Constelação histórica de crise

Walter Benjamin, pensador judeu-alemão da primeira metade do século XX, em sua tese de livre-docência não aceita (sobre o drama barroco alemão, ou Trauerspiel), nos apresenta a verdade como uma ideia configurada à semelhança das constelações, de modo que os conceitos assumem a mesma característica das estrelas: ainda que distantes (ou descontínuas) umas das outras, configuram para um determinado lugar de observação do cosmos uma unidade na forma de imagem.

Nas Passagens, compilação de notas e materiais para uma obra jamais escrita, mais especificamente entre as teses Sobre o conceito de história (seu pretendido prefácio metodológico) e o caderno N, tal imagem receberá uma acentuação do seu caráter histórico, configurando-se numa situação de perigo. É a partir da situação de perigo atual, presente, que o sujeito do conhecimento histórico, a própria classe combatente, em luta, abre a possibilidade de um reencontro entre as gerações passadas, derrotadas, e a sua. A poesia da luta dos oprimidos segundo Benjamin, ao contrário do que disse Marx n’O 18 Brumário de Luís Bonaparte, não seria retirada do futuro, mas do passado e de seu apelo à redenção.

Esse seu último apontamento em vida é datado de 1940, contexto em que soava meia-noite no século, no dizer de Victor Serge. O perigo de então era o de “entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento”, afinal vivia-se um momento de refluxo das insurgências proletárias pelo mundo, seja sob a forma do stalinismo na Rússia, do franquismo na Espanha, do fascismo na Itália ou do nazismo na Alemanha. Foi a mobilização fascista que deu o tom da resposta à crise econômico-financeira de 1929 após a derrota das experiências revolucionárias.

Cabe ainda ressaltar que é nesse contexto, desde a eclosão da primeira guerra mundial, passando pela crise econômico-financeira de 1929 até a ascensão dos regimes totalitários, culminando na segunda guerra mundial e até, enfim, o boom da bomba atômica, o momento de refluxo não apenas das lutas proletárias de cunho revolucionário, mas dos próprios valores euro-ocidentais sedimentados no processo de modernização econômica e política do capitalismo, o Esclarecimento, ou Iluminismo, ou Ilustração. Igualdade, liberdade, razão, sujeito, humanismo tornavam-se palavras ocas diante do potencial destrutivo da inflação, do sacrifício como lógica política do ressentimento social, da bomba atômica.

Tal contexto de excepcionalidade em território europeu bem que rendeu, e continua a render, muita resma de papel, muitos terabits na tentativa de justificar, criticar ou apenas entender como o auge da civilização técnica trouxe consigo a contrapartida da decadência das expectativas emancipatórias, seu refluxo regressivo. Vista de outro lugar no globo, tal excepcionalidade em território europeu é a própria regra da experiência nas “terras de ninguém” da colonização; não custa lembrar que o bem-estar da metrópole sempre foi sustentado pelo mal-estar nas colônias. No entanto, há também o mal-estar interno à própria metrópole na medida em que a constituição de uma massa de proletários urbanos só foi possível a partir da expropriação das terras de camponeses no contexto da acumulação primitiva de capital, como nos lembra Marx no primeiro livro d’O capital.

É nesse sentido que Benjamin irá dizer, no clímax regressivo de 1940: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral”. O que Benjamin está dizendo é bastante simples: nada de novo no front dos oprimidos. A experiência histórica está marcada por processos de dominação da natureza e de dominação social, sendo inseparáveis a capacidade de construção narrativa e o lugar que se ocupa dentro da hierarquia social. A história até aqui tem na excepcionalidade das formas de dominação a sua regra, a sua marca incontornável.

Retomando a compreensão do objeto histórico como uma imagem-ideia configurada à maneira das constelações, imagem-ideia esta que se apresenta a partir do nexo, da ponte entre o aqui e o agora de uma determinada situação de perigo e o outrora-ocorrido, aquilo que foi silenciado na luta das gerações passadas; o momento da presente escrita parece configurar um reverso dessa imagem redentora ligada à tradição dos oprimidos, pois nos remete antes ao passado do entreguerras: após a eclosão da crise econômico-financeira de 2008, passando pelo refluxo das grandes mobilizações sociais, nos vemos diante da intensificação das guerras civis, de uma mobilização social pseudoprotofascista, da migração em massa e dos campos de refugiados, da austeridade e suas contrarreformas, de um permanente estado de guerra, além do limite da depredação ambiental em curso, o que nos remete a uma articulação, no mínimo, preocupante com o passado até aqui apresentado.

Ao nos remeter ao contexto do entreguerras, o momento atual está antes nos exigindo uma compreensão do passado recente da acumulação de capital, o processo de reestruturação produtiva desde os anos de 1970, passado este que nos lança de volta à própria formação do sistema da acumulação de capital, o seu processo de acumulação primitiva, e ainda ao próprio neolítico maduro, como dirá Paulo Arantes em seu livro Extinção, só que agora um neolítico maduro high tech: ao vencedor as batatas transgênicas intoxicadas. Seria essa a configuração de uma constelação não redentora, mas catastrófica. É a partir dela que é preciso encontrar as brechas de esperança.

Essa apresentação, articulação, por assim dizer, constelacional de presente e passado, ou nos termos de Benjamin, de agora e outrora-ocorrido, não significa que estamos apontando no presente apenas uma continuação das formas arcaicas de dominação do passado, como se, por exemplo, o racismo fosse apenas uma herança do passado colonial, ou como se retornássemos hoje às condições do neolítico, da acumulação primitiva ou do entreguerras; não se trata do eterno retorno do mesmo. A situação atual é inteiramente nova, o processo de acumulação de capital é algo de irreversível, as condições da produtividade e da rentabilidade nunca permanecem as mesmas; mas se trata de dizer que é apenas porque o presente produz e reproduz, engendra e mantém, um arcaísmo, as próprias relações mercantis, que é possível estabelecer essa relação negativa com o que há de arcaico no passado, com as suas formas próprias de dominação.

Ou ainda, a própria imagem do neolítico, por exemplo, enquanto figuração de um passado arcaico, é ela mesma produzida no presente, pois é antes uma forma de projeção do social no natural. Trata-se de uma forma de consciência ideológica – onírica, nos termos de Benjamin – que se manifesta a partir de uma zona de indeterminação entre natureza e história, para fazermos paralelo com um conceito de Giorgio Agamben no seu projeto sobre o homo sacer moderno; sua base material, para continuarmos nos termos de Marx, é a produção da sociabilidade humana como segunda natureza, algo historicamente constituído, mas socialmente percebido como natural. É essa a questão central para compreendermos o arcaísmo, a pré-história na qual estamos inseridos e, assim, o próprio significado da regressão imposta pela manutenção das relações sociais vigentes.

Essa relação viciosa entre o moderno e o arcaico, exposta superficialmente até aqui na relação entre presente e passado, é apresentada por Benjamin nos seus exposés acerca do livro das Passagens enquanto dialética do novo e do sempre-igual, uma interpenetração de mudança e manutenção do mesmo que se expressa no conjunto das produções culturais. Tal dialética se constitui a partir de uma contradição fundamental da acumulação de capital, a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção. Se em um determinado momento da história o desenvolvimento das forças produtivas é impulsionado pela lógica da acumulação de capital, a sua contrapartida se apresenta, como diz Marx no prefácio de sua Contribuição para a crítica da economia política, quando, atingido um determinado estágio do desenvolvimento das forças produtivas, este deixa de ser mobilizado e passa a ser antes travado pelas relações sociais de produção vigentes, no caso a própria acumulação de capital.

Não é que a acumulação de capital deixa de intensificar as transformações técnicas, mas que a bitola das relações de produção interdita as potencialidades de emancipação material e social contidas nessas transformações. Esse é o problema político, por assim dizer, levantado por essa passagem. No entanto, a principal questão a ser retomada desse apontamento de Marx para o diagnóstico aqui perseguido do capitalismo contemporâneo é a sua relação com uma passagem contida no tópico Capital fixo e desenvolvimento das forças produtivas da sociedade nos Grundrisse, rascunhos antecedentes d’O capital:

"A troca de trabalho vivo por trabalho objetivado, i.e., o pôr do trabalho social na forma de oposição entre capital e trabalho assalariado, é o último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada no valor. O seu pressuposto é e continua sendo a massa do tempo de trabalho imediato, o quantum de trabalho empregado como o fator decisivo da produção da riqueza. No entanto, à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho empregado que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que – sua poderosa efetividade –, por sua vez, não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende, ao contrário, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência à produção (...) Tão logo o trabalho na sua forma imediata deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem de deixar, de ser a sua medida e, em consequência, o valor de troca deixa de ser [a medida] do valor de uso."

Tratar-se-ia de saber até que ponto o processo de reestruturação produtiva desde os anos de 1970 pode ser interpretado como um momento em que se consolida esse deslocamento do trabalho imediato, o trabalho vivo, pela automatização técnica, o trabalho morto, passado, instaurando, assim, um impasse incontornável para a acumulação de capital. É essa a análise de Robert Kurz em seu Colapso da modernização, e parece ser esse também o ponto de partida de um pensador brasileiro (seja lá o que isso queira dizer) como Paulo Arantes:

"De fato, as bases técnicas para a superação da pré-história da humanidade estão finalmente dadas, e, no entanto, esse limiar emancipatório brilha sob a luz negra de um atoleiro sem fim, o vasto aterro sanitário de homens e mulheres a um tempo descartados e ‘recapturados’ por motivo de irrelevância econômica. Esse buraco de agulha para elefantes é a contradição terminal do nosso tempo: o reino da liberdade está enfim à vista e todavia iremos todos morrer na praia da mais crassa necessidade material, como se ainda engatinhássemos nos tempos da pedra lascada. A contradição deste último capítulo que não acaba de acabar – a liberação possível do fardo da exploração como condição do progresso tornou-se a rigor uma verdadeira expulsão, por assim dizer, na boca do guichê –, foi no entanto identificada por Marx desde a origem: a compulsão do capital a eliminar do processo de valorização econômica a fonte mesma de todo o valor, o trabalho vivo."

Retomando a dialética do novo e do sempre-igual apresentada por Benjamin, a interpenetração de arcaico e moderno, expressa superficialmente na interpenetração de antigo e novo e presente no conjunto das produções culturais, sejam elas objetos de arte, ruas, construções arquitetônicas, livros de poesia etc., é, portanto, proveniente da interpenetração entre o arcaísmo da manutenção das relações sociais vigentes e a utopia, ou o princípio esperança no dizer de Ernest Bloch, de superação dessas mesmas relações. Isso significa dizer que a contradição posta na produção material da existência se expressa subjetivamente nessa tensão entre o permitido, a manutenção da bitola das relações mercantis, e o possível, a expectativa de superação dos problemas materiais e das hierarquias sociais. Ao menos parece ser essa a problematização de Benjamin.

É aqui que podemos fazer uma amarração, transpondo ao conceito, ou refundindo conceitualmente as habilidades da mãe de santo e do pedreiro, tendo em vista o diagnóstico de Paulo Arantes – feito a partir do diálogo com diversos autores – acerca do novo tempo do mundo, ou da experiência do tempo no capitalismo contemporâneo. Retomando Reinhardt Koselleck, Arantes irá dizer que o moderno tempo do mundo, aquele do progresso, se constitui a partir da separação entre espaço de experiência e horizonte de expectativa – no contexto das grandes navegações, da “descoberta do novo mundo”, da acumulação primitiva arregimentada pelos Estados absolutistas –, e encontra seu vértice no Esclarecimento e nas revoluções políticas e industriais burguesas até, enfim, passar a reconciliar-se após o lançamento bomba atômica, mas, sobretudo, após a hegemonia global da economia capitalista após a queda do muro de Berlim e a dissolução da URSS. Tal reconciliação traz consigo um caráter regressivo, pois tem a marca da conciliação entre experiência e expectativa própria das comunidades tradicionais.

Como já dito anteriormente, não é que retornamos ao patamar das formas tradicionais de organização social, nem se trata aqui de reafirmar o seu rebaixamento levado a cabo pelo processo de modernização que teve no progresso a sua categoria ideológica central, constituindo, assim, um conceito linear da história, mas que estamos diante de um processo endógeno, de um esgotamento daquilo que marcou a experiência moderna do tempo até aqui, a constante abertura do horizonte de expectativa. Como nos diz Paulo Arantes, é o rebaixamento, ou o esgotamento, do horizonte de expectativa moderno, aquele do progresso, o principal fator da reconciliação contemporânea entre experiência e expectativa.

Seu declínio, o do horizonte de expectativa, se apresenta primeiramente no contexto do entreguerras, contexto da crise econômica, da ascensão fascista etc., como já dito anteriormente, mas particularmente no estouro da bomba atômica. A bomba atômica, a capacidade técnica de autoaniquilação, de extinção da espécie humana, coloca na ordem do dia a iminência de uma catástrofe. O ponto culminante desse declínio do horizonte de expectativa é o momento em que o globo terrestre se torna, de fato, o palco único e exclusivo da acumulação de capital. O esgotamento espacial trouxe consigo, ironicamente, o esgotamento temporal das expectativas. É essa uma espécie de gênese da reconciliação até aqui apresentada, que tem como marca a emergência, ou a urgência. Nas palavras de Arantes:

"Acontece que, a certa altura do curso contemporâneo do mundo, a distância entre expectativa e experiência passou a encurtar cada vez mais e numa direção surpreendente, como se a brecha do novo tempo fosse reabsorvida, e se fechasse em nova chave, inaugurando uma nova era que se poderia denominar de expectativas decrescentes, algo ‘vivido’ em qualquer que seja o registro, alto ou baixo, e vivido em regime de urgência."

Se no tempo de Benjamin, quando soava meia-noite no século, o problema da exceção como a regra da experiência política, da iminência da catástrofe, do esgotamento dos valores euro-ocidentais, da sua própria dinâmica econômica e política de base, começa a se tornar uma questão incontornável, é apenas no nosso tempo, esse que tem sua gênese em meados de 1970, que haverá uma mudança negativa de novo tipo. Como nos lembra Arantes, retomando uma passagem da peça Galileu de Bertolt Brecht, mesmo no auge da crise na primeira metade do século XX ainda havia a expectativa de uma reviravolta que viesse a redimir o rastro de violência e dominação que se alastrava, no caso a expectativa de uma revolução.

Nosso tempo, ao contrário, tem como marca, além da queda tendencial da taxa de lucro (Marx), ou mesmo de uma crise substancial da valorização (também Marx, na interpretação de Kurz), da “baixa tendencial do valor de uso”, para lembrarmos Guy Debord, uma queda tendencial das expectativas. Já não há redenção a vista, já não há outro mundo possível, há apenas a iminência da catástrofe, que de todo modo já se encontra instaurada no próprio funcionamento normal do mundo; há apenas o mesmo piorado. Esse estado subjetivo não é em si mesmo o produtor do estado de coisas em que nos encontramos, mas sintoma. Seu problema de base, que pode ter seu paralelo com a economia psíquica da libido, tem a ver com o próprio esgotamento interno das atuais condições da acumulação de capital, de um lado, e os limites externos tanto do espaço para novos mercados quanto da relação predatória com a natureza.

É essa diferença de expectativa entre os anos de 1929 e 2008 que nos permite compreender por que um autor como Benjamin ainda pode encontrar nas produções culturais de seu tempo um caráter utópico, uma expectativa que aponta uma redenção possível, e um autor como Paulo Arantes ter como principal diagnóstico do novo tempo do mundo, no caminho das publicações de Cristopher Lasch, a tendência a zero do horizonte de expectativa. Ao que parece, a interpenetração do arcaico e do utópico, presente no contexto do entreguerras e mesmo no segundo pós-guerra, parece dar lugar a uma intensificação do caráter arcaico na medida inversamente proporcional do decrescimento do caráter utópico das expectativas. Parece ser essa constelação conceitual que nos permite compreender essa mesma lógica presente na redução do Estado de bem-estar social (mesmo ele, sempre relativo) e concomitante intensificação do estado de guerra em que nos encontramos. Parece ser essa a questão central para compreendermos o caráter regressivo da experiência social contemporânea.

Para retomarmos o título certeiro do último capítulo da última publicação de Robert Kurz ainda em vida, Dinheiro sem valor, parece que estamos diante do sacrifício e do regresso perverso do arcaico. Para elucidarmos esse apontamento temos de recorrer novamente a Walter Benjamin. Em seu ensaio sobre a reprodutibilidade técnica, ele compreende o fenômeno da guerra como regressão (fascista) que mobiliza a técnica não como força produtiva, mas como força destrutiva (seu uso antinatural). Assim, a sociedade que se manteve presa à forma arcaica da produção de valor, por não conseguir ir além do seu uso, acaba por converter toda força produtiva em destruição no contexto da crise econômica daquele período. Nas palavras do autor:

"(...) se o uso natural das forças produtivas é bloqueado pela distribuição da propriedade, a elevação dos meios técnicos, em termos de ritmo, de fontes de energia, pressiona em direção a uma utilização antinatural dessas forças. Esta é encontrada na guerra, que dá, com suas destruições, a prova de que a sociedade não estava madura o suficiente para transformar a técnica em seu órgão, de que a técnica não estava desenvolvida o suficiente para subjugar as forças elementares da sociedade. A guerra imperialista é determinada, em seus traços mais terríveis, pela discrepância entre os poderosos meios de produção e sua utilização insuficiente no processo de produção (em outras palavras, por meio do desemprego e da falta de meios e escoamento). A guerra imperialista é uma insurgência da técnica que cobra, em “material humano”, exigências para cuja satisfação o material natural foi negado pela sociedade. No lugar do trânsito aéreo, ela instaura o trânsito de balas, e na guerra química ela tem um novo meio para extirpar a aura."

Isso porque, no contexto da primeira técnica, aquela do trabalho manual, que exige do homem um constante labor, o ponto culminante da experiência coletiva é o ato do sacrifício; ao contrário, a técnica moderna, a segunda técnica, a da capacidade de reprodução mecanizada, instaura a possibilidade do jogo, de uma outra relação entre humanidade e natureza. Ainda Benjamin:

"Humanos e seu ambiente eram os objetos de tais notações, e eles eram retratados segundo as exigências de uma sociedade cuja técnica existia apenas enquanto fundida com o ritual. Uma técnica que, se comparada à mecânica, é naturalmente rudimentar. Mas não é isso que importa à investigação dialética. Para ela interessa a diferença tendencial entre essa técnica e a nossa, que consiste no fato de a primeira empregar o ser humano o máximo, e a segunda, o mínimo possível. Em certo sentido, podemos considerar o ato máximo da primeira técnica como sendo o sacrifício humano; o da segunda encontra-se no horizonte dos aviões de controle remoto, que dispensam tripulação. A primeira técnica orienta-se pelo “de uma vez por todas” (nela trata-se do sacrilégio irreparável ou do sacrifício eternamente exemplar); a segunda, pelo “uma vez é nenhuma vez” (ela trata do experimento e das variações incansáveis dos procedimentos de teste). A origem da segunda técnica deve ser buscada onde o ser humano, com uma astúcia inconsciente, chegou pela primeira vez a tomar uma distância em relação à natureza. Em outras palavras, ela encontra-se no jogo (...) A primeira realmente pretende dominar a natureza; a segunda prefere muito antes um jogo conjunto entre natureza e humanidade."

O regresso perverso do arcaico é, desse modo, uma espécie de atualização do sacrifício próprio ao contexto da primeira técnica nas condições de destruição da segunda técnica. O arcaico, por sua vez, é a própria manutenção das relações de propriedade vigentes, baseadas na forma de mercadoria da atividade humana e de seus produtos, é aquela continuidade entre capitalismo e religião apresentada por Benjamin em outro ensaio, O capitalismo como religião, ressalvando as diferenças radicais entre ambos, como nos lembra Kurz, a continuidade entre o ritual inerente às formas de organização social que encontram no sagrado a sua síntese e o fetiche da mercadoria que marca o mundo da acumulação de capital.

O ponto culminante dessa lógica do sacrifício tornada atual pela manutenção do arcaísmo das relações mercantis, que impossibilita um outro uso da segunda técnica, é a guerra. Como diz Benjamin, ela é “uma insurgência da técnica que cobra, ‘em material humano’, exigências para cuja satisfação o material natural foi negado pela sociedade”. Essa cobrança da técnica, a sua conversão em força destrutiva na guerra, é antes uma cobrança da lógica da acumulação de capital, D-M-D’, uma cobrança de sua permanente necessidade de autovalorização, que se intensifica nos contextos de crise. Como diz Anselm Jappe: “O dinheiro é nosso fetiche: um deus que nós criamos, mas do qual julgamos depender e ao qual estamos dispostos a tudo sacrificar para apaziguar as suas cóleras”.

Mas, assim como é preciso distinguir a natureza da crise de 1929 da crise atual, é preciso distinguir a mudança qualitativa ocorrida na natureza da guerra. No contexto de Benjamin, o modelo econômico que veio a dar resposta à crise de sobreacumulação (diretamente relacionada ao subconsumo) estourada em 1929 foi o modelo de produção fordista. Tal modelo tem relação direta com o modelo da guerra de então, a segunda guerra mundial. Essa relação se expressa no caráter nacional dos exércitos e mesmo no caráter de mobilização total da sociedade civil em função da guerra. Outro é o caso da guerra atual, comenta Paulo Arantes em seu livro Extinção. Se o modelo da acumulação contemporânea de capital transfigurou-se em um modelo flexível cuja principal característica é a terceirização dos encargos materiais, como nos diz David Harvey no livro Condição pós-moderna, a própria guerra também o fez. Ela de modo algum mobiliza a sociedade, nem mesmo se executa mediante exércitos nacionais; a cada dia tem a mesma natureza dos exércitos na origem do Estado moderno: se antes alugavam exércitos de mercenários, hoje não se faz outra coisa, terceirizam-nos.

Isso porque não se trata mais de um conflito direto entre nações, impossibilitado pela Bomba (atômica). O foco, hoje, são as infraestruturas, a precisão pretensamente cirúrgica de uma guerra sem baixas, cuja natureza é a desestabilização das condições de vida das populações e territórios para melhor controlá-los. Seu dispositivo é tão arcaico quanto o das guerras santas, ou justas: o ataque ao inimigo chamado terror, mediante terror, haja visto o acontecimento originário do atual terrorismo mundial de Estado, o 11 de setembro. É nesse sentido que o palpite de Arantes sobre a configuração econômico-política contemporânea chama-se estado de sítio, mais especificamente a configuração de um estado de sítio mundial constituído a partir de um monopólio mundial da violência.

O recurso do estado de sítio é apresentado pelo autor (no ensaio homônimo contido no livro Extinção) a partir da experiência do 18 Brumário de Luís Bonaparte, analisada por Marx. Em 1848, a Europa foi tomada por insurreições contra os regimes monárquicos ainda em vigência, no acontecimento que ficou conhecido como Primavera dos Povos. Particularmente na França, o reinado de Luís Filipe deu lugar a Assembleia Nacional Constituinte dominada pelo “partido da ordem”. Esse processo de formação do Estado constitucional republicano burguês só foi possível mediante o esmagamento dos levantes proletários, que não se reconheciam na constituinte em curso; só foi possível erigir uma constituição republicana em meio ao decreto do estado de sítio para a contensão das tais jornadas de junho. Esse paradoxo é, na leitura de Arantes, o paradoxo crucial da experiência política moderna, que irá se reapresentar em vários outros contextos, por exemplo, na República de Weimar.

Mas seria muito pretensioso considerar que os atentados de 11 de setembro, o 18 Brumário de George Bush anunciado no ensaio de Arantes, tiveram principalmente a ver com os levantes chamados pela mídia de antiglobalização; seria talvez considerar-se um inimigo à altura de por abaixo e reconfigurar a ordem social vigente, como noutros tempos. No entanto, ou devido a isso, como retoma Arantes um autor americano, “contrainssurgência hoje, afirma [Andrew] Bacevich, é uma moeda falsa, uma fraude destinada a perpetuar o estado de guerra no mundo, pois a ‘segurança da população’, por definição, é uma porta que nunca se fecha”. Não é preciso um inimigo interno à altura para se acionar dispositivos de controle ou de extermínio.

Antes dos protestos “ideologicamente” anticapitalistas, existem alguns inimigos internos que, na prática, se mostram mais perigosos, mesmo sendo também impotentes quanto a uma nova forma prática de redenção. Estes são as populações periféricas, sobretudo negras, cada vez menos integráveis na ordem da socialização pelo trabalho, por isso mesmo extermináveis. E como inimigo externo, o terror islâmico, subproduto do terrorismo de Estado que se consolida desde a fundação do Estado de Israel até as ocupações do Iraque e do Afeganistão. É justamente na relação com esse inimigo que todo Estado funda sua política de emergência; se não mais outros Estados nacionais, ou mesmo um movimento revolucionário, como inimigo, agora a emergência de contensão das suas próprias populações não integradas e das populações expropriadas em territórios externos.

O estado de sítio mundial no qual estamos inseridos tem, portanto, de ser compreendido a partir desses dois apontamentos: de um lado, a natureza da crise econômico-financeira atual, colocando os termos do estado de emergência a partir de sua natureza econômica; de outro, a produção política do inimigo como intensificação da lógica do sacrifício sem teor sagrado, que terá sua marca no extermínio das populações não integradas, em âmbito interno, e no estado permanente de guerra nas ocupações de territórios externos. Tanto de um lado como do outro da análise aqui perseguida, o seu produto permanece sendo a guerra.

Retomando-a, se na apresentação teórico-estratégica do general prussiano Carl von Clausewitz, figura central na derrota das guerras napoleônicas, a guerra aparece como continuação da política por outros meios, como fenômeno limitado pela política, um meio para fins políticos, essa a guerra real apresentada no seu livro inacabado Da guerra; no contexto das guerras mundiais, particularmente no segundo pós-guerra, diante do fato material da bomba atômica, outra é a experiência da guerra que passa a se constituir. Atingido o patamar da força de destruição atômica, a guerra absoluta apresentada por Clausewitz, até então apenas uma figuração hipotética da capacidade de destruição instantânea do exército inimigo, passa a ser a guerra real, a guerra absoluta torna-se uma realidade.

Com a impossibilidade de um conflito direto entre as superpotências da guerra fria, o bloco ocidental liberal americanizado e o bloco da economia de comando estatal soviética, a guerra passa a esquentar a prestação na periferia do mundo. Esse impasse será reconfigurado com a dissolução do bloco estatal soviético e a entrada em cena da globalização do capital nos termos do bloco ocidental à americana – não sem integrar alguns elementos do modelo rival, modernizando-se econômica e policialmente. Nesse momento, passa a predominar hegemônica e assimetricamente o aparato econômico-financeiro e militar dos Estados Unidos.

É nesse ambiente que se gestará o que Paulo Arantes denomina de guerras cosmopolitas, tendo como marco a Guerra do Golfo, passando pelas ocupações do Iraque e do Afeganistão após o 11 de setembro até a atual guerra civil na Síria. A guerra cosmopolita contemporânea é justamente o reverso da paz perpétua kantiana, uma “paz perpétua por meio da guerra perpétua”; no caso, o que integra essa nova (des)ordem mundial é a produção do mundo como fronteira militar, em um processo no qual a guerra deixa de ser a continuação da política por outros meios e, ao contrário, é a política que passa a ser a continuação da guerra por outros meios: “Não estamos mais diante da guerra, mas, agora sim, diante da política como mera continuação da guerra”. Nesse percurso, a guerra deixa de ser um acontecimento limitado e simétrico e passa a ser um estado de exceção permanente, ilimitado e assimétrico; torna-se um fim em si mesmo, como o próprio capital. Sua atualidade repõe os elementos supostamente arcaicos das guerras justas ou santas (das Cruzadas, por exemplo), só que agora como guerra humanitária, cosmopolita. É essa a base do estado de sítio mundial no qual estamos inseridos.

A atual constelação histórica de crise tem, portanto, na crise da socialização pela economia de mercado e na instauração de um estado de emergência permanente, cujo sintoma subjetivo é o decrescimento das expectativas e o ponto culminante a guerra civil mundial, as suas questões cruciais. É esse um diagnóstico possível do nosso tempo.

Antônio Vicente
Enviado por Antônio Vicente em 29/09/2018
Reeditado em 30/09/2018
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