“Essa grave dissociação entre o passado e o presente é o fato geral da nossa época, e nela está inclusa a suspeita, mais ou menos confusa, que gera a vertigem peculiar da vida nesses anos. Sentimos, os homens atuais, que derrepente ficamos sós sobre a terra; que os mortos não morreram só de brincadeira, mais completamente; que já não podem nos ajudar. O resto do espírito tradicional evaporou. Os modelos, as normas, as pautas, não nos servem. Temos que resolver nossos problemas sem a colaboração ativa do passado, em pleno atualismo – sejam eles de arte, de ciência ou política. O europeu está só, sem mortos vivendo ao seu lado; como Pedro Schlemihl, que perdeu sua sombra..” (GASSET, 2016, p.105-06.).

ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das massas; tradução de Felipe Denardi – Campinas, SP: Vide Editorial, 2016.

“Homens sem sombras”! Com certeza uma das melhores metáforas utilizadas pelo filósofo espanhol Ortega Y Gasset, para identificar o espírito humano do nosso tempo. A sombra é sempre um reflexo contextualizado. Para que haja sombra é preciso que uma realidade a ser refletida esteja circunstanciada a um meio que receberá este reflexo. São os homens e suas circunstâncias históricas que tornam possíveis os mais variados reflexos da humanidade. Sem existência humana e sem as mais variadas realidades históricas que de algum modo as circunscrevem, não há reflexos, não há marcas, não há nenhum tipo de “índice” pelos quais os humanos podem se demonstrar humanos aos que virão após eles.

O fenômeno do “homem massa”, “homem médio”, ou “homem vulgar” não é um fenômeno histórico restritamente. Com isto afirmo que não é exclusivamente o homem moderno este desqualificado, embora Gasset nele se concentre. O fenômeno do homem massa está ligado, sobretudo ao espírito humano. É a mancha do pecado adâmico (compreensão minha) que faz com que este se alimente de uma autojustificação pueril, absurdamente exponenciada com a idade moderna.


De início, Ortega Y Gasset tolhe toda e qualquer interpretação ingenuamente política que se possa fazer da sua obra magna:

 
Nem este livro nem eu somos políticos. O assunto trabalhado aqui é prévio à política e pertence ao seu subsolo. Meu trabalho é um obscuro labor subterrâneo do mineiro. A missão do chamado “intelectual” é, em certo sentido, oposta à do político. A obra intelectual visa, muitas vezes em vão, esclarecer um pouco as coisas, ao passo que a do político normalmente consiste, ao contrário, em confundi-las mais do que já estavam. Ser de esquerda, como ser de direita, é uma das infinitas maneiras que o homem pode eleger para ser um imbecil: ambas são, de fato, formas de hemiplegia moral. Ademais, a persistência desses qualitativos contribui muito para falsificar ainda mais a “realidade” [...] as experiências políticas correspondentes se complicaram ao extremo, como demonstra o fato de que hoje as direitas prometem revoluções e as esquerdas propõem tiranias (GASSET, 2016, p.61-2).
 

A preocupação de Ortega se encontra em outro motor. A sociedade para o nosso filósofo nada mais é do que uma exteriorização dos seus cidadãos. Logo, o caminho percorrido pelo autor tem pontos de partida e chegada bem mais precisos: o homem atual. “Para falar mais sério e aprofundamente sobre ele, não haveria outro remédio a não ser se coloca rumo ao abismo, vestir o escafandro e descer ao mais profundo do homem. Isso tem de ser feito sem pretensões, mas com decisão [...]”. (IDEM, p.63).

É esta antropo-interpretação que demarcará toda a obra do filósofo. O homem em Ortega Y Gasset é um ser bastante preciso, com as devidas incumbências necessárias para seu desenvolvimento intelectual e moral. Com as aglomerações urbanas que eclodiram mediante o processo de modernização das cidades, as grandes “massas”, um gigantesco número de pessoas aglutinadas em torno de princípios e ideais comuns, passam a figurar na opinião pública, engolindo este “homem”, cujo destino aguarda excelência. Para Ortega: “A multidão, de repente, fez-se visível: instalou-se nos lugares preferenciais da sociedade. Antes, se existia, passava inadvertida, ocupava o fundo do cenário social; agora avançou às baterias, e é personagem principal. Já não há protagonistas: só coro” (IDEM, p.80 – grifo meu).


Estas massas, nas palavras do nosso autor, “suplanta as minorias”. “Massas” e “minorias” são termos constantes na obra de Ortega. O filósofo entende que a qualificação individual para o exercício público de formação de ideias, administração estatal, desenvolvimento artístico, é na maioria das vezes efetivada por uma quantidade mínima de pessoas, cujas se dispõe a um extenso processo de qualificação. As massas por sua vez, são desqualificadas. Ideologizadas em torno de compreensões provenientes dos mais diversos tipos de senso comum. Coletividades desprovidas de virtudes: “[...] a coletividade é uma realidade distinta dos indivíduos e de sua simples soma [...]” (p.56). Gasset informa que o espírito cultural do nosso tempo é composto por esta desqualificação presente do “homem massa”.

 
Boa parte da perturbação atual provém da incongruência entre a perfeição de nossas ideias sobre os fenômenos físicos e o atraso escandaloso das ‘ciências morais'. O ministro, o professor, o físico ilustre e o novelista geralmente têm, dessas coisas, conceitos dignos de um barbeiro suburbano. Não é perfeitamente natural que seja o barbeiro suburbano quem dê a tonalidade do tempo? (GASSET, 2016, p.44).
 
É importante que se entenda bem a proposta deste ensaísta que em nenhum momento confere indignidade humana a quem quer que seja, qualificado ou não. A preocupação de Ortega versa sobre a qualificação necessária do homem público, que na emissão de suas opiniões se integra ao processo civilizacional.
 
O homem massa não é característico de uma classe social, mas sim a consequência de um espírito desqualificado, residente, único e exclusivamente em si mesmo: “A divisão da sociedade em massas e minorias excelentes não é, portanto, uma divisão em classes sociais, mas em classes de homens, e não pode coincidir com a hierarquização em classes superiores e inferiores” (IDEM, p.82). Este homem vulgar não possui a mínima capacidade possível de ausentar-se do seu “ventre”.

Característico ao homem massa está à maneira com que julga a sua época: sempre melhor e mais excelente do que todas as outras anteriores. Ortega teme um “tempo de ouro”, “uma era ‘epocal’”, ou seja, toda e qualquer auto-referenciação histórica de caráter superior aos momentos anteriores, algo muito observada em seus dias. Todo tempo que se julga pleno demais, acaba por se estagnar. E aqui, a consciência histórica formulada é justamente a que produz o homem massa, pois este é pleno em suas convicções julgando nada depender do passado. Um tempo, ou uma cultura que se autodenomina “moderna”, ou seja, “última”, “definitiva”, não se possa esperar que progrida, mas que tão apenas se confine em suas “grandes” engenharias, enclausurada em si mesma.
 
A fé na cultura moderna era triste: era saber que amanhã seria essencialmente igual a hoje; que o progresso consistia somente em avançar, por todos os “sempres”, sobre um caminho idêntico ao que já estava sob os nossos pés. Um caminho assim está mais para uma prisão que, elástica, se alonga sem nos libertar (IDEM, p.102).  
 
A cultura brasileira, nos últimos trinta anos, se converteu no melhor reflexo possível deste homem médio. É impressionante como a maioria esmagadora dos artistas que hoje representam as grandes massas não apenas deixam de referenciar, mas como também desconhecem as grandes produções culturais que os antecederam. E não apenas estes, mas, numa considerada vertigem para a nossa esperança, uma maioria ainda mais esmagadora de jovens que consomem sua cultura. É esta quebra com um passado relevante, que é apontada por Ortega como o grande abismo que a cultura despencou: “Isso quer dizer que o homem do presente sente que sua vida é mais vida que todas as antigas, e vice-versa, que o passado inteiro ficou pequeno para a humanidade atual” (IDEM, p.105).
 
Somos os únicos seres de “memória” pertencentes ao mundo da vida. É dela que brota a consciência histórica responsável por alimentar os mais diversos setores de funcionamento da civilização.

Os pobres animais, a cada manhã, encaram o fato de terem esquecido quase tudo que viveram no dia anterior, e seu intelecto tem que trabalhar sobre um material mínimo de experiências. Assim, o tigre de hoje é idêntico ao de seis mil anos atrás, porque cada tigre tem que começar de novo a ser tigre, como se não tivesse existido nenhum outro antes. O homem, ao contrário, graças ao seu poder de recordar, acumula seu próprio passado, toma posse dele e o aproveita. O homem nunca é um primeiro homem: começa a existir, desde logo, sobre certa quantia de passado amontoado. Esse é o tesouro do único do homem, seu privilégio e seu sinal (IDEM, p.71).

Para o nosso filósofo, “massificar-se” é submergir no conglomerado de opiniões persuasivas e ideologicamente orientadas, onde as grandes massas se auto-escravizam. É se persuadir de enganos em uma auto-referenciação pueril, e não conseguir identificar as sombras humanas do passado. Um auto-engano que o faz se perceber como detentor de uma superioridade histórica. O ser humano atual: “Domina todas as coisas, mas não é dono de si mesmo” (IDEM, p.113), “possui vários talentos, menos o de usá-los” (IDEM, p.114).

O homem do nosso tempo ovaciona a própria prisão da consciência, em hermetismos e ideologias que constituem a própria cadeia por eles mesmos construída. Xingando ao homem excelente, pela acuidade e cautela com que olha para o passado e o futuro, falam de dentro da prisão, achincalhando os que estão “presos do lado de fora” pela fidelidade as suas tradições. O homem massa é o homem que despreza o passado que lhe permite o conforto para a disseminação de suas idiossincrasias. Este goza das técnicas e benefícios ancorados em compreensões e convicções de mundo que este negligenciou por sua “antiguidade”.

À medida que nossas escolas criam vários laboratórios cibernéticos, proporcionam intercâmbios estudantis, arvoram-se como promotoras de uma nova forma de educação, tiram dos currículos dos futuros dirigentes de nossa sociedade as disciplinas de moral e cívica, o patriotismo do hino nacional cantado e toda gama de responsabilidades de grande relevância para o nosso assentamento como nação.

 
Nas escolas que tanto orgulhavam o século passado, não se pôde fazer outra coisa a não ser ensinar às massas as técnicas da vida moderna, mas não conseguiu educá-las. Deram-lhe instrumentos para viver intensamente, mas não a sensibilidade para os grandes deveres históricos [...] (IDEM, p.121).

Entre acertos e erros, a América Latina parece ser bastante informe em termos de suas grandes ideias como civilização. A nossa consciência histórica é meio turva. Nossos grandes ideais democráticos ainda figuram com ditaduras proclamadas e mantidas mediante personalismos fracassados e populismos caracterizados pelo “fuzil na mão e a venda nos olhos” (MÁRIO VARGAS LLOSSA).

É certo que nós do Novo Mundo tendemos a estabelecer certas fronteiras quanto às percepções de Ortega. Sabe-se que uma compreensão pós-colonial para a nossa civilização requer inevitavelmente uma abertura ao futuro e um significativo rompimento com o passado. No entanto, abri-se ao futuro, no afã de pensar o formato da nossa sociedade para além dos moldes europeus, não implica que sejamos governados por determinadas circunstâncias, e sob está perspectiva, justifiquemos toda uma falta de criticidade frente a nossa história, abrindo mão de ponderações e decisões que independente de qualquer novidade almejada precisam ser feitas e tomadas. Pensar a América Latina fechando-se em si mesma, nos dará uma prospecção civilizacional muito efêmera. Somos muito mais do que uma simples crítica ao mundo europeu: 

 
A Europa havia criado um sistema de normas cuja eficácia e fertilidade os séculos demonstraram. Estas normas não são, de modo algum, as melhores possíveis. Mas são, sem dúvida, definitivas enquanto não existam ou se divisem outras. Para superá-las é imprescindível parir outras (IDEM, p.213).

O império da vulgaridade intelectual amassa este país, suficientemente grandioso, portador de possibilidade e edifícios culturais gigantescos que se perderam em nome de novidades que nos levam à sepultura. Observar as entrevistas de Chico Anísio, em relação aos mais novos humoristas brasileiros, testifica que nossa extrovertida forma de viver e de julgar o mundo, desabou em “caretas”, “gemidos” e “acrobacias”, que se torna até ofensivo, tendo em vista o legado de um dos maiores gigantes da cultura circense deste continente: Roberto Bolaños, denominá-las de “palhaçadas”.

Nosso velho profeta armorialista já vinha nos orientando: “Cultura popular, não é cultura de massas” (Ariano Suassuna). As percepções mais profundas do espírito humano escapam aos homens de cultura da nossa época que insistem em dignificar seu declínio, tão somente pelo fato de ser seu. Enquanto audaciosamente insistirem que: “Lepo-lepo, é um grito contra o capitalismo”, mais intensamente mergulharemos na sentença de Platão:

“Dizem que, nessas circunstâncias, o justo será vergastado, torturado e amarrado; queimar-lhe-ão os olhos e, por último, depois de passar por todos esses tormentos, será empalado, para compreender, facilmente, que o que importa não é ser, porém parecer justo”. Platão, A república, 362a.