Ensaio sobre o aborto
Diz o velho jargão que para morrer basta estar vivo e bem sabemos que a origem da vida humana é um mistério repleto de explicações mais ou menos afortunadas. A vida, no entanto, é facilmente constatável e definível por outra palavra: alma, do latim animu, aquilo que anima. Há que se considerar a autonomia de intervenção enquanto causa e não apenas como efeito. Explico!
Uma pedra no caminho pode ser a consequência de uma queda pelo simples fato de existir e de ocupar determinado lugar no espaço. A pedra não causa tropeços por vontade própria, mas sim por efeito de uma ação externa de um corpo contra o qual ela possa vir a colidir. Isto é, a pedra não possui alma nem vontade de agir.
Nós aprendemos, desde criança, que o corpo humano é constituído por muitas células, a menor unidade entre os seres vivos. Somos, portanto, organismo pluricelulares. Leciona-se para adiante que homens e mulheres sejam a consequência de uma reprodução celular. Pois bem, se por definição, as células possuem ânimo, pode se dizer que elas, em si, são a representação da própria vida. Dito isto, poupo-me o tempo de tratar de sugestivas contagens temporais, da formação embrionária ou do feto, sem desconsiderar a sua relevância.
E por que não há expressiva comoção social quando se destrói uma pedra? Porque ela, desconhece a própria existência. Não faz reflexões sobre o seu propósito. A pedra não tem sentimentos nem pretensões a eternidade ou a promessas reconfortantes de um paraíso que há de vir. É indiferente a ser ou não ser alguma coisa, porque simplesmente é e porque esta é a sua natureza.
Os cientistas estimam que bilhões de células em nosso corpo morram todos os dias. Diante de muitas delas afirmo: somos pedra. Nunca conheci um homem que quisesse saber sobre o sofrimento de uma partícula celular de seu corpo. Presumo que você também nunca tenha se preocupado ou conhecido alguém que tivesse manifesto interesse nisso.
Aprecio, então, que a questão de fundo não seja a morte ou as suas consequências. Esta virá e, ao menos por ora, não há nada que você possa fazer para ser perpetuar como o infinito. Sendo assim, a premissa de uma suposta ordem natural é improvável.
Ninguém sabe o tempo que tem! Probabilidades se alteram pelas circunstâncias e pelos fatos alheios a nossa vontade. A todo momento estamos sujeitos a mudança de estado. Desta razão, por vezes me indago: existiria, de fato, uma vida certa e outra incerta que justificasse o sacrifício de uma vida pela outra?
Trata-se, pois, e sobretudo da premente consciência de ser e de estar vivo e do sofrimento humano. Assim, se considerado for o sofrimento como produto do desejo, eis que por definição consinta na frustração de algo que se queira, basta anular (por hipótese) o querer viver para que a morte não seja um sofrimento.
Fato necessário a se considerar é que a dor é um sintoma do sofrimento e na experiência humana, atribui-se a sua percepção por intervenção do sistema nervoso. Sem ele, portanto, estaríamos anestesiados pela censura de uma informação sensitiva jamais decodificada pelo cérebro. Não por acaso, acolhe-se um manifesto majoritário do fim ao que já é anencefálico, respeitada as opiniões diversas sobre este entendimento e do acordo que tenha firmado para consigo.
Relembro, por breve, um antigo conto que investiga a causa mortis de um sapo em água fervente. Cogita-se que o conforto o tenha distraído da morte, eis que estando livre para saltar, este tenha “optado” (manifesto de vontade) em permanecer inerte, inconsciente de seu próprio fim. Um lastro, acrescento, do que possa significar a falta de consciência a respeito de si mesmo. É o quando o sapo torna-se pedra.
Outro conto estima que a intervenção humana tenha posto fim a vida de uma borboleta. Verdadeiro ou não, sabe-se que nem toda semente lançada ao solo germina e que nem todo ovo torna-se pinto. Porém, que não se negue que a ação ou a omissão de um corpo sobre o outro gere os seus efeitos, tanto quanto as escolhas possam mudar o seu próprio destino.