Perdidos numa noite insone
Acordamos, Eliana e eu, por volta das nove e meia da noite de Terça-Feira. A causa desse acordar inopinado deve ter sido os miados do Baltasar, que ultimamente me parece andar farejando gata no cio nas proximidades. Anda tão assanhado o camarada que a minha filha me perguntou (Acho que estava preocupada com o assédio do malandro...) se ele estava no cio, obrigando-me a explicar-lhe didaticamente que bichanos machos não entram em cio. Como eu estava sem sono, Eliana, solícita como sempre, postou-se a minha frente, ainda em nossa cama, para conversarmos – o que já se tornou uma praxe entre nós dois. Ficamos ali, eu sentado em posição de lótus, e ela apoiando suas coxas sobre as minhas, a divagarmos sobre a moral que norteia o mundo.
Depois de ficar um bom período bebendo do olhar dela saquei do meu livro preferido, colocado estrategicamente no criado mudo junto com uns inseparáveis chocolates, e li um trecho buscado aleatoriamente para nós dois...
Nem assim o sono dava sinais de que faria as pazes comigo. Parei a leitura do Musil e suas intrincadas considerações, desgrudei a contragosto as minhas pernas das pernas de Eliana e nos decidimos por tomar um suco. Depois de uma meia hora na sala, e sem a menor vontade de zapear pela televisão, optei por aceitar o convite que ela já me havia feito pouco antes: fomos colocar roupas mais quentes e saímos para caminharmos pelas ruas do bairro em que moramos.
O olhar assustado do porteiro de nosso prédio casava perfeitamente com o horário que havíamos escolhido para passear: faltavam míseros vinte minutos para uma hora da manhã. Nem fazia tanto frio assim, mas nós fizemos questão irremovível de nos paramentar como se estivéssemos na Sibéria: luvas, gorro de lã e muita vontade de deixar o ar gelado da noite acariciar nossos rostos insones.
Após abandonarmos as muralhas protetoras de nosso condomínio fomos logo brindados com apavorante cheiro de sanduíche de hamburger queimado: provavelmente um estudante qualquer o esquecera na tostadeira enquanto surfava nas ondas de site qualquer...
Ainda com nossas narinas impregnadas de cheiro gorduroso de hamburger atravessamos a pracinha e pegamos a pista arborizada da ciclovia em que costumeiramente pedalamos com nossas bicicletas. Ali, a passear calmamente pela madrugada, passamos a observar o resfolegar de nossa cidade, vomitando gente e carros em todas as direções. Eliana observou que no shopping próximo ainda havia muitos carros estacionados, enquanto meu olhar passeava pelas várias ofertas das lojas fechadas. Havia de tudo: desde uma charmosa loja de decorações, até uma sex shop - na certa instalada ali para decorar as fantasias de quem nela entrasse...
Olhei de soslaio para Eliana: sua touca emoldurava-lhe a cabeça, acentuando ainda mais seus traços peninsulares. Levantei o seu corpo esguio e a beijei debaixo dos pés de Jamelão, levando de prêmio a buzinada inconformada de um anônimo passante motorizado. Como essas buzinadas já são fato corriqueiro em nossas andanças, sequer nos importamos com ela; retomamos nossa caminhada por baixo das árvores, agora a contar os vários ônibus que passavam a carregar os seus ocupantes para um merecido repouso.
Depois de uma meia hora de caminhada, e mais alguns olhares espantados dos amantes da buzina, voltamos para o calor de nosso apartamento. E nada do meu sono se manifestar. Comecei a desconfiar que eu havia feito alguma estripulia, e como castigo impus a nós dois (Afinal, tudo entre nós tem de ser repartido de modo equânime...)a obrigação de ver uma velhota de oitenta anos discorrer charmosamente sobre um tal Vôo Livre: um livro no qual a mesma relata as facilidades de se viver em Londres e em outras cidades do mundo sem grandes recursos. E pasmem: tudo isso sem falar inglês e nos duro período dos anos oitenta.
Antes que eu resolvesse cometer uma loucura e sacasse do cartão de crédito para me atirar num vôo sem destino certo, pedi para Eliana cortar umas fatias de melão para devorarmos.
Desliguei a televisão e corri para separar a briga ferrenha de Eliana com o rebelde melão amarelo: subjuguei aquele melão embusteiro e o piquei em pedacinhos, vendo Eliana mastigar cada um deles com um ar de satisfeita vingança refletido em um esboço de sorriso no canto de seus belos lábios. Fiz um trabalho de mestre: piquei também as cascas do dito melão, e, antes que algo mais viesse empanar o nosso fim de noite, recolhemos os despojos mortuários daquele chinês (Só podia ser chinês aquele melão rebelado.) e nos recolhemos ao nosso quarto de dormir.
Finalmente, às três da manhã, estabelecemos um armistício com o sono – não antes de guerrearmos renhidamente para nos libertar da prisão de nossos pijamas; mas, às cinco horas da manhã fomos acordados por Chico e Simone cantando Yolanda, fato que salvou o celular de Eliana ser jogado impiedosamente contra a parede.
Cidade dos Sonhos, manhã de Quarta-Feira, antevéspera de Lua Cheia, Julho de 2011.
João Bosco