Economia e guerra

PULSÃO ECONÔMICA DE CRISE

1. Prólogo. No princípio era...

Parece que o trem (bala) desgovernado da história, mesmo esse ônibus diário com lembrete de “saída de emergência” na janela lateral, tem como motor a combustão interna, radioatividade ou mesmo qualquer fonte renovável de energia, um velho teorema de Marx: a contradição dialética, de mútua exclusão e determinação, entre as relações sociais de produção e o desenvolvimento das forças produtivas. Como nos lembra Anselm Jappe, “Se a circulação de mercadorias houver de ser outra coisa que não uma troca ocasional de bens raros ou de excedentes, se ela se apoderar da vida produtiva no seu todo, então terá necessidade de crescer em cada ciclo que passa”. Essa a pulsão socioeconômica, de segunda natureza, na qual estamos metidos.

Até a lógica mercantil tomar de assalto o céu da produção material da existência e, assim, iniciar sua colonização de tudo aquilo que pode ser concebido como vida, modo de vida, cultura, hoje quase universalmente conquistada, houve um Abre Alas socioeconômico, técnico-científico e militar conhecido por acumulação primitiva. A corrida do ouro das expansões marítimas em busca de metais preciosos e especiarias nas “terras de ninguém” da colonização. Essa corrida foi levada a cabo pelos poderes soberanos, pelas monarquias, pelo Estado de então.

Em verdade nos lembram: é uma força destrutiva que aplaina o terreno da história para a (im)plantação da monocultura de mercadorias. Tal força é alçada pelo monopólio da violência detido pelos Estados nacionais em formação. O cultivo da monocultura do mercado não é, desde a sua origem, separável da violência estatal, da sua máquina de aplainamento da cultura. Mas isso não foi possível sem, antes, uma revolução epistemológica bem específica: a ciência natural moderna, sua racionalidade instrumental, técnico-científica.

Ela refaz uma cosmologia em que se quebra o narcisismo do “homem” do medievo cristão, visto como a imagem e semelhança de Deus, tendo a natureza à sua disposição, a criatura dentre as criaturas no centro de uma Terra pensada como centro do universo finito conhecido – até o sol giraria em torno de seu eixo. A partir de então tudo que era sólido se desmanchava na frente das vistas – como com Galileu e sua luneta, observando as luas do planeta Júpiter. Esse o início, o início da crítica interna à cosmologia europeia.

O que permitiu uma tal reviravolta tem a ver com o desenvolvimento de uma concepção de natureza em que esta possui leis internas, traduzidas pelo cálculo matemático, independentes da vontade de qualquer ser transcendente como Deus, no sentido pessoal, ou mesmo imanente, como Tupã. Isso, sim, um virulento niilismo a desencantar o mundo – a ciência como um martelo a destituir todos os ídolos. O teor da epistemologia que lhe serve de base é logo traduzido pelo axioma de um inglês, Francis Bacon, um gênio: saber é poder; submete-se a natureza submetendo-se às suas leis. Aqui acontece a primeira queda do céu, a terra dos povos originários, aqui se inicia um apenas imaginável domínio técnico sobre a natureza.

Mas esse potencial niilista da ciência, certamente ao mesmo tempo também reencantando o mundo pela dança cósmica captada na luneta de Galileu e posteriormente no telescópio Hubble, não vem senão como afirmação de uma forma social bem específica, sendo sua ferramenta a revolução nos assuntos militares, e sua expressão a guerra. As forças destrutivas das armas de fogo são, a partir de então, um argumento quase inquestionável na luta dos povos. Tal forma social, baseada na destituição de toda comunidade orgânica, não vem sem, na outra ponta, a fundação de uma sociedade baseada no indivíduo, na liberdade de sua vontade de mercador, na sua condição de sujeito universal, autocentrado.

A quebra do narcisismo cristão não vem, assim, sem uma afirmação narcísica também na outra ponta: a metafísica da subjetividade, o eu, o cogito, o sujeito do conhecimento como a fonte substancial do sentido do mundo, o eixo gravitacional de si e do mundo possível. Mas o narcisismo não é assim tão autocentrado como aparenta, talvez possua algum problema de fundo ao qual ele tenta responder: a melancolia diante de um mundo em desmanche. Esse o sintoma do século XVII, o século barroco, oscilante entre a concepção de um mundo mecânico natural e o Deus cristão, que funda uma expectativa de futuro incerta também oscilante entre a catástrofe da morte iminente e a redenção como salvação das almas.

Niilismo, narcisismo e melancolia são, portanto, sintomas já presentes nas origens do que conhecemos por modernidade. Serão suprimidos ou manifestos conforme o sopro do vento do progresso nas asas do anjo da história. Mas voltemos ao aspecto socioeconômico, técnico-científico e militar que marca o nascedouro da modernidade, a acumulação primitiva. O Estado fará um bom uso da revolução científica no seu aparato de navegação e guerra, sendo a guerra o lugar de nascimento da primeira forma de assalariamento, com os exércitos de mercenários, seja no contexto da colonização de outros povos e territórios, o aspecto externo, seja na expropriação das terras de camponeses, proibindo-lhes também a caça e a colheita de lenha, o aspecto interno. Dá-se aqui as guerras camponesas, assim como as resistências de outros povos, uma resistência ainda pré-moderna à modernidade.

Numa ponta, a colonização externa, temos o desenvolvimento de um espaço anômico puramente econômico, chave para a acumulação primitiva do capital comercial, e na outra, as expropriações internas, temos a formação de uma massa socialmente nua, possuindo apenas o fogo de sua faculdade de trabalho. Em conjunto a isso a ciência vai também se tornando cada vez mais um componente da produção material da existência, dando-se a passagem de uma produção artesanal à manufaturada, e desta à consolidação da grande indústria, a maquinaria moderna com a máquina de tear a vapor. Acumulação de capital inicial, formação de uma massa de “trabalhadores” e maquinário constituem, assim, três dos cavaleiros do apocalipse que invocarão o quarto, a besta chamada capital: o dinheiro, a mercadoria detendo não apenas o lugar da circulação, o comércio, mas o próprio centro, a finalidade da produção: D – M – D’.

Se os países europeus da região sul, Portugal, Espanha, Holanda (os Países Baixos), devido as suas navegações, são aqueles que detêm a dianteira do capital comercial, é na Inglaterra que se toma a dianteira do capital industrial. É nela onde o coração das trevas começa a bater mais pulsante. Não à toa ter sido nela que Marx passou o restante dos seus dias após a Primavera dos Povos (1848), ainda que a maior parte do tempo na sua Biblioteca Nacional, donde saem a maior parte das linhas de crítica da economia política aqui retomadas.

2. Desenvolvimento histórico da contradição interna do capital

Salvoj Žižek retoma o psicanalista francês Jaques Lacan para dizer que em Marx a luta de classes se apresenta como sintoma, como o recalcado que retorna para contradizer a pretensa harmonia social. Isso, de um lado, está certo: “A economia política burguesa, isto é, a que vê na ordem capitalista a configuração definitiva e última da produção, só pode assumir caráter científico enquanto a luta de classes permaneça latente ou se revele apenas em manifestações esporádicas”. No entanto, na outra ponta, é a própria abstração real do valor que aparece como o elemento formal que submete todo o processo real, sendo essa noção análoga à definição de inconsciente; a própria pulsão econômica do capital, como a forma de valorização do valor, se apresenta como a dimensão inconsciente da experiência social.

Parece que para compreendermos nossa experiência contemporânea é preciso, antes, perceber como essa pulsão econômica do capital se apresenta como zona tabu, não tematizada, pressuposta e não questionada, que, sobretudo diante de sua crise, retorna como sintoma, cobrando seu preço em sacrifício. Parece ser preciso, sobretudo, entender o lugar do trabalho, do tempo de trabalho socialmente necessário como medida da riqueza social, o trabalho abstrato, como fator decisivo para se compreender o significado de suas crises. Sobre isso, Marx fala de uma contradição interna do capital, que no prefácio de sua Contribuição à crítica da economia política aparece de maneira mais geral como contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção, mas que, sobretudo no tópico Capital fixo e desenvolvimento das forças produtivas dos Grundrisse, é determinada como uma contradição insolúvel em o modo de produção capitalista estabelecer o tempo de trabalho socialmente necessário como medida da riqueza social, do valor, ao mesmo tempo em que precisa, mediante a concorrência, desenvolver as forças produtivas no sentido de reduzir esse mesmo tempo a um mínimo até o ponto de torná-lo supérfluo. Esse problema aparece formulado também no terceiro livro d’O capital como uma queda tendencial da taxa de lucro, compensada pelo aumento da massa de lucro.

São esses apontamentos que nos permitem compreender o desenvolvimento histórico do capitalismo e o significado de suas crises. Se cada mercadoria tem como eixo gravitacional de seu valor o tempo de trabalho socialmente necessário para a sua produção – a média social não no sentido aritmético, mas de um determinado grau de produtividade –, é de se supor que sua tendência, na medida em que aumenta a produtividade, é diminuir o tempo de produção necessário para cada mercadoria. Assim, para se acumular a taxa de lucro de um grau de produtividade anterior é preciso ampliar a massa de mercadorias vendidas. Como exemplo, podemos tomar a média da produção social de trinta camisas em trinta minutos, o que acarretaria que cada camisa teria como valor um minuto; se essa produtividade se amplia, se se passa a produzir sessenta camisas em trinta minutos, cada mercadoria terá como valor trinta segundos; assim, nesse novo patamar de produtividade, será preciso vender sessenta camisas para se acumular os trinta minutos, o que antes se fazia com apenas trinta camisas. É nesse sentido o problema da queda da taxa de lucro e sua compensação pela massa de mercadorias vendidas.

A essa contradição está atrelado o percurso neocolonial, inclusive as guerras imperialistas, sendo disputado ao mesmo tempo o monopólio econômico-financeiro e o monopólio mundial da violência. A crise de 1929 pode ser compreendida, desse modo, como uma crise de superacumulação em que o consumo não a acompanhou, como subconsumo. Em solo brasileiro, Getúlio Vargas, o Estado portanto, comprava as sacas de café dos produtores nacionais, que haviam perdido o mercado consumidor externo diante da crise, e mandava queimá-las. O que temos são dois aspectos da produção capitalista: de um lado, não produz para atender necessidades materiais humanas; de outro, tem como aspecto central, desde seu nascimento, desenvolvimento até seus momentos de crise, a figura do Estado – capital e Estado são inseparáveis.

É nesse contexto que a guerra irá aparecer como uma potência social que, não realizada, volta-se contra si mesma, uma espécie de contra si, sendo a máquina militar de destruição o dique que escoa o capital latente, o torna manifesto como sintoma destrutivo. Aqui, o modelo da guerra está associado ao modelo de produção correspondente, o que irá propiciar uma superação da crise e um relativo bem-estar social europeu provisório, os trinta anos da ilha de bem-estar da guerra fria, no segundo pós-guerra: o modelo fordista. Este, além de ampliar a produção, amplia a demanda por trabalho, mobiliza uma massa de trabalhadores, como a guerra irá mobilizar a sociedade civil nesse contexto e, assim, propiciar a integração do trabalho com direitos sociais, acesso ao consumo, aos lazeres.

Outra é a situação que se inicia nos anos setenta (1970), com a reestruturação produtiva, a flexibilização do trabalho e do capital, quando começa a entrar em cena uma terceira revolução industrial, tecnológica: a microeletrônica. A partir de então, ao contrário do contexto fordista, passa a se reduzir drasticamente, em termos absolutos, a demanda por trabalho e, assim, a própria fonte do valor, sua substância. Além disso, entramos no contexto da globalização, em que o capital passa a dominar todo o espaço terrestre, consolidada com a queda da URSS. É nesse limiar que, dentre as contratendências do capital contra a crise, o aumento da exploração do trabalho, a redução dos salários etc., passa a dominar o capital financeiro e a guerra permanente. Para Robert Kurz, entramos nos limites da modernização, de uma “barreira absoluta à valorização” que tem como horizonte apenas o colapso, e como presente uma gestão emergencial da crise, de seu processo de barbárie. A unidimensionalidade do capital agora não diz mais respeito à integração, mas à desintegração, que começa pela desintegração do trabalho, tornado cada vez mais supérfluo junto com as populações.

O crédito, de agora em diante desregulamentado, passa a ser o consumidor do futuro, passa a jogar com os lucros futuros, dando sobrevida a uma máquina que passa a girar em falso. A pós-modernidade, sua liquidez e inconstância, a virtualização e a ficcionalização narcísicas podem ser compreendidas a partir desse momento. Estamos diante do limite externo do recobrimento de todo espaço terrestre, além da crise ambiental, que se casa com o limite interno da valorização e da integração pelo trabalho, sustentada pelo consumo do futuro a crédito, pelo consumo das expectativas futuras, esperando um Godot que não vem. É nesse contexto que o lastro em ouro do dólar como dinheiro mundial é substituído pelo seu lastro em armas. O presente torna-se uma guerra permanente que sustenta a mediação social do valor em crise.

RETORNO DO LEVIATÃ

“Tenho apenas duas mãos

e o sentimento do mundo,

mas estou cheio de escravos,

minhas lembranças escorrem

e o corpo transige

na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu

estará morto e saqueado,

eu mesmo estarei morto,

morto meu desejo, morto

o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram

que havia uma guerra

e era necessário

trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso,

anterior a fronteiras,

humildemente vos peço

que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,

eu ficarei sozinho

desfiando a recordação

do sineiro, da viúva e do

microcopista

que habitavam a barraca

e não foram encontrados

ao amanhecer

esse amanhecer

mais noite que a noite”.

(DRUMMOND, Sentimento do mundo).

1.

“Ao vencedor, as batatas!”, disse o filósofo Joaquim Borba dos Santos, o Quincas Borba, personagem de Machado de Assis, e fundou o humanitismo. A luta pela sobrevivência, na sua visão, seria produto de uma escassez natural, e a vida mera demonstração de força. Borba é uma expressão pitoresca, ao mesmo tempo séria e cômica, do modo como no século XIX alastrava-se na cultura uma compreensão naturalizante, biologizante da experiência social, aquilo que viria a ser chamado de darwinismo social.

Não custa lembrar que o território no qual Machado escreve sua prosa ganhará uma conformação nacional, a brasileira, a partir do modo como o militarismo dessas terras sairá vitorioso no Paraguai (1864-1870) e em Canudos (1896-1897), carregando nas suas entranhas a ideologia do progresso em sua matiz positivista. Não à toa a transição conciliada à República ter sido levada a cabo pelos marechais, que acabaram por inscrever na bandeira o emblema: ordem e progresso. O que não é outra coisa senão: segurança armada e desenvolvimento econômico. Positivismo, no sentido de uma naturalização do social, e guerra estão inseparavelmente articulados.

O que faz um autor brasileiro como Paulo Arantes, dialogando com os apontamentos do projeto homo sacer de Giorgio Agamben, associar o estado de emergência, de sítio ou de exceção a um estado de necessidade, a uma espécie de anterioridade da necessidade frente à liberdade da decisão política, é algo que pode nos ajudar a compreender o fenômeno da guerra em um sentido até, em um primeiro momento, aparentemente similar ao do primeiro filósofo, o Borba, mas precisamente distinto:

"Por mais que Clausewitz tenha se esforçado por entroncar a violência cega da guerra na rota política da razão e da vontade, ela nunca deixou de emanar do reino mesmo da necessidade, expresso na ilimitação inerente a todo esforço bélico. Daí a relutância que os Estados pelo menos precisam aparentar quando lançam mão desse último recurso. Afirmar que a guerra é um mal necessário é mais do que apenas parolagem edificante, é admitir que ela procede dessa esfera inferior e tenebrosa em que as sociedades estão cruamente empenhadas em impedir sua destruição."

Existem dois possíveis caminhos para compreendermos a vigência desse estado de necessidade socialmente produzido. De um ponto de vista político-jurídico, está associado à emergência das lutas sociais proletárias no interior do Estado republicano burguês, instaurando a necessidade de sua contensão para além dos marcos da regulamentação jurídica – problema que pode ser estendido à questão indígena, das populações negras periféricas, dos imigrantes refugiados, e assim em diante. De um ponto de vista econômico-financeiro, está associado aos contextos de crise da forma de produção e de reprodução social baseada no capital. Por hora, precisamos nos ater apenas ao segundo ponto.

Se podemos tomar um paralelo histórico como ponto de partida para a compreensão do significado contemporâneo da guerra, esse paralelo está na semelhança entre o contexto do entreguerras, na primeira metade do século XX, e o contexto atual, as duas primeiras décadas do século XXI. O denominador comum de ambos chama-se: refluxo. O primeiro como refluxo do universalismo ocidental expresso nos valores iluministas de igualdade, liberdade e racionalidade, de autonomia e felicidade a partir do progresso material da civilização industrial, no contexto da crise econômica de 1929, da mobilização nazifascista que lhe sucedeu e, enfim, na guerra mundial. O segundo como refluxo do discurso de integração mundial pelo mercado no contexto da globalização expresso nos atentados de 11 de setembro, na ocupação de Iraque e Afeganistão até seu ponto culminante na crise de 2008 e na intensificação da economia de guerra nas guerras civis pelo mundo, como no caso da Síria.

O movimento que está na base de ambos não é bem o da instância biopolítica, da relação entre poder soberano e vida nua enquanto relação de matabilidade, isso é uma expressão de um estado de coisas que tem sua origem na contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e o caráter das relações sociais de produção; precisaríamos, antes, de uma crítica da economia política da guerra. Precisaríamos situar essa dimensão do problema recorrendo a Walter Benjamin, inserido no primeiro contexto, e seu diálogo com a crítica da economia política de Karl Marx; e recorrendo também a Paulo Arantes, inserido no segundo contexto, particularmente seu diálogo com o teórico e estrategista militar prussiano Carl von Clausewitz. Articulado a esses dois autores, poderíamos recorrer, enfim, aos apontamentos de Robert Kurz sobre a relação entre dinheiro mundial e poder mundial, entre o capital mundial e as suas guerras de ordenamento mundial.

2.

“(...) ontologia do antigo secretário de Defesa norte-americano Donald Rumsfeld: as coisas que nós sabemos que sabemos; as que nós sabemos que não sabemos; e, as mais inquietantes, as que nós não sabemos que não sabemos. Como estas últimas lhe tiravam o sono, acordava atirando a esmo (...)” (Paulo Arantes, Depois de junho a paz será total)

Em outros tempos até se poderia dizer: busco uma morte honrosa. O ethos guerreiro fundamentou-se em uma época na qual a guerra seguia o mesmo princípio da atividade produtiva, o artesanal. Assim como ao “homem” cabia a virtude do bem fazer o seu ofício, a sua tecné, na guerra cabia ao guerreiro demonstrar sua coragem, sua força, sua destreza. A guerra era o momento de afirmação da potência individual e de um povo; ainda que atroz, permitia uma realização subjetiva e cultural.

Outra é a configuração da guerra técnica, que tem sua origem no invento e uso das armas de fogo e seu vértice na Grande Guerra (1914-1918), que modifica substancialmente as noções de tática e estratégia. Isso porque assim como na esfera da atividade produtiva, no caso do mundo moderno o trabalho, a maquinaria industrial vai gradativamente eliminando a centralidade do “homem” o tornando um apêndice da máquina, seu supervisor, até o ponto atual de torná-lo cada vez mais supérfluo, na guerra o conflito passa a depender cada vez menos do “minúsculo corpo humano” e cada vez mais do aparato técnico-científico.

Na guerra de trincheiras não havia mais tarefa humana que não a imobilidade (imobilidade na infantaria), ao mesmo tempo em que a sociedade civil, o maquinário industrial, as redes de comunicação, enfim, todo o aparato produtivo, comunicativo, de transporte e humano era mobilizado massivamente para a destruição. A imobilidade no interior de uma cova quilométrica se contrastava com a mobilidade dos aeroplanos que arremeçavam bombas e gás. Não há honra, não há virtude, não há um grande feito, apenas descarte e morte, silêncio e impotência diante do aparato destrutivo tornado maior que seu criador, a anulação do “homem” diante da máquina.

O limite desta anulação é posto no culminar da segunda Grande Guerra (1939-1945), com o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Com ela a humanidade se encontra diante de sua pulsão autodestrutiva e a concebe como fenômeno estético de primeira ordem; a sua extinção, não mais o feito de um corpo estranho viajando desde um lugar tão-tão distante, nem mesmo sua fraqueza em adaptar-se no curso da seleção natural das espécies, como feito seu, para consigo mesma, torna-se iminente, presente, e faz soar um alarme que soa sessenta vezes a cada minuto, instaurando o tempo da emergência, fazendo iniciar a abertura dos sete selos, uma contagem regressiva até o dia da consumação não redentora dos tempos.

No final das contas, as guerras mundiais, tais como se apresentaram na primeira metade do século XX, são produto de algo denominado imperialismo. A corrida do ouro pelo monopólio econômico, consolidado pelo mercado financeiro, que se estende, funda e é fundado, na disputa pelo monopólio da violência, esse o significado da primeira Grande Guerra. No conflito subsequente, a segunda Grande Guerra, entra em cena o elemento nem tão novo da crise econômico-financeira, em que a guerra se apresenta como a salvaguarda da valorização do capital, a indústria bélica, a mobilização das forças produtivas para a destruição, como o ponto de sustentação da magia do mundo moderno: D – M – D’. Seu milagre de consubstanciação do valor, como representação abstrata do trabalho, em dinheiro, e de sua multiplicação em mais dinheiro, esse o significado de capital.

Após o lançamento da Bomba (atômica), abre-se o período no qual vivemos até hoje. A potência nacional que se sobressai no conflito mundial chama-se Estados Unidos, que detém uma vitória financeira, no financiamento da reconstrução das nações perdedoras, e militar, a primeira a fabricar e usar a Bomba. No entanto, esta potência não aparece sem uma força oposta, o bloco da economia de comando estatal soviética, a URSS. É esta polarização, e a impossibilidade de um conflito direto entre as forças destrutivas e os exércitos nacionais dos sistemas de Estado vitoriosos, que instaura o período conhecido por guerra fria. É a partir daqui que a guerra entre nações passa a dar lugar à guerra civil, às guerras por procuração, à produção do globo terrestre como espaço de ocupação e conflito.

A polarização da guerra fria se dissolve quando da queda do muro de Berlim e desmanche da URSS, entrando em cena a globalização hegemônica e assimétrica do capitalismo à americana. É por isso que logo em seguida, nos anos noventa (1990), forma-se o bloco da União Europeia, com integração política e econômica e moeda própria, o euro, sem, no entanto, poder fazer frente ao domínio assimétrico americano. O mesmo intuito se faz presente quando o bloco dos países emergentes, BRICS, entra na cena da economia mundial no contexto da crise econômico-financeira americana, em 2008, sedimentada no significado da desregulamentação financeira desde os anos de 1970 – o significado da suspensão do padrão ouro ao padrão dólar-armamento como lastro do câmbio mundial – e estourada a partir da crise no setor imobiliário, e da subsequente crise de insolvência do euro na relação entre a Alemanha credora e os países sulistas, PIGS, endividados. Tanto o bloco da UE quanto o bloco BRICS não conseguem fazer frente ao monopólio econômico-financeiro-militar americano, pois seu significado diz respeito ao modo como o padrão de valorização do capital mundial está sustentado na produção de guerras de ordenamento mundial.

Assim, não é bem a mudança de paradigma na política com o eventos de Auschwitz ou do 11 de setembro que precisam ser postos como fio condutor, mas o significado da contradição apontada por Marx entre o desenvolvimento técnico, das forças produtivas e o tempo de trabalho socialmente necessário (dinheiro não é mais do que um desdobramento seu) para a produção das mercadorias em um determinado nível dessa produtividade como a contradição interna, o móvel, a pulsão lógico-histórica do capital (dinheiro que se valoriza mediante o processo produtivo ou especula lucros futuros) que nos permite situar o significado das crises de 1929 e de 2008. A soberania política marcada pela exceção, pela emergência é um sintoma, funda e é fundada, pelo desdobramento dessa pulsão.

Isso porque não é bem, como diria Clausewitz, situado num período de guerra simétrica, de reconhecimento jurídico do outro (Estado) e equivalência militar, a guerra que é uma continuação da política por outros meios, ou mesmo, como nos diz Paulo Arantes, que hoje, num contexto de guerra assimétrica, de não reconhecimento do outro (Estado), de permanente ocupação militar e caça dos inimigos (pois não se trata bem de um conflito, que pressupõe forças similares em condições de disputa), é a política que se apresenta como continuação da guerra por outros meios; mas sim de compreender, como nos lembra Kurz, que a guerra é a continuação da concorrência econômica por outros meios.

Mas assim como a primeira Grande Guerra não foi consequência imediata de uma crise, o 11 de setembro também não o foi. Ainda assim, podemos retomar a articulação entre o contexto do entreguerras e o nosso. Não sem antes apontar a dimensão política do problema. O que faz um autor como Carl Schmitt colocar a exceção como conteúdo, como fundamento da norma, não se separa da sua compreensão do próprio contexto excepcional do entreguerras. No caso do 11 de setembro, já temos, como diz Paulo Arantes, um estado de necessidade (que funda a emergência) desejado. Isso porque enquanto as crises e conflitos nos quais estava situado Carl Schmitt, como nos lembra Arantes, estouravam, eram acontecimentos imprevisíveis, assim como temporalmente situados, já que, como fala Clausewitz a respeito da guerra real, trata-se de um conflito simétrico que caminha para uma resolução, algum vitorioso, a figura atual da guerra, o estado de sítio (poder soberano que costuma ser conferido à autoridade militar) não mais como fenômeno apenas interno, mas mundial, uma soberania militar mundial, se apresenta como algo planejado, quisto, pois trata-se de um mecanismo de fim em si mesmo, um estado de exceção militar permanente e infinito, pois fundado na assimetria, na impossibilidade de uma resposta equivalente, como uma doutrina de segurança autofundadora.

É importante perceber que a primeira guerra que marcará o novo período da assimetria, no contexto da globalização do capital, é a Guerra do Golfo (1990-1991). Ela marca, de um lado, a mudança da figura do inimigo (não mais o comunismo, mas agora certas nações e povos associados ao terrorismo; mudança fundamental no sentido da geopolítica econômica: a disputa por recursos estratégicos, ou ao seu acesso), e de outro, tem ainda uma aval, um reconhecimento de sua justeza frente ao direito internacional, ao conselho de segurança da ONU, e assim em diante, pois foi uma resposta à ocupação do Kwait por Saddam Husseim liderando o Iraque – é bom não esquecer como a crise do petróleo marca a entrada em cena no novo período. Com o 11 de setembro, retoma-se uma antiga lição de Estado, o terrorismo indireto, que vigora até hoje (da antiga Al Qaeda até o atual Estado Islâmico), e funda-se uma espécie de missão civilizatória, humanitária a partir de um maniqueísmo de bem e de mal, como se estivéssemos retornando aos tempos das Cruzadas, das guerras santas e, assim, como o outro não é nem gente, nem um ser a ser reconhecido, como há uma justificação moral, então não há que se seguir ordenamento algum, trata-se apenas de uma autolegitimação da força, para sustentar os padrões de rentabilidade e perpetuar-se como potência, perpetuando e sustentado, assim, a acumulação global de capital. Entramos aqui na Doutrina Bush, na sua Doutrina de Segurança Nacional, na guerra preventiva e permanente (sua outra face é a guerra ao narcotráfico) que talvez seja a espinha dorsal de como o Leviatã vai tentar salvar o mundo da barbárie, afundando-se nela.

É como se o 11 de setembro, como desejo pelo estado de necessidade, de emergência, fosse já uma antevisão, uma preparação para a gestão da barbárie que é a incapacidade de integrar parcelas cada vez maiores da população, seu processo de desmanche pelo trabalho, de desintegração social, com o desmanche do Estado bem estar social e aumento do paradigma securitário, do velho problema da segurança como legitimadora do pleno poder, da polícia política que marca o atual estado de guerra contra as populações pobres, desempregadas, periféricas, imigrantes, negras, em situação de rua, indígenas e assim em diante. Não se trata bem de um desejo subjetivo, porque o soberano não decide por vontade própria, mas como resposta a um estado de emergência, de necessidade, que bem pode ser desejado, ou que necessita ser desejado. O fato é que sem o complexo industrial-militar não haveria como sustentar os níveis de rentabilidade do capital mundial; sem guerra, especulação e superexploração (mais valia não apenas relativa, mas absoluta) do que resta de postos de trabalho. Com o estouro da crise de 2008, é como se o Leviatã selasse a todo custo seu pacto de sangue com a Hydra capitalista.

Aquilo que se desdobrou de guerra civil de 2008 até aqui precisa ser visto em sua relação com a resposta mundial à crise interna da maior potência capitalista do globo, e de seu papel na máquina de valorização mundial. Guerra civil na Ucrânia, na Síria, em países do continente africano, na Venezuela; golpes parlamentares na América Latina; desmanche da exploração e dos rendimentos nacionais de reservas de petróleo, recursos estratégicos, desmonte do social para o pagamento de dívida com o mercado financeiro, o mercado de ações que rege os níveis de investimento a nível mundial, e assim em diante. A crise de refugiados, de imigrantes, que nos lembra os tempos de Auschwitz e da seca nordestina, está sendo produzida no interior dessa dinâmica. Onde estamos? Que horas são? Como anda a situação no front desse limiar histórico? São questões que merecem ser desdobradas.

No lado interno da guerra, a guerra ao narcotráfico, o tráfico de armas e de drogas, como dispositivo para se lidar com uma população indesejada, pois supérflua, desnecessária, o resto rejeitado pela imagem de felicidade que uma civilização decadente forjou como seu sonho, sua imagem de perfeição, como a marca central de um mercado altamente rentável. A emergência nos países da América Latina é inseparável de sua guerra aos pobres como guerra às drogas, inseparável do encarceramento e do extermínio; particularmente no Brasil, inseparável da herança da fratura entre casa-grande e senzala-quilombo, inseparável do fato de a mão de obra negra recém liberta não ter sido integrada no trabalho assalariado, e sim a imigrante. Essa é a face da nossa guerra interna.

Antônio Vicente
Enviado por Antônio Vicente em 30/09/2018
Reeditado em 30/09/2018
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