão entre o ambiente e a ação humana Maicon nega a existência desta conexão. Esta incapacidade de prever um resultado a partir de uma ação é uma opacidade. Tal opacidade se deve à ignorância. Para prevermos um resultado necessitamos conhececer as circunstâncias envolvidas, bem como conhecer bem a pessoa que vai interagir com as circunstâncias. Conheço bem minha mãe, tenho muita confiança de que se eu chamá-la para o cinema no fim de semana ela irá aceitar o convite. Com objetos simples a previsão é fácil, conhecer poucas variáveis é suficiente para determinar o resultado. Com pessoas (muito mais complexas) é necessário um conhecimento muito mais profundo para determinar o resultado de uma interação com o mundo. A Luísa arrumou um emprego (interação com o mundo) ela vai morar sozinha (ação)? Conhecer apenas esta variável (arrumar emprego) é insuficiente para a resposta. Pessoas são complexas, isto torna a previsibilidade difícil. Maycoln atribui a imprevisibilidade à ausência de conexão entre causa e consequência. Atribuo a imprevisibilidade à incapacidade de computar todas as variáveis relacionadas ao comportamento humano. Atualmente todas as nossas ações, quando estamos logados na internet, são monitoradas. Cada vez estamos nos tornando mais previsíveis para quem acessa estes dados.
LIBERDADE
O que é ser livre? O que é ser preso? Um prisioneiro toma poucas decisões. A decisão de quando acordar e quando comer são tomadas pelos funcionários da prisão. Eu, como homem livre, posso visitar um amigo, posso ir à casa da minha namorada. Para um prisioneiro a decisão de ver alguém é tomado por terceiros, por quem vai visitá-lo. A liberdade, ao contrário, é a possibilidade de tomar suas próprias decisões. Sou livre para ir ao banheiro quando eu quiser. Nas férias sou mais livre, posso acordar, caminhar e comer quando bem entender. Liberdade é a autonomia de tomar decisões. Quanto mais um Estado toma decisões pelo povo menos seus cidadãos são livres. Uma pessoa pobre é menos livre, pois o dinheiro amplia escolhas. Uma pessoa que trabalha oito horas por dia tem menos liberdade do que uma que trabalha quatro, pois no trabalho as decisões são pautadas por outros (os patrões). Liberdade é a possibilidade de tomar decisões segundo sua própria determinação. Liberdade é diferente de um interruptor. Se aperto o botão a luz acende ou desliga. É absoluta: ligada ou desligada. Liberdade é em intensidade, quanto mais opções posso tomar pautado por mim mesmo mais livre sou.
CULTURA E LIBERDADE
A constrição física é dolorosa. Um prisioneiro tem pouquíssima liberdade: pode se recusar a comer, pode optar por ler um livro, às vezes pode optar por conversar com alguém. Mas basta abrir os olhos que o prisioneiro se depara com grades e é lembrado de sua condição. O prisioneiro conhece a vida fora das grades: sabe como é decidir que hora comer, onde caminhar, quando paquerar… Ou seja, tanto a restrição da liberdade quanto a liberdade que o aguarda são visíveis. Para as pessoas livres nem a restrição da liberdade, nem tampouco as possibilidades a que se privam são tão visíveis. Uma pessoa que viveu a vida inteira em seu apartamento, seguindo uma rotina rígida, que conheceu poucos amigos, leu poucos livros, que aprendeu apenas a língua materna tem pouca liberdade. Diferentemente do prisioneiro, entretanto, a restrição de sua liberdade é invisível. Talvez esta pessoa pouco livre seja feliz comendo o único cardápio que ela aprecia: bife com batata frita. Certamente, entretanto, esta pequenez a torna vulnerável. No dia em que ela viajar a um lugar em que o bife esteja fora do cardápio ela ficará angustiada. Uma pessoa que experimenta diversos pratos, que conhece diversas músicas, que conhece diversas línguas, que sabe conversar com pessoas diferentes é uma pessoa mais livre. Cada esfera da vida que conhecemos amplia nossa liberdade.Quanto mais cultura temos mais portas se abrem. A cultura que bate à nossa porta é especialmente libertadora. Aprender latim abre portas: textos incríveis no original! Aprender forró abre muito mais portas: possibilita conhecer o universo de pessoas ao nosso lado.
COMPONENTES DA OPACIDADE DA DETERMINAÇÃO
Eu vivo minha história. Durante o percurso interajo com o mundo e tomo decisões. De antemão seria impossível calcular todos os meus movimentos. Esta opacidade se deve à falta de informação: difícil saber todas as conversas significantes que tenho, todos os filmes que me comovem; enfim, difícil conhecer todas as interações que são significantes para mim. A falta de conhecimento (nem eu me conheço plenamente) leva à opacidade. Ainda que conhecêssemos a mim e ao meu ambiente plenamente a opacidade ainda se deveria a um terceiro fator: a dificuldade em computar as interações entre mim e o mundo.
DETERMINAÇÃO COMO PRISÃO x MULTIPLICIDADE DE ESCOLHA COMO LIBERDADE
Como defino neste ensaio a liberdade e prisão são dois pólos inalcançáveis. Sempre temos alguma liberdade, alguma possibilidade de decisão mínima. Mesmo na solitária uma pessoa ainda toma alguma decisão, mesmo que a decisão seja tão básica quanto no que vai pensar agora. Ou seja, a pessoa sempre tem alguma liberdade, mesmo que muito escassa. Da mesma maneira a liberdade absoluta inexiste. Mesmo uma pessoa extremamente poderosa tem alguma restrição em suas decisões. Uma pessoa poliglota é muito mais livre do que uma pessoa monolíngue, mas mesmo o poliglota é restrito às línguas que conhece. Ele só poderá ler um livro de uma língua que conhece. Também é restrito pelo tempo, é impossível ler todos os livros em inglês, por exemplo. No extremo da prisão há a determinação absoluta. No extremo da liberdade há escolhas sem restrições. São dois ideais inalcançáveis.
PRISIONEIRO DA VIDA?
Um prisioneiro tem seus passos determinados. Isto se dá em benefício do sistema carcerário: torna fácil gerenciar a população prisional. Com poucas variáveis podemos prever o comportamento dos presos. Apenas olhando um documento com a rotina sabemos o que estão fazendo. Se olharmos a minha trajetória pessoal constataremos que tendo exatamente as mesmas variáveis em questão eu necessariamente seria comunista aos treze anos. Isto é, se eu nascesse no mesmo dia, na mesma família, conversasse exatamente com as mesmas pessoas, experimentasse as mesmas comidas, os mesmos livros, filmes, visse os mesmos raios de luz entrando pela janela… enfim, eu tendo exatamente as mesmas experiências seria exatamente quem sou. A prisão do condenado consiste na determinação de onde andar, o que fazer e quando fazer. A minha vida inteira determina quem sou e o que farei. Assim sendo, será que sou um prisioneiro da minha vida assim como um condenado é prisioneiro do Estado?
PRISIONEIRO X PROTAGONISTA
Tendo em conta de que passando por exatamente as mesmas experiências tomaremos as mesmas decisões, temos a impressão de que a nossa vida é como uma prisão extrema. Só um curso de ação é possível, o curso tomado. Entretanto esta semelhança entre a vida e a prisão é uma ilusão. Na prisão o mundo exterior (as grades, os guardas, os gestores) tomam as decisões pelos prisioneiros. Sempre há alguma liberdade, sempre há alguma decisão que o próprio prisioneiro pode tomar. Mas são muito poucas opções frente ao que o mundo fora das grades oferece. Na vida, em contraposição, a quantidade de decisões tomada autonomamente é muito maior. Você decide se quer estudar, o que vai estudar, você decide se vai jogar bola à noite, se vai ler um livro ou se vai sair. Você decide se permanece em um ambiente, você decide se alimenta a sua relação com seu companheiro, a cada momento você decide a honestidade com que tratará as pessoas ao seu redor… Às vezes parece que somos prisioneiros da nossa rotina, dos nossos compromissos. Afinal há que se botar comida na mesa. Entretanto esta prisão é fruto de nossas escolhas e podemos tomar decisões que ampliem nossa liberdade (ou seja, é possível tomar decisões que ampliem o leque de decisões que poderemos tomar no futuro). Se aprendemos uma nova língua aumentamos nossa liberdade (podemos ler livros ainda não traduzidos). Se criamos novos amigos aumentamos nossa liberdade (mais uma pessoa pode nos chamar para uma conversa interessante). Se aprendemos a gostar de um novo gênero musical aumentamos nossa liberdade (ampliamos os lugares em que podemos sair, as músicas que poderemos ouvir). A diferença entre a determinação da prisão e a determinação da vida é: a determinação da prisão é feita pelo mundo às custas do protagonismo individual. A determinação da vida é a interação do protagonismo individual e as circunstâncias do mundo.
VIDA, PRISÃO, OPACIDADE, LIBERDADE
Neste ensaio defino estes quatro conceitos. Vida são todas as circunstâncias que se apresentam a uma pessoa. Liberdade é a possibilidade de tomar decisões autonomamente. Quanto mais opções posso tomar mais livre sou. Opacidade é a incapacidade de perceber a conexão entre causas e consequências. A opacidade que importa neste ensaio é a opacidade da vida. Ela se deve a três motivos: o nosso conhecimento a respeito da vida é parcial, o conhecimento sobre cada pessoa é parcial, mesmo que conhecêssemos tudo da pessoa e do mundo a nossa capacidade computacional é insuficiente para prevermos cada ação que uma pessoa toma. O conhecimento que cada um de nós oferece aos sites diminui a opacidade para quem acessa estes dados (somos cada vez mais previsíveis). A prisão determinação do mundo se sobrepondo à autodeterminação. Calcular racionalmente os prós e contras de cada decisão é extremamente difícil. Muitas vezes tomamos nossas decisões sem reflexão. Tomar todas as decisões no automático (seguindo heurísticas) nos dá a impressão de abdicamos de nossa autonomia. Como descreve a bela música ‘Timoneiro’, do Paulinho da Viola:
Não sou eu quem me navega
Quem me navega é o mar
É ele quem me carrega
Como nem fosse levar
E quanto mais remo mais rezo
Pra nunca mais se acabar
Essa viagem que faz
O mar em torno do mar
Meu velho um dia falou
Com seu jeito de avisar:
- Olha, o mar não tem cabelos
Que a gente possa agarrar
Timoneiro nunca fui
Que eu não sou de velejar
O leme da minha vida
Deus é quem faz governar
E quando alguém me pergunta
Como se faz pra nadar
Explico que eu não navego
Quem me navega é o mar
A rede do meu destino
Parece a de um pescador
Quando retorna vazia
Vem carregada de dor
Vivo num redemoinho
Deus bem sabe o que ele faz
A onda que me carrega
Ela mesma é quem me traz
Paulinho da Viola