Arte e política transformadora

Exatamente na hora em que eu e a Lu nos perguntamos sobre o que iríamos almoçar o Felipe, irmão dela, aparece dizendo que o vizinho nos chamou para almoçar. Éramos três bocas a mais. Decidimos contribuir com uma salada. Em cinco minutos preparamos uma salada do ingrediente que mais tinha na geladeira: tomatinho. Mas também levava um pouco de rúcula do quintal, bastante palmito e azeitona. Ficou uma delícia. Foi a primeira vez que entrei na casa do Zé. Uma mesa cheia: além de nós três gerações da família do Zé estavam presentes. Chega a ser nostálgico. Me sinto parte de um ritual que está morrendo: almoçar em família no domingo. Até almoço com minha avó as vezes. Mas cada um almoça a hora que quer e sai a hora que termina. Na casa do Zé realmente foi uma comunhão em que todos estavam presentes de corpo e alma. Este ambiente, por um lado tão tradicional, tem um lado revolucionário-amoroso. O Lucas, um jovem de pouco mais de vinte anos, trouxe Bruno, seu namorado. A família recebeu o Bruno com tanto amor quanto receberia uma Bruna. Muito bonito ver este amor em um ambiente tão tradicional - especialmente nesta época em que uma parcela grande da população brasileira está achando bonito ser homofóbica.

Lucas comentou - olhando nos meus olhos - que foi votar tranvestido (esqueci seu nome drag). Imagino que ele estava lendo minhas reações atento a qualquer traço de homofobia que eu pudesse manifestar. Tenho pensado muito a respeito do sentimento que a população brasileira tem manifestado contra as bandeiras de esquerda. O sentimento é de ódio ao PT e a tudo o que se relaciona ao partido: movimentos sociais (como MST), movimentos sindicais, Estado assistencialista, direitos humanos (como a causa LGBT). Há alguns anos houve a Marcha das Vadias. É uma manifestação internacional em que as mulheres defendem que independentemente de como estejam vestidas a violência sexual é inadmissível. Na marcha as meninas andavam sem as blusas. Na Europa as meninas fazem topless na praia, no carnaval as musas da escola de samba desfilam quase nuas. Nas ruas, entretanto, um monte de meninas de seios de fora, é um ato chocante para a população em geral. A afronta não faz meu feitio. Mas, por reconhecer que a causa é importante, fui para a primeira Marcha das Vadias. No almoço comentei com Lucas que a Marcha das Vadias foi um movimento equivocado. Seu objetivo foi mostrar que o estupro nunca se justifica. Mas a marcha começou na rodoviária. Os ônibus estavam repletos de pessoas tradicionais. Imagino uma senhorinha cuja vida gira ao redor do culto de domingo vendo aquele tanto de gente seminua gritanto pelos igualdade de direitos. Pessoas que, inclusive, acreditam que o correto é que homem e mulher desempenhem papéis determinados pela tradição. Muita gente na rodoviária se sentiu extremamente ofendida. Com o Lucas comentei que acredito que este tipo de ação contribuiu para o ódio que a população brasileira sente pelo PT e por tudo o que é associado a ele. Falei que ir tranvestido votar, assim como a Marcha das Vadias, pode ser um tiro que sai pela culatra. Me impressionou o Lucas ter uma resposta pronta. Imagino ele já tenha pensado a respeito do assunto: disse que ir votar tranvestido e a marcha são coisas diferentes. Ir votar usando sua identidade drag é ir vestindo como ele é. Todos temos muitas faces, sua identidade drag é uma das faces do Lucas. Ao invés de uma provocação é um gesto de afirmação. Na rodoviária estavam indo de encontro ao público: a maneira que encontraram para alterar a sociedade foi o desafio. Lucas, ao contrário, estava apenas existindo. Estava exercendo uma maneira de ser sua. É uma abordagem diferente. Na marcha das vadias as meninas se esforçavam para um confronto. Ao se deparar com violência e homofobia lucas optava por conversar e ser simpático. Ele optava pela convergência. Neste momento faz para a população o que a arte faz para o indivíduo.

Chico Acioli Gollo
Enviado por Chico Acioli Gollo em 30/10/2018
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